Artigos Empório do Direito – Historinha para acordar: o psicólogo que trincou a demanda do impossível

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Historinha para acordar: o psicólogo que trincou a demanda do impossível

O artigo aborda a complexa narrativa de Rapunzel, que, após seu final feliz, enfrenta questões de violência e maternidade em um contexto jurídico. A autora, Maíra Marchi Gomes, explora a análise psicológica de Rapunzel em um julgamento, onde seu comportamento em relação ao bebê é examinado à luz de traumas e condições psíquicas. Através de personagens clássicos em uma nova perspectiva, a obra provoca reflexões sobre a verdade, a lei e a psicologia.

Artigo no Empório do Direito

É isso aí

Como a gente achou que ia ser

A vida tão simples é boa

quase sempre

É isso aí

Os passos vão pelas ruas

Ninguém reparou na lua

A vida sempre continua

(…)

É isso aí

Há quem acredite em milagres

Há quem cometa maldades

Há quem não saiba dizer a verdade

(…)

É isso aí

Um vendedor de flores

ensinar seus filhos a escolher seus amores

(Ana Carolina)

Hoje falarei algo sobre os contos de fadas após seus finais felizes. Ou seja, quando eles passam a ser ambientados na vida e não naquele tipo de sonho que obscuramente torna nossa vida vigil um pesadelo.

Era uma vez Rapunzel, agora já morando com o Príncipe na Terra do Sempre. Nossa história começa numa noite em que ela pare uma criança cuja existência era desconhecida de todos. Inclusive do Príncipe, porque afinal só mantinham relações sexuais para procriação, e, para isto, o Príncipe não precisava ver nada de seu corpo e apenas encontrar o orifício de sua vagina para penetração.

Rapunzel enterrou ainda vivo o bebê, e dali seguiu sua vida. Mas a mãe do Príncipe, com quem viviam, descobriu o corpo quando trabalhava na horta que eles mantinham. Aliás, uma horta parecida com aquela da Bruxa que havia aprisionado Rapunzel. O Príncipe rompeu o casamento tão logo soube do fato, e registrou, acompanhado da mãe, o fato numa delegacia.

Ouvida na delegacia, Rapunzel não negou os fatos e alegou que a gestação foi fruto de relações mantidas com outro homem que, assim como o Príncipe, seguiu o caminho indicado por suas tranças. Um psicólogo realizou uma perícia ainda na fase policial, porque o delegado vislumbrou a hipótese de que ela estivesse em estado puerperal no momento do parto, haja vista a “frieza” com que lidou com o bebê. O psicólogo entendeu que não, que ela tinha pleno conhecimento da ilicitude da ação, ainda que incapaz de se dirigir de acordo com tal entendimento naquele momento. Chegou ainda a explicar que a estranha “frieza” indicava guardar relação com os conflitos de Rapunzel junto à família de origem. Tal conclusão decorreu do que a Princesa (agora já destituída) disse sobre o que pensou e sentiu enquanto enterrava o bebê, se havia pensado em seu nome, quando percebia sinais de vida durante o longo tempo que levou para encontrar uma forma de cavar um buraco de maneira a não estragar as flores da sogra, etc.

A propósito, Rapunzel disse que inicialmente pensou que o bebê havia morrido tão logo nasceu, porque bateu a cabeça numa pedra tão logo saiu de sua vagina. Mas que, enquanto lhe cobria com terra, percebia que saía ar de seu nariz e que ele inclusive movia algumas partes do corpo.

Um ano após, já novamente casada, Rapunzel procura a polícia. Alega à autoridade policial que o bebê era fruto de estupros sofridos por parte da Bruxa, quando aprisionada por ela. Sim, era uma Bruxa que portava pênis. O psicólogo foi solicitado pelo escrivão para que acompanhasse a oitiva. Questionada sobre o motivo pelo qual resolveu naquele momento fazer tal revelação, explica que o atual companheiro percebeu que ela tratava muito mal a Bruxa, quando a mesma os visitava. Rapunzel não tinha qualquer carinho, e sequer considerando a condição de cega daquela que, do modo como pôde lidar com seu sentimento de rejeição e privação, criou-lhe. Além disto, ele não entendia plausível a hipótese de que ela tivesse matado um bebê, já que era tão afetuosa com as crianças da comunidade com as quais conviviam. Entretanto, após exumação do corpo, constatou-se que isto não procedia. E Rapunzel nunca mais foi encontrada.

Na mesma Terra do Sempre, alguns anos após, acontece um júri para julgar o caso. O psicólogo foi arrolado pela acusação. Sobre ele, cabe explicar que era o Espelho consultado pela Bruxa da Branca de Neve, que, arrependido dos danos trazidos pela compulsão por falar a verdade, decidiu, após a morte de sua dona, exercer uma profissão na qual considerasse a verdade singular, não-toda e não-eterna. Quanto ao promotor, era a Fera, e só representava o Ministério Público nos momentos em que se sentia mal-amado pela Bela. Algo bem esperado num relacionamento que após o fim da parte conhecida de sua história passou a ser de convivência. A assistente de acusação era Sininho, que nunca elaborou ter sido abandonada por Peter Pan, e decidiu trabalhar nesta função e neste tipo de caso no intuito inconsciente de desmascarar pretensas princesas.

A defesa, por sua vez, era feita pela madrasta da Cinderela, já redimida, procurando reparar junto a outras princesas o que fez com sua enteada. Já o júri, constituía-se dos Três Porquinhos, os Sete Anões e Fadas da Bela Adormecida. Enfim, por trabalhadores comuns. Quanto ao juiz, era Pinóquio. Mas um Pinóquio recalcado, que mal lidou com seus sentimentos de culpa pelas mentiras contadas a Gepetto. Tornou-se um defensor da lei e ordem após a morte daquele que lhe deu a vida de humano. Ele nunca entendeu que a humanidade dada por um pai inicia pela autorização para transgredir a norma, e que não há problema em que se obedeça tal imperativo (que é, a propósito, universal) de que se arque com os custos da independência e solidão. Ele se achava tão poderoso que acreditou que o pai dependia de ser ou não por ele atendido para se sentir amado. Nem mesmo sabia que o pai era um homem, para além de ser seu pai. Desde então, seu nariz cresce toda vez que chega perto do que fantasia ser a verdade real. A tal ponto de só conseguir trabalhar como juiz.

Na audiência, sua preocupação era que o psicólogo dissesse-lhe se Rapunzel havia cometido homicídio ou infanticídio. O Espelho/psicólogo explicou-lhe que não trabalha com o Código Penal. A defesa, quando teve a palavra, foi vista pelo Espelho como um alívio…um momento de descanso. Porém, era apenas uma miragem. Eis que a madrasta da Cinderela ficou feliz quando escutou do Espelho que ele não recordava que havia já sido ouvido na fase judicial a respeito do mesmo caso. Então, bondosamente propôs-se a mostrar as imagens de seu depoimento. O Espelho, até porque não gostava de se ver (achava-se feio, e até por isto optou por ser o que era), recusou dizendo que acreditava na advogada.

Após este susto inicial, o Espelho sentiu-se um pouco mais acolhido ao perceber a sensatez da madrasta/advogada ao pressupor que Rapunzel poderia ter sido estuprada pela Bruxa, ainda que a gestação fosse fruto de relação com outro sujeito. Esperava algum atenuante. Claro que sua insinuação foi feita de uma maneira violenta: perguntou “o senhor, que trabalha diariamente com vítimas de violência, acredita que alguém possa ser estuprado e não engravidar?”.

O Espelho entendeu que não podia esperar que a madrasta não tivesse umas demonstrações de sua bruxice. E que, aliás, seu sarcasmo e imposição de poder fossem sua primeira postura na relação com o outro. Afinal, isso era o que ela é. Valorizou sua postura num segundo momento, quando se mostrou hábil na tentativa de conhecer o que se passava na mente e coração daquela princesa Rapunzel.

Sobre a Fera/promotor, para surpresa do Espelho, mostrou a animalidade própria dos humanos que se gostariam de ser divinos. Nem mais nem menos. Ao receber o Espelho/psicólogo na sala reservada às testemunhas, mostrava-se feliz citando outros profissionais que atenderam Rapunzel e que também se posicionam quanto à integridade de seu estado mental no momento do parto. E não escutou quando o Espelho disse que a questão parecia-lhe maior, e que consideraria a hipótese de Rapunzel haver sido estuprada pela Bruxa, ainda que o bebê morto não fosse fruto dessa violência. Espelho ficou naquela sala até ser chamado, pensando se a Fera não se culpava demais por não ser apenas um Príncipe, e por isto procurou uma profissão na qual continha excessivamente qualquer excesso de maldade por meio da repressão alheia.

O júri foi bastante sensato, procurando inclusive encontrar nomes de transtornos psiquiátricos para formar alguma explicação para o comportamento de Rapunzel. Tudo em nome de tirá-la da bocarra de pau do Pinóquio. Espelho explicou que, se quisermos, todos podemos ser nominados por vários transtornos, já que os mesmos são em quantidade suficiente para isso e o diagnóstico passa inevitavelmente pela subjetividade de quem o faz. Ademais, citou o interesse da indústria farmacêutica nesta avalanche de nomes que pretendem etiquetar o sofrimento humano. Nesta direção, também lembrou que, ao Direito, só interessam os transtornos que, no momento da ação, impossibilitam ou prejudicam a condição do sujeito compreender a ilicitude da ação e/ou agir de acordo com tal compreensão.

Além disto, afirmou que nem toda mulher deseja a maternidade, e que, portanto, pode tratar um bebê como Rapunzel tratou o seu e não necessariamente ser psicótica. Insistiu na idéia de que é possível que ela tenha tratado o bebê daquela forma porque, vítima de estupros por parte da Bruxa, sofreu traumas na área da sexualidade, que podem ter dificultado que ela suportasse a condição de mãe. Por fim, reafirmou que ela não tinha condições de se dirigir de outra forma, e que a abordagem teórico/epistemológica que utiliza não exige que dê nomes de transtornos para justificar esse seu entendimento.

Ao fim da audiência, Fera estava cansada. Talvez tivesse lembrado que não era apenas uma fera. A madrasta da Cinderela estava distraída, com o sentimento de dever cumprido para consigo, procurando um espelho para avaliar como estava sua aparência. Enfim, já mostrando um pouco mais de si. Júri continuava bastante compenetrado e, sendo estranhos naquele lugar, numa função ambígua de espectador e ator. O Espelho saiu de coração partido, indagando-se quando compreenderão que ele não quer mais responder o que os perguntadores querem ouvir. Esperava que um dia entendessem que se olhar, ainda que nos faça enxergar o que não gostamos, não é tão ruim.

Pinóquio, por sua vez, mostrava uma feição desolada. Algo como o que se dá em homens impotentes, quando, ainda na cama após algum esforço, constatam que, mais uma vez, não conseguiram ter ereção. Esperemos que ele aprenda com esse caso que aquele que possui/imagina possuir grandezas (trança, nariz, etc.), nem sempre está muito bem.

Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.

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Imagem Ilustrativa do Post: Rapunzel Landing Background // Foto de: Madambrightside // Com alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/disneysexual/6962012462

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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