Artigos Conjur – Duas crianças ‘mortas’, dois ‘erros judiciários’, ‘só que não’

Artigos Conjur
Artigos Conjur || Duas crianças ‘mortas’, doi…Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

Duas crianças ‘mortas’, dois ‘erros judiciários’, ‘só que não’

O artigo aborda o caso de Sally Clark, uma mãe condenada por assassinato após a morte súbita de seus dois filhos, e a injustiça envolvida, ressaltando a utilização inadequada de estatísticas e a influência do espetáculo no processo penal. Também discute o caso de Lucélia Maria da Conceição Silva, indiciada por envenenamento de crianças, enfatizando a falta de responsabilidade do Estado em casos de erro judiciário. Os autores defendem a necessidade de uma abordagem científica e racional no judiciário para evitar tais tragédias.

Artigo no Conjur

1. Manchete: a notícia

“Tragédia inimaginável! Maldição assombra família após segunda morte súbita de Filho! Dois jovens. Duas mortes inexplicáveis ou crimes? Uma família destruída.

Duas crianças indefesas. Duas mortes inexplicáveis. Uma família devastada. Em Cheshire, Inglaterra, uma mãe de 36 anos, Sally Clark, perdeu seus dois filhos. Christopher, seu primeiro filho, faleceu em dormindo às 11 semanas de idade, com a morte sendo considerada de causas naturais, sem sinais de negligência.

No entanto, 18 meses depois, seu segundo filho, Harry, também morreu de forma súbita às 8 semanas. Ambas as crianças aparentemente saudáveis foram vítimas de morte súbita, levantando dúvidas sobre a mãe. “É impossível, duas vezes, na mesma família!“, declarou um “especialista”. “Algo de errado não está certo”.

A acusação contra Sally resultou em sua prisão quatro semanas após a morte de Harry, com a acusação de assassinato, influenciada pela declaração do pediatra Roy Meadow de que que a “probabilidade” de duas mortes por “morte súbita” (natural) na mesma família era de “1 em 73 milhões”.

Sally foi condenada à prisão perpétua (duas vezes).

2. Realidade

A triste realidade por trás da tragédia: aleatoriedade e coincidência, por mais “inacreditáveis” que pareçam, existem.

Embora a morte súbita em famílias seja rara, a realidade é que ela pode ocorrer mais de uma vez. O sensacionalismo em torno do caso de Sally demonstra como a “intuição popular”, muitas vezes baseada em ditados como “relâmpago não cai duas vezes no mesmo lugar”, pode levar a conclusões precipitadas, irracionais e injustas.

Do ponto de vista “estatístico”, a ocorrência de dois eventos raros em sequência é mais comum do que se imagina. Fatores genéticos e desconhecidos podem contribuir para a suscetibilidade a mortes súbitas na mesma família (no caso havia bactérias potencialmente letais nos laudos cadavéricos que foram omitidas à defesa).

3. Cronologia

4. Erro judiciário

Um erro judiciário ocorre quando uma pessoa sofre consequência em face uma acusação não confirmada por decisão favorável. Entretanto, no Brasil, a posição adotada pelo Supremo Tribunal Federal, desde o Ag.Rg. RE 752.938, ministra Rosa Weber, julgado em 10/9/2013, esvaziou o “âmbito de incidência” do “erro judiciário”, ao declarar:

“A jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal consolidou-se no sentido de que, salvo nos casos objeto do art. 5º, LXXV, da Constituição Federal – erro judiciário e prisão além do tempo fixado na sentença –, e daqueles expressamente previstos em lei, a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos judiciais”.

Em consequência, consideram-se meros “efeitos colaterais” as situações em que “investigados ou acusados” submetem-se à prisão cautelar e, depois, são absolvidos ou sequer denunciados:

“Responsabilidade civil do Estado. Prisão cautelar determinada no curso de regular inquérito policial. Não indiciamento do investigado. Danos morais. Dever de indenizar. Descabimento. Fatos e provas. Reexame. Impossibilidade. […] 2. O Tribunal de Justiça concluiu, com base nos fatos e nas provas dos autos, que não foram demonstrados, na origem, os pressupostos necessários à configuração da responsabilidade extracontratual do Estado, haja vista que a prisão preventiva a que foi submetido o ora agravante foi regular e se justificou pelas circunstâncias fáticas do caso concreto, não caracterizando erro judiciário posterior não indiciamento do investigado. Incidência da Súmula nº 279/STF. 3. A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal firmou-se no sentido de que, salvo nas hipóteses de erro judiciário, de prisão além do tempo fixado na sentença – previstas no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal -, bem como nos casos previstos em lei, a regra é a de que o art. 37, § 6º, da Constituição não se aplica aos atos jurisdicionais quando emanados de forma regular e para o fiel cumprimento do ordenamento jurídico”. [STF, ARE 939.966 AgR, ministro Dias Toffoli, 2ª T, j. 15/3/2016]

Eis o estado da arte. Mas nos “direitos patrimoniais”, no entanto, o tratamento é outro.

5. Responsabilidade pela tutela de urgência: CPC, artigo 302

Mantendo a diretriz do CPC de 1973, o de 2015, de modo claro e direto, estabeleceu:

“Art. 302. Independentemente da reparação por dano processual, a parte responde pelo prejuízo que a efetivação da tutela de urgência causar à parte adversa, se:

“I – a sentença lhe for desfavorável”;

Se o Estado é inerte e a parte autora promove ação, obtendo “tutela de urgência” (CPC, artigo 300), mas a decisão final é desfavorável, então a responsabilidade civil é objetiva, bastando que a parte ré comprove a “relação de causalidade” entre o “efeito da tutela de urgência” com os “danos” ou “prejuízos” experimentados. Logo, no ambiente patrimonial, a responsabilidade é ampla, obrigando o autor a recompor o “status quo ante”.

De modo comparativo, no Direito Penal a “liberdade” é rebaixada, em geral, a “mero dissabor”. Alexandre e Luiz Eduardo Cani, no Guia para Mitigação dos Erros Judiciários (Florianópolis: EMais, 2022, p. 153-154), destacam:

“Embora a discussão sobre os erros judiciários tenha surgido, ao menos entre os juristas, no contexto das reivindicações indenizatórias, […] em geral pelo “enquadramento” equivocado das premissas do domínio. Isso se deve, preponderantemente, ao já muito antigo entendimento de que o erro judiciário incide tão só no resultado do processo, ou seja, na condenação ou absolvição. Ou, com maior exatidão: de que erro judiciário é a condenação de um inocente ou a absolvição de um culpado. Despreza-se no campo penal, ao contrário do cível (em que as tutelas deferidas em favor do autor implicam a responsabilidade pelos danos ocasionados), a efetiva restrição de direitos subjetivos em face do percurso das agências de controle estatal. É que a simples instauração de Inquérito Policial ou Termo Circunstanciado gera efeitos nefastos na vida pública do agente”

“No tocante ao dano decorrente do tempo de vida desperdiçado, a teoria do desvio produtivo do consumidor (Marcos Dessaune) constitui parâmetro relevante e útil – inclusive já vem sendo aplicada noutras áreas, como no direito do trabalho. Tendo em vista que o Brasil optou expressamente na Constituição pelo sistema econômico capitalista (art. 170, II e IV), uma das consequências imediatas é a de que o dinheiro é imprescindível à sobrevivência. Então, se o tempo de prisão não for considerado como modalidade de dano indenizável, não há como negar, por outro lado, que durante o tempo em que alguém fica à disposição do juízo, mormente quando em prisão cautelar, deixa de obter condições para a própria sobrevivência, de galgar posições no mercado de trabalho, de aproveitar oportunidades de negócios e inúmeras outras atividades com potencialidades econômicas que não podem ser medidas ou, ainda, de perder o emprego/ocupação diante da ruptura da dinâmica do trabalho por ato que ao final se mostrou injustificado. Esse é o dano. O valor da indenização deve ser arbitrado como forma de compensação, porque em casos de condenações indevidas e de prisões indevidas não há nada que possa “reparar” o tempo de vida perdido. Resta apenas fixar algum valor para compensar.”

6. Manchete: Mulher envenena duas crianças com veneno de rato

Suspeita de dar caju envenenado para crianças é indiciada por homicídio e motivo torpe (aqui)

“A Polícia Civil de Parnaíba concluiu, após 45 dias, o inquérito que investigava o envenenamento de duas crianças em Parnaíba, no litoral do Piauí, no dia 22 de agosto […] A investigação concluiu que a vizinha deles, Lucélia Maria da Conceição Silva, foi realmente a autora do crime e a indiciou por homicídio qualificado e tentativa de homicídio, além da qualificadora de motivo torpe.

“As investigações apontaram que a suspeita teria envenenado cajus após as crianças subirem no muro da casa dela para pegar frutos em uma árvore. A ação dela seria uma retaliação à ação das crianças, contra quem já havia feito ameaças.

“O delegado regional de Parnaíba […], disse à TV Cidade Verde que os laudos feitos pelo Instituto de Criminalística confirmaram que o veneno encontrado no corpo da criança, onde foi feita a necrópsia, foi o mesmo que foi encontrado na casa da suspeita do crime. Ela está presa desde o dia 23 de agosto, um dia após o crime, após serem encontrados os indícios do crime na casa dela”.

Depois de mais de quatro meses presa, sob ameaça de morte constante, casa incendiada, Lucélia Maria da Conceição Silva foi solta:

“A Justiça do Piauí soltou nesta semana Lucélia Maria da Conceição Silva, de 52 anos, que estava presa desde agosto do ano passado, após ter sido acusada de envenenar os irmãos Ulisses e João Miguel Silva, de 8 e 7 anos, respectivamente, em Parnaíba, no litoral do estado. A informação foi confirmada pelo Ministério Público.

“A decisão foi tomada após a divulgação de um laudo do Instituto de Medicina Legal (IML), que, cinco meses após as mortes, descartou a presença de veneno nos cajus que Lucélia teria oferecido às crianças. Os meninos, filhos de Francisca Maria, faleceram em agosto de 2024, após ingerirem os cajus, o que inicialmente levou a polícia a acreditar que a acusada fosse a responsável pelo envenenamento” (aqui).

A injustiça, a privação da liberdade, os dados e prejuízos, a prevalecer a posição majoritária, estão fora do “erro judiciário”.

7. Sally e Lucélia: erros judiciários lógicos

O pano de fundo e a linha que envolve: (1) a prevalência do “Processo Penal do Espetáculo”, na feliz construção de Rubens Casara (CASARA, Rubens. Processo Penal do Espetáculo: ensaios sobre o poder penal, a dogmática e o autoritarismo na sociedade brasileira. Florianópolis: Empório do Direito, 2015), a partir de Guy Debord; (2) erro lógico quanto à inferência de que “dado” que Lucélia tinha o “veneno em casa”, havia suficiência causal.

A condenação de Sally Clark e a prisão de Lucélia Silva demonstram o uso inadequado de estatísticas em julgamentos, suscitando questões sobre a importância de padrões científicos, a integridade e o uso adequado de argumentos estatísticos em casos penais, além da exigência quanto às “competências” técnicas dos agentes processuais que, no caso, “deram causa à restrição da liberdade” (ato ilícito porque desprovido de causa válida, ainda que “lotados” de “boas intenções”).

Mantido o atual posicionamento quanto ao “erro judiciário”, tendo em vista que a prisão cautelar tinha fundamento, mesmo tendo sido vítima de um erro estatístico primário, causa do pedido e da decretação da prisão cautelar, Lucélia Maria da Conceição Silva nenhuma indenização receberá.

Enquanto isso, a Inglaterra reconheceu o “erro judiciário” no caso de Sally Clark, ainda que jamais possa recompor o “status quo ante”, mas pode “dar um salto para o futuro”, com reformas técnicas e formação qualificada, evitando a reiteração de erros colegiais de agentes públicos.

O julgamento estatal deve se apoiar em provas válidas, com suporte científico e raciocínio lógico, porque a busca por justiça e verdade assume o dever de conformidade democrática. Do contrário, prevalecem critérios irracionais e incontroláveis, com final, em geral, “trágico” e, no Brasil, “não indenizável”, porque o Estado é “irresponsável” pela “prisão cautelar de uma inocente”. Todo cuidado é pouco.

[1] Fontes: https://www.lawteacher.net/free-law-essays/criminal-law/miscarriage-of-justice-case-sally-clark.php; a https://evidencebasedjustice.exeter.ac.uk/case/sally-clarke/

[2] A reputação e a credibilidade do médico Roy Meadow foram afetadas após a anulação da condenação de Sally Clark por ter emitido afirmação maliciosa, desprovida de sustentação teórica, além de desconsiderar evidências que apontavam para presença de bactérias potencialmente tóxicas nas crianças.

[3] Fontes: https://www.lawteacher.net/free-law-essays/criminal-law/miscarriage-of-justice-case-sally-clark.php; a https://evidencebasedjustice.exeter.ac.uk/case/sally-clarke/

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Alexandre Morais da Rosa || Mais conteúdos do expert
        Aury Lopes Jr || Mais conteúdos do expert
          Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

          Comunidade Criminal Player

          Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

          Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

          Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

          Ferramentas Criminal Player

          Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

          • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
          • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
          • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
          Ferramentas Criminal Player

          Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

          • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
          • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
          • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
          • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
          • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
          Comunidade Criminal Player

          Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

          • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
          • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
          • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
          • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
          • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
          Comunidade Criminal Player

          A força da maior comunidade digital para criminalistas

          • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
          • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
          • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

          Assine e tenha acesso completo!

          • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
          • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
          • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
          • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
          • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
          • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
          • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
          Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

          Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

          Quero testar antes

          Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

          • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
          • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
          • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

          Já sou visitante

          Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.