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Prostituição adolescente e a repulsa pelo direito à sexualidade adolescente

O artigo aborda a discrepância entre a legislação que permite a exploração da sexualidade adolescente e a criminalização da prostituição infantil. A autora, Maíra Marchi Gomes, discute como a sociedade e o Direito tratam o adolescente como vulnerável, enquanto simultaneamente reconhecem sua capacidade de exercer sua sexualidade, gerando contradições sobre a sua autonomia e escolhas. A reflexão aponta para a necessidade de compreender a sexualidade na adolescência de forma mais ampla, sem reduzi-la a vítimas ou comportamentos imorais.

Artigo no Empório do Direito

Por Maíra Marchi Gomes – 11/01/2016

Deixe-me ir, preciso andar Vou por aí a procurar Rir pra não chorar

Quero assistir o sol nascer Ver as águas dos rios correr Ouvir os pássaros cantar Eu quero nascer e quero viver

(…)

Se alguém por mim perguntar Diga que eu só vou voltar Depois que eu me encontrar

Cartola

É interessante pensarmos no horror perante a prostituição (abordado na semana anterior) quando acrescido de outro elemento: o horror à sexualidade adolescente. Tal discussão demonstra ser pertinente pela simples contradição entre a permissão pelo Direito de que o adolescente exerça sua sexualidade a partir dos 14 anos (marco estabelecido para que se perca a condição de vulnerável), e a forma com que o mesmo Direito trata a prostituição infantil.

Refiro-me especificamente ao entendimento de que, para configurar o crime previsto no artigo 244-A do ECA (submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual), não é necessário que a vítima se oponha aos atos de coerção ou submissão, uma vez que o estatuto protetivo já pressupõe sua hipossuficiência volitiva, a ensejar maior tutela estatal. Ocorre que, se para o ECA há uma generalização daquele considerado adolescente (doze aos dezoito incompletos), no que diz respeito à sexualidade, o Código Penal diferencia os menores e maiores de quatorze anos.

Como se fosse digno o adolescente manter relações sexuais por vários motivos, mas não em troca de dinheiro. Como se sabe, o adolescente (assim como os adultos) pode usar o sexo como moeda de troca de vários tipos. Até por bens materiais. Se o Direito autoriza-o a transar após 14 anos, e não entra no mérito do que ele espera ganhar por isto, por que se intrometeria quando aquilo o que ele busca é dinheiro?

Discorramos, então, um pouco sobre a dificuldade de se suportar a sexualidade adolescente. Uma dificuldade que, no caso dos operadores do Direito, traz esta contradição na apropriação de duas diferentes legislações quando a questão é a prostituição por adolescentes.

Calligaris (2000) apresenta-nos os obstáculos encontrados pelo sujeito para vivenciar o período da adolescência na contemporaneidade ocidental. Como um de seus efeitos, ele cita um determinado uso do próprio corpo, do qual, mesmo sem refletir diretamente sobre a sexualidade adolescente, fornece um terreno de discussões que nos permitem fazê-lo como se segue.

Antes de tudo, haveria o paradoxo de se convidar o sujeito adolescente a compartilhar um dos pilares fundamentais da sociedade contemporânea ocidental, o culto à independência, e, ao mesmo tempo, impedi-los de ser, de fato, “mais um” dentre os adultos. Tal “moratória” – esse tempo de espera em que, mesmo de posse de todas as condições físicas de um adulto, o adolescente deve aguardar a legitimação de sua independência – seria mais penosa que a dor própria dessa etapa, já que o intervalo entre a maturação biológica e a independência seria demasiado extenso na sociedade moderna, na qual a independência é alienada ao capital.

A mensagem dúbia na qual “o adulto é o ideal que os adolescentes devem perseguir”, e ao mesmo tempo “os adolescentes não podem ser adultos”, talvez seja mais bem compreendida a partir de outro aspecto da sociedade contemporânea ocidental: a noção do que seja “adultez”. Calligaris (2000) descreve o “adulto”, aqui e agora, como o desejável e o invejável para o adolescente, a despeito da precária, inexistente ou restrita demarcação social do que seja tal estatuto. A transformação que traz o reconhecimento pelo sujeito dos próprios desejos sexuais faz com que, na puberdade, o adolescente se torne potencial competidor para os adultos, tanto em termos de sedução, quanto de enfrentamento. Mas a puberdade só se torna problemática (e daí constituir-se no que chamamos “adolescência”) quando o olhar adulto não legitima tal transformação como uma passagem à adultez.

Pode-se pensar, a partir desta passagem, que a precária ou inexistente demarcação social do que venha a ser um adulto (porque as alterações do corpo não mais são suficientes) será particularmente problemática para o adolescente, cuja fase de desenvolvimento se caracteriza, dentre outras questões, justamente pela reformulação da resposta a um enigma fundamentalmente estruturante: “o que o outro quer de mim?”. Em outros termos: “onde me situo no desejo do outro?“. Ora, o que ele encontra como resposta parece ser apenas a certeza de que seu corpo não é desejado. Portanto, uma resposta que o exclui (pela via do corpo) e não o inclui. Para irmos direto ao ponto: é possível indagar sobre a violência da sociedade pós-moderna ocidental ao convocar, como demarcação da adultez, a sedução como resposta a este enigma, e, ao mesmo tempo, destituir o corpo do adolescente como resposta.

Neste sentido é também possível abordar os efeitos que certo tratamento do corpo do púbere terá para a construção da adolescência, levando a um maior aprofundamento de um aspecto ao qual Calligaris (2000) apenas referiu: “negação” ou “destituição” da puberdade. Ou, poder-se ainda dizer, certo “rechaço” desse corpo que não mais é o de uma criança, mas já habitado por desejos adultos.

Tome-se um determinado e paradoxal uso do corpo pelos adolescentes como forma de demarcar para os adultos o fato de não serem mais crianças e, ao mesmo tempo, parecerem adultos: o ato de enfear-se. Em sua análise das possíveis funções para o adolescente do tratamento que poderíamos chamar “desqualificador” do próprio corpo, o autor defende que, para além de uma recusa da sexualidade, trata-se de uma recusa do valor social da desejabilidade.

Mas não apenas, outras funções podem ainda ser vislumbradas para o “enfear-se”, por exemplo, a proteção de um olhar que supostamente não o considera desejável. Neste caso, o adolescente atribuiria a sua decisão ao fato de não ser desejável. Ainda a ressaltar que a feiúra seria um erotismo que transgride a norma, que não se submete aos ícones sociais de desejabilidade. Logo, seria da ordem de um exibicionismo escancarado; e o que estaria em questão com as transgressões estéticas não seriam transgressões sexuais ou morais, mas busca de conforto na indignação, medo e susto dos adultos. Reconhecer-se pela via do olhar do adulto como um ser perigoso, atrevido e sexy seria a maneira de o adolescente reconhecer-se como adulto.

Cabe ainda apontar, com o autor, que esta “destituição do estatuto de objeto de desejo” feita pelo adolescente do próprio corpo possui duas funções transgressivas: demarcar o quão angustiante é o valor social da desejabilidade e que seu corpo já é adulto. Talvez dissesse, ao mesmo tempo, que o valor social da desejabilidade não seria tão angustiante caso lhe fosse autorizado responder com seu corpo.

Daí a importância de autorizar aos adolescentes constituírem-se como adultos pela via do corpo, e, por fim, apontar que seu corpo já não é o de criança. Não deveria ser mais o caso de se assustar com a sexualidade adolescente. O horror à sexualidade adolescente leva basicamente a duas representações: ou bem ele é vítima, e, restringindo-se a uma leitura comportamental da violência, desconsidera-se ser seu desejo antes de tudo inconsciente; ou bem ele é um ser doente ou imoral, e deixa-se de levar em conta que constitucionalmente a sexualidade humana não se satisfaz apenas pela via do prazer.

Nesta direção, cabe lembrar que, para Calligaris (2000), algumas dificuldades na passagem pela adolescência decorrem do ideal dos adultos pós-modernos ocidentais de serem adolescentes. A partir de uma revisão histórica do tratamento despendido às crianças na modernidade, do próprio surgimento da noção de adolescente, ele explica que o prolongamento da infância é efeito da responsabilização que nela se projetou pelo alcance de um sucesso faltante aos adultos. Nesta mesma linha, haveria ambiguidade no tratamento despendido ao adolescente, a quem não se delegam obrigações e responsabilidades (no intuito de manter a ilusão da infância feliz, inocente e protegida), ao mesmo tempo esperando que eles tenham as mesmas exigências e voracidades dos adultos, já que seus prazeres também passam pelo sexo e pelo dinheiro. Esta ambiguidade resultaria da felicidade que adultos gostariam de ter aqui e agora.

Dito de outra maneira: o adolescente é no Ocidente alvo preferencial das projeções dos desejos ideais de felicidade, inocência e despreocupação dos adultos, porque, diferentemente das crianças, é um ideal possivelmente identificatório. Eles têm corpos semelhantes aos dos adultos em formas e prazeres igualmente semelhantes “e, ao mesmo tempo, graças à mágica da infância estendida até eles, são ou deveriam ser felizes numa hipotética suspensão das obrigações, das dificuldades e das responsabilidades da vida adulta” (Calligaris, 2000, p.69). Pode-se então pensar que a dificuldade contemporânea ocidental em permitir ao adolescente desenvolver-se até a adultez é explicada pelo ideal dos adultos de serem adolescentes. De fato a situação do adolescente é de inércia quando lhe é apregoado que mantenha os mesmos desejos que os adultos (sexo e dinheiro) e que seja irresponsável como uma criança. A mensagem com o qual os enfeitiçados adultos o enfeitiçam: “É possível não se responsabilizar pelo próprio desejo. Qualquer que seja. E disso você já sabia!”.

Resta ainda retomar neste momento a ideia de ser a independência um valor contemporâneo ocidental, para nos indagar se, essencialmente, não seria a independência do próprio desejo o maior ideal contemporâneo ocidental. Em uma palavra, temos uma sociedade na qual não há crianças nem adultos, porque o adolescente consegue integrar o que é mais idealizado em ambos na pós-modernidade ocidental: o desejo por sexo e dinheiro e a irresponsabilidade pelo próprio desejo.

Deveria ser possível encarar um adolescente que possui uma sexualidade ativa e que se interessa por dinheiro, e não julgá-lo necessariamente como vítima de algum crime, ou imoral/doente caso, por exemplo, use o sexo como moeda de troca. Afinal, os adultos fazem-no (às vezes em troca de presentes, jantares, viagens, e às vezes em troca de dinheiro propriamente), e se o adolescente após 14 anos não mais é presumivelmente inocente, também se deve admitir que o façam. Assim, o adolescente pode transar em troca de sanduíche, bijuteria, passeio de carro, roupa, tênis, estando ou não isto claro a ele. Pode, aliás, transar em troca de dinheiro.

Talvez sejamos todos, adolescentes e adultos, prostitutos em certa medida quando nos relacionamos com o outro. E a isto não deveria atribuir juízo de valor. É a vida como ela é. São as coisas como elas são.

Também se deveria, caso se admitisse a prostituição como um trabalho que pode ser escolhido tão livremente quanto qualquer outro (algo que, conforme dito semana passada, parece ser difícil para o Direito), admitir que o adolescente trabalhe com isto. Afinal, o ECA permite que ele trabalhe após os 14 anos (e, respeitando diferentes critérios, após os 16), não é? Ou será que o trabalho de adolescentes no Bob’s, no McDonald’s e na indústria de fumo é mais digno?

É possível que a prostituição (aquela mais velada, e esta mais explícita) adolescente seja resultado de conflitos psíquicos? Sim, como a realizada pelo adulto. Mas fica a dúvida: é possível alguma relação sexual e alguma escolha profissional em que não estão em jogo questões psíquicas mal elaboradas?

Em outros termos, é possível alguma relação sexual ou trabalho em que não se trocam moedas? É sempre uma aposta de que ali ganharemos ou perderemos menos do que já perdemos. É sempre algo que se faz com as fichas e cartas que se possui. E os adolescentes, já habitados desejo por sexo e dinheiro, entraram/foram cooptados no jogo.

Notas e Referências: Calligaris, C. (2000). A adolescência. São Paulo, SP: Publifolha. (Folha explica)

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Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.

Facebook (aqui) .

Imagem Ilustrativa do Post: Portrait #71 – Camélia // Foto de: Valentin Ottone // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/saneboy/3050003040

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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