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Sobre o furto de comida vencida e colocada no lixo

O artigo aborda o caso de dois homens absolvidos por furtar alimentos vencidos em um supermercado, gerando um debate sobre a criminalização de atos oriundos da miséria e a atuação do Estado nesse contexto. Os autores criticam a insistência do Ministério Público em recorrer da decisão, destacando a falta de justa causa e a ineficiência do sistema penal, enquanto crimes mais graves permanecem sem punição. A reflexão proposta busca discutir a moralidade e a ética das intervenções penais, além dos altos custos envolvidos em processos que, muitas vezes, carecem de relevância social.

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Virou notícia o recurso do Ministério Público inconformado com a sentença que absolveu dois homens acusados de furtar alimentos vencidos no pátio de um supermercado em Uruguaiana/RS. A apelação, que então clamava por “justiça”, recebeu as contrarrazões da Defensoria Pública/RS, que insistiu na manutenção da absolvição dos sujeitos. O lixo, por sua vez, já havia sido restituído e novamente foi descartado. É preciso lamentar, profundamente, que tenhamos chegado nesse ponto de miséria humana, com pessoas pegando e comendo alimentos vencidos jogados no lixo (pomposamente chamado de local de descarte), ou seja, restos de comida. O nível de miserabilidade bate recordes diários, chocando a todos que ainda possuem esse mínimo de humanidade, que é a capacidade de indignação e empatia.

Mas o lamento pode ser ainda mais profundo quando verificamos que, em um cenário como esse, novamente o Estado que se faz presente não é o Estado assistencial, que busca o resgate da dignidade e das condições mínimas de existência, mas o Estado-poder-punitivo. Mais uma vez, quem entra na favela, no morro, na comunidade, nas regiões mais pobres, não é o Estado-auxílio, mas o Estado-porrada. E aqui a porrada veio, novamente, pela via do direito penal e do processo penal. Antes que digam que se trata de “fato isolado”, apresentamos situações semelhantes recentemente noticiadas aqui e aqui.

De qualquer forma, o inquérito (ainda que conclua pela atipicidade material da conduta) será formalizado e remetido ao Ministério Público. E aqui sim, exige- se responsabilidade, coerência e bom senso, pois caberia a ele ordenar o arquivamento (art. 28 com a nova redação, infelizmente suspenso pela liminar do min. Fux) ou requerer ao juiz (redação originária do art. 28 do CPP). Afinal, dentro dos papeis atribuídos pela Constituição, o MP precisou de autonomia para cumprir (talvez) a sua principal função: a defesa social; ou seja, defender realmente a sociedade como um todo (pelo menos até ela ter entidades civis que fizessem isso por si sós, como acontece nas democracias consolidadas), assim como atuar verdadeiramente como dominus litis, produzindo sua prova de modo legal e limpo (banida a estratégia corrosiva), de modo a não mais depender dos juízes. Para um lugar de tanto destaque, era e é necessário liberdade para agir (eis a luta pela aplicação do princípio da oportunidade — pelo menos mitigada — e pelo princípio da disponibilidade), algo que nunca vem sem responsabilidade. O agir do MP (e de qualquer servidor público) deve sempre ser presidido pela moralidade pública (art. 37 da CR) e pela ética, que devem sempre pender em favor do interesse maior do cidadão, número um na coletividade que, como se sabe, na estrutura capitalista, só existe pela somatória deles. Eis por que não se denuncia qualquer caso penal; e muito menos aqueles que abalam a própria moralidade pública.

Também estamos diante de (absoluta) ausência de justa causa. Como já explicado em outro momento1, é preciso abandonar as categorias do processo civil e construir uma teoria da acusação, na qual a justa causa2 seja a espinha dorsal das condições de admissibilidade (e exercício) da acusação. Neste sentido, é clássico o trabalho de ASSIS MOURA3 advertindo sobre a indefinição que paira em torno do conceito, na medida em que “causa possui significado vago e ambíguo, enquanto que justo constitui um valor”. E prossegue4 lecionando que a justa causa exerce uma função mediadora entre a realidade social e a realidade jurídica, avizinhando-se dos “conceitos-válvula”, ou seja, de parâmetros variáveis que consistem em adequar concretamente a disciplina jurídica às múltiplas exigências que emergem da trama do tecido social. Mais do que isso, figura como um “antídoto, de proteção contra o abuso de Direito”5. Evidencia assim, a autora, que a justa causa é um verdadeiro ponto de apoio (topos) para toda a estrutura da ação processual penal, uma inegável condição da ação penal, que, para além disso, constitui um limite ao (ab)uso do poder de acusar — ius ut procedatur.

Como bem sintetiza BITENCOURT6, “o caráter fragmentário do Direito Penal significa que o Direito Penal não deve sancionar todas as condutas lesivas a bens jurídicos, mas tão somente aquelas condutas mais graves e mais perigosas praticadas contra bens mais relevantes”. É, ainda, um corolário do princípio da intervenção mínima e da reserva legal, como aponta o autor. A filtragem ou controle processual do caráter fragmentário encontra sua justificativa e necessidade na inegável banalização do Direito Penal. Quando se fala em justa causa, está se tratando de exigir uma causa de natureza penal que possa justificar o imenso custo do processo e as diversas penas processuais que ele contém. Inclusive, se devidamente considerado, o princípio da proporcionalidade visto como proibição de excesso de intervenção pode ser visto como a base constitucional da justa causa. Em outras palavras, deve existir uma clara proporcionalidade entre os elementos que justificam a intervenção penal e processual, de um lado, e o custo do processo penal, de outro.

Mas, no Brasil, já normalizamos a máxima de que sempre pode ficar pior…

Então, pasmem, o ministério público apela dessa decisão. Ou seja, se imaginarmos isso como continuação do poder de acusar, trata-se de persistência do abuso, que toma dimensões maiores, na medida em que perpetua a custosa, mas aqui indevida, atuação do Estado jurisdição e todo o pesado sistema de administração da (in)justiça (como nesse caso).

Por fim, para aqueles que perderam o senso de humanidade, adequação e noção de proporcionalidade da intervenção estatal, e seguem discordando da nossa crítica à falta de significância jurídica e social da conduta, bem como à elementar falta de justa causa para acusar, invocamos um argumento economicista (e tão em voga nesses tempos de ressurgimento radical do neoliberalismo, de eficientismo, e invocações de Friedman): qual a relação custo-benefício para a intervenção penal e estatal por tão pouco?

Enquanto estão ocupando tempo de caríssimas estruturas de Estado, como da polícia e de seus servidores; da estrutura cartorária jurisdicional; do Ministério Público e toda sua igualmente caríssima estrutura; tempo do juiz e até dos estagiários do juiz e do MP, com condutas absolutamente irrelevantes como as em questão, os processos por crimes de latrocínio, de roubo com emprego de arma de fogo, de estupro, por crimes com violência ou grave ameaça, etc., estão parados nas prateleiras — ironicamente, correndo o risco de ter o “prazo de validade vencido”, à semelhança da comida que estragou e foi para o lixo.

Em suma, se os argumentos de humanidade e bom senso não seduzem os punitivistas de plantão, que ao menos reflitam a partir da mencionada perspectiva econômica: é inegável o imenso custo gerado à máquina pública, ao que se somam o entulhamento e a ineficiência de todo o sistema da Administração da Justiça. Falando nisso, agora resta esperar para saber do andamento do caso que nos moveu a escrever a coluna de hoje: será que chega ao STF?

Post scriptum…

“Um dia descobri que cantava.

O meu filho mais velho João Carlos estava morrendo e eu já tinha perdido 2 filhos e não queria perder mais um.

Eu não tinha dinheiro pra cuidar do meu filho e ouvi no rádio que o programa do Ary Barroso de calouros Nota 5, estava com o prêmio acumulado. Não sei como, mas eu sabia que ia buscar esse prêmio!

Fiz a inscrição e me avisaram que eu precisava ir bonita. Mas eu não tinha roupa nem sapatos, não tinha nada! Então, eu peguei uma roupa da minha mãe, que pesava 60kg e vesti, só que eu pesava 32kg, já viu né? Ajustei com alfinetes. Tudo bem que agora é moda, né? Hoje até a Madonna usa, mas essa moda aí fui eu que comecei viu? Alfinetes na roupa é muito meu, é coisa de Elza!

No pé coloquei uma sandália que a gente chamava de ‘mamãe tô na merda’, e fui!

Quando me chamaram, levantei e entrei no palco do auditório. O auditório tava lotado, todo mundo começou a rir alto debochando de mim

Seu Ary me chamou e perguntou:

— O que você veio fazer aqui?

— Eu vim Cantar!

— Me diz uma coisa, de que planeta você veio?

— Do mesmo planeta seu, Seu Ary.

— E qual é o meu planeta?

— PLANETA FOME!

Ali, todo mundo que estava rindo viu que a coisa era séria e sentaram bem quietinhos.

Cantei a música Lama.

O Gongo não soou e eu ganhei, levei o prêmio e meu filho está vivo até hoje, graças a Deus!

De lá pra cá, sempre levo comigo um Alfinete.

Naquela época eu achava que se tivesse alimentos pros meus filhos, não teria mais fome. O tempo passou e eu continuei com fome, fome de cultura, de dignidade, de educação, de igualdade e muito mais, percebo que a fome só muda de cara, mas não tem fim.

Há sempre um vazio que a gente não consegue preencher e talvez seja essa mesma a razão da nossa existência.”

Elza Soares

1 LOPES JR., Aury. “Direito Processual Penal”, 18ª edição, Editora Saraiva Educação, São Paulo, 2021, p. 241 e ss. e ainda, com mais profundida na obra “Fundamentos do Processo Penal”, 7ª edição, Editora Saraiva Educação, São Paulo, 2021, p. 169 e ss.

2 Neste tema, fundamental o trabalho de Gabriel Antinolfi Divan, “Processo Penal e Política Criminal: uma reconfiguração da justa causa para a ação penal”, publicado pela editora Elegantia Juris.

3 ASSIS MOURA, Maria Thereza Rocha. “Justa Causa para a ação penal”. Editora RT, 2001, p. 99.

4 Idem, ibidem, p. 119.

5 Idem, ibidem, p. 173.

6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. São Paulo, RT, 2005. v. 1, p. 19.

Referências

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