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A pena fixada na delação premiada vincula o julgador na sentença?

O artigo aborda a relação entre a pena acordada na delação premiada e a atuação do juiz no processo penal, discutindo como a cultura inquisitória brasileira impacta a posição do julgador. Os autores analisam a necessidade de uma postura adversarial, especialmente na homologação de penalidades, enfatizando que a manutenção da boa-fé e da certeza quanto aos limites acordados é crucial para a legitimidade do sistema. A obra reflete sobre a inconsistência entre o modelo processual previsto na Constituição e a prática atual, ressaltando a importância de um juiz que respeite as regras do jogo processual.

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O juiz acaba tendo sua função e posição manipuladas e manipuláveis. Daí a necessidade, constante, de compreender que mesmo um sistema dito misto (já que os modelos puros são tipos históricos), é preciso atentar para o núcleo fundante, formado por um princípio (e não existe princípio misto)[1]. Se o principio for inquisitivo, a gestão e iniciativa probatória estarão nas mãos do juiz (um juiz-ator), com amplos poderes e espaço de ativismo. É o que temos no atual CPP, um processo (misto) inquisitório, pois seu núcleo fundante é o princípio inquisitivo, consagrado no artigo 156 do CPP que atribui a gestão/iniciativa probatória ao juiz, mas também em diversos outros dispositivos que permitem ao juiz agir de ofício na busca da prova e condução do processo, como por exemplo, no artigo 385 (o juiz poderá condenar ainda que o ministério público peça a absolvição!).

Já no processo (misto) acusatório, orientado pelo princípio dispositivo (ou acusatório para alguns), temos a figura do juiz-espectador, uma estrutura efetivamente dialética, em que as partes debate, produzem provas e até negociam a pena, cabendo ao juiz decidir. Esse é o modelo desenhado na Constituição, não só porque determina que o Ministério Público é o titular da ação penal (artigo 129,I), mas também porque consagra do contraditório (artigo 5º, LV) e o próprio devido processo (artigo 5º, LIV).

Portanto, o CPP desenha um lugar e modelo de juiz, ao passo que a Constituição traz outra configuração que, obviamente, deveria prevalecer. Infelizmente a cultura inquisitória distorce essa relação e agudiza a crise existencial do modelo ‘misto’ brasileiro, refletindo diretamente nos institutos da justiça negocial e na posição que o juiz deve ocupar nesse jogo.

No Brasil, em que a tradição inquisitória prevalece — na qual o juiz é o protagonista da gestão da prova, com atuação proativa[2] — embora incompatível com o modelo constitucional, sofre a influência do modelo norte-americano. Devemos, então, ter um mínimo de coerência e adotar a postura adversarial, especialmente no momento da colaboração premiada. O problema é que, como veremos, na cooperação premiada à brasileira, o juiz confunde seus papéis e funções, em um “mix” de atividades inconciliáveis democraticamente.

Quando se tem amorfismo (ou insuficiência legislativa, como no caso da Lei 12.850) aliado ao decisionismo (Lenio Streck), cria-se a pior mistura de todas: falta de regras claras e aumento dos espaços impróprios da discricionariedade judicial.

O modelo de Justiça norte-americano vincula-se às regras do jogo, já que a autoridade do governo é tida como delegada, dentro do modelo liberal, de árbitro. Invoca-se a figura do juiz de futebol, que aplica as regras e resolve as disputas entre os jogadores, daí o modelo acusatório. A lealdade no jogo, entre os jogadores, informa a ética dos julgamentos, que podem se valer de todas as armas e jogadas. A função do julgador é a de garantir as regras operacionais do jogo processual em face da imparcialidade (afastamento objetivo e subjetivo da estratégia dos jogadores[3]), assim como o árbitro do jogo de futebol[4] que não pode, sob pena de transformar a partida em farsa, comprometer-se com o resultado. No exercício dessa função, todavia, há zona cinzenta que é a lei da vantagem, já que o reconhecimento de falta (nulidade), por violação da regra do jogo, depende da sua manifestação. Daí que a atitude do julgador em indicar as regras que serão aplicadas, sempre a depender do mapa mental e do contexto, bem como das recompensas, manifesta-se como pressuposto do fair play. Assim é que julgadores apitarão falta em qualquer violação, enquanto outros deixarão o jogo processual correr “frouxo”.

Para que o mercado da pena possa ter êxito, todavia, será necessário depositar confiança de que o julgador respeite, no momento da aplicação da pena, os exatos limites dos que for acordado e homologado, sem a inserção de novas modalidades, mesmo medidas cautelares como o monitoramento eletrônico, sob pena de violar a boa-fé. Ganha espaço, dentro do contexto do jogo[5] de boa-fé, a discussão sobre o comportamento processual contraditório, conhecido do direito civil pela expressão ‘venire contra factum propium’[6], consistente no estabelecimento, a partir da confiança e da boa-fé objetiva, de uma expectativa sobre os comportamentos futuros, a saber, um primeiro comportamento do jogador, incluindo o julgador, promove a necessidade de coerência com o comportamento posterior.

Dessa forma, é preciso estabelecer claramente qual é o papel e o lugar do juiz no jogo processual negocial, sob pena de colocar toda a estrutura por terra. A preocupação é fundada e relevante no cenário brasileiro, principalmente a partir das manipulações feitas dentro do tal sistema processual “misto” anteriormente mencionadas.

Evidentemente que os jogadores não são obrigados a pensar e/ou a se comportar do mesmo modo durante o resto da vida, porém, exige-se que a alteração tenha uma justificação nova, capaz de derrotar a primeira conduta. Por exemplo, no campo da decisão judicial o julgador pode se valer da distinção e da superação (distinguishing e o overruling) desde que se coloque na condição de dialogar sobre a construção do caso penal, manejando adequadamente as técnicas, até porque a decisão judicial não pode ser uma surpresa.

A questão a ser sublinhada é que se alguém congrega capacidade de negociar (delegados e Ministério Público) e houve a homologação, nos termos da Lei 12.850/2013, a revisão das cláusulas de ofício será abusiva. O comportamento processual contraditório pode ser tanto comissivo, como omissivo (suppressio)[7], violadores do dever de boa-fé objetiva, no quadro de expectativas do fair play.

Logo, no jogo da colaboração/delação premiada, o limite da pena será a homologada, sob pena de violação do venire contra factum proprium. Qualquer inovação deveria ser ilegal, por tomar de surpresa e revisar, de ofício, em favor do Estado, as cláusulas já acordadas e homologadas.

[1] Nesse terreno é imprescindível a leitura de JACINTO NELSON DE MIRANDA COUTINHO, que em diversos trabalhos analisa a complexa problemática dos sistemas processuais penais inquisitório e acusatório. Entre outros, recomenda-se a leitura de “Introdução aos princípios gerais do processo penal brasileiro”, publicado na Revista de Estudos Criminais, n. 01/2001 e “O papel do novo juiz no processo penal”, in Crítica à teoria geral do direito processual penal, Renovar, 2001. [2] RODRIGUES, Benjamim Silva. Criminologia Forense, Tomo I. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015, p. 24: “No caso português, contrariamente ao que ocorre no contexto ‘anglo-saxónico’ em que vigora o sistema ‘adversarial’ ou ‘de partes’, vigora o sistema acusatório, integrado por um princípio da oficialidade. A entidade que investiga e acusa (o Ministério Público) não é a mesma que julga (juiz), embora se reconheça ao Tribunal, por força do princípio da oficialidade, poderes de produção probatória considerados adequados e pertinentes para ‘além de qualquer dúvida razoável’, granjear prova que permita ‘derrubar’ a presunção de inocência que incide sobre o suspeito/arguido”. [3] LOPES JR, Aury. Direito Processual Pena. São Paulo: Saraiva, 2017. [4] BERTMAN, Martin A. Filosofia dello Sport: Norme e Azione Competitive. Trad. Francesca D’Alfonso. Rimini: Guaraldi, 2008, p. 39. [5] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. [6] BERALDO, Maria Carolina Silveira. O comportamento dos sujeitos processuais como obstáculo à razoável duração do processo. São Paulo: Saraiva, 2013; CABRAL, Antonio do Passo. O contraditório como dever e a boa-fé processual objetiva. Revista de Processo RePRO, São Paulo, ano 30, n. 126, p. 59-82, ago. 2005; ABDO, Helena Najjar. O abuso do processo. São Paulo: RT, 2007; TUNALA, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório: a proibição de venire contra factum proprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2015; MARTINS-COSTA, Judith. A ilicitude derivada do exercício contraditório de um direito: o renascer do venire contra factum proprium. Revista Forense, Rio de Janeiro, ano 100, v. 376, p. 109-129, nov/dez. 2004; DIDIER JR, Fredie. Multa coercitiva, boa-fé processual e suppressio: aplicação do duty to mitigate the loss no processo civil. Revista de Processo, São Paulo, v. 34, n. 171, p, 35-48, maio 2009. [7] TUNALA, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório: a proibição de venire contra factum proprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2015, p. 317: “No Direito Civil, vimos que a teoria da vedação a comportamentos contraditórios tem por pressupostos (i) o factum proprium; (ii) a conduta contraditória posterior; (iii) a ruptura da confiança emanada desse factum proprium e (iv) a ocorrência de danos decorrentes dessa frustração de expectativas. Nesse ponto, é importante ressaltar nossas conclusões no sentido de que o factum proprium pode ser tanto um comportamento comissivo quanto omissivo – de modo que inserimos na categoria do nemo potest venire contra factum proprium a suppressio –, bem como que toda a tutela da vedação da contradição só tem razão de ser porque, na verdade, o que se busca é a tutela da confiança, das legítimas expectativas decorrentes da conduta inicial vinculante”.

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