Artigos Conjur – Vieira e Rosa: Veto ao uso das agências de inteligência (parte 3)

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Vieira e Rosa: Veto ao uso das agências de inteligência (parte 3)

O artigo aborda a ilicitude e ilegitimidade das provas obtidas por órgãos de inteligência, como a Abin, em investigações penais. Aponta que a atuação de tais órgãos para investigar crimes fere os princípios constitucionais e legais, resultando na nulidade de provas. Discute decisões judiciais que reforçam a necessidade de seguir a legalidade estrita e preservar os direitos fundamentais no processo penal.

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Continuação da parte 2.

5. A ilicitude e/ou ilegitimidade dos indícios/provas irrepetíveis colhidos por órgãos de inteligência Como entendido, a atuação direta de órgãos do Sistema Brasileiro de Inteligência na apuração de infrações penais equivale a legislar sobre matéria que o constituinte não sacramentou. A administração pública é regida pelo princípio da legalidade estrita, que veda seus agentes a realização de qualquer ato, consideradas as suas funções, violador de dispositivo de lei. Significa manipular as regras do jogo com a finalidade de manipular as regras democráticas de investigação, imunizando os mecanismos de controle público.

Ao contrário do particular, é imprescindível que seu atuar se dê em consonância com o permissivo legal, razão pela qual uma investigação conduzida por órgão de inteligência não se trata de mera violação à regra processual, mas de gravíssima afronta ao direito fundamental insculpido na Constituição da República e na norma infraconstitucional.

Ao ver-se revelada tal temática, no HC nº 149.250/SP, e relacionada à Operação Satiagraha [20], o Superior Tribunal de Justiça, seguindo o voto do relator, desembargador convocado Adilson Macabu, pontuou que a Lei nº 9.883/1999 determina, expressamente, as funções e o modus operandi da Abin, não sendo aceitável que tais limitações sejam extrapoladas. Sobretudo porque o rol de atribuições disposto na lei não permite uma interpretação elástica e em desconformidade com o espírito do legislador.

Nesse cenário, em um Estado Democrático de Direito é inadmissível o prosseguimento de uma investigação por parte de autoridade política-administrativa, em induvidoso e inaceitável desvio — ou excesso — de poder, maculando todo e qualquer procedimento administrativo ou investigativo praticado, na medida em que à margem da lei e de vários princípios constitucionais consagrados, com destaque aos da legalidade, da impessoalidade e do devido processo legal.

Enquanto órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência, a Abin não pode atuar além da sua competência institucional, a qual se encerra: (1) no conhecimento e na execução de ações, sigilosas ou não, destinadas à colheita e à análise de informes, que viessem a ser considerados necessários ou úteis ao assessoramento do chefe do Executivo; (2) no planejamento, na execução e na proteção de conhecimentos sensíveis, relativos à segurança do Estado e da sociedade; (3) na avaliação de ameaças, internas e externas, à ordem constitucional; e (4) na formação e desenvolvimento de recursos humanos, na elaboração de uma doutrina de inteligência e na realização de estudos em ordem a aprimorá-la (Lei nº 9.883/1999, artigo 4º, caput, I a IV).

No atinente à Abin (por osmose, à Ssinte/SSP/RJ), assevera-se que exatamente em razão da natureza exauriente desse elenco de atribuições, na qualidade de órgão integrante da administração pública, somente pode proceder ao compartilhamento de dados com a polícia judiciária se autorizada pelo chefe do Gabinete Institucional da Presidência da República; e, mesmo assim, sob compromisso da guarda do sigilo legalmente imposto, pena de tríplice responsabilidade (administrativa, civil e criminal, cfe. à Lei nº 9.893/1999, artigo 9º, caput, e §§ 1º e 2º).

Com essas considerações, entendeu a 5ª Turma do Superior Tribunal de Justiça não ser competência/atribuição da Abin (por necessário esgarçamento, da Ssinte/SSP/RJ) investigar crimes.

De outra vertente, ressalte-se que, no voto do ministro Napoleão Nunes Maia Filho quando do julgamento daquela mandamental, importante adendo foi feito à análise da questão quanto à temerária tentativa de legitimação a posteriori da participação da Abin, chegando-se até mesmo, surpreendentemente, a assemelhá-la ao Ministério Público, no que tange ao poder de investigar. Ainda que a interpretação dada pelos que afirmam poder o Ministério Público investigar crimes ser equivocada, de leitura distorcida [21], é certo que não se está, na hipótese da Abin, da Ssinte/SSP/RJ ou outro órgão de inteligência, a discutir quem pode o mais pode o menos. Cuida-se de aparelho instituído para as atividades de inteligência e contrainteligência, em auxílio direto ao chefe do Poder Executivo, quer em âmbito nacional, quer em âmbito estadual, e não titular de investigação preliminar, quer conduzida por autoridade policial, quer por presentante do Parquet.

Mais recentemente, o Supremo Tribunal Federal enfrentou a questão em voto relatado pelo ministro Gilmar Mendes, no do HC nº 147.837- RJ: “Habeas corpus. 2. Infiltração de agente policial e distinção com agente de inteligência. 3. Provas colhidas por agente inicialmente designado para tarefas de inteligência e prevenção genérica. Contudo, no curso da referida atribuição, houve atuação de investigação concreta e infiltração de agente em grupo determinado, por meio de atos disfarçados para obtenção da confiança dos investigados. 4. Caraterização de agente infiltrado, que pressupõe prévia autorização judicial, conforme o art. 10 da Lei 12.850/13. 5. Prejuízo demostrado pela utilização das declarações do agente infiltrado na sentença condenatória. 6. Viabilidade da cognição em sede de habeas corpus. 7. Ordem parcialmente concedida para declarar a ilicitude dos atos da infiltração e dos depoimentos prestados. Nulidade da sentença condenatória e desentranhamento de eventuais provas contaminadas por derivação”.

No julgamento da Corte Suprema restou consolidado que os atos praticados, longe de servirem às finalidades de inteligência, tiveram o condão de realizar atividades próprias da investigação policial prevista na Lei nº 12.850/2013 (artigos 10 e 11), ou seja, de repressão de Organização Criminosa, mas sem forma adequada, já que sem procedimento instaurado e desprovidos de prévia autorização judicial. Consta do voto: “[d]iante do exposto, considerando-se que as instâncias ordinárias reconheceram que inexistiu prévia autorização judicial para a atuação do policial militar Maurício da Silva, impõe-se a declaração da ilicitude na sua atuação como agente infiltrado. Suas declarações podem servir para orientação de estratégias de inteligência, mas não como elementos probatórios em uma persecução penal”.

Acentue-se, inclusive, que, ainda que em sede de investigação, tem de se observar a paridade de armas, na medida em o equilíbrio de forças se manifesta como uma exigência em nossa Carta Cidadã, que estabelece a indisputável simetria entre a acusação e a defesa. É imperioso que todos os atos investigativos estejam documentados em procedimento formal, à luz dos princípios constitucionais e legais. Significa lisura democrática na apuração de infrações penais, sem que proceda à sorrelfa, salvo por autorização motivada/adequada e precedente. Se, no exercício de suas atividades, vierem a tomar conhecimento (caso fortuito) de fato que aparentemente configure crime, observado o disposto na Lei nº 9.893/1999, artigo 9º, caput, e §§ 1º e 2º, devem encaminhá-los, sem demora ou retoricamente aprofundamento dos elementos, à autoridade com competência/atribuição constitucional para que as devidas providências sejam adotadas, em procedimento formal; do contrário, ilícitos/ilegítimos serão as provas/indícios coligidos.

Por isso a defesa deve se valer da indagação formal, nos autos ou por uso da Lei de Acesso à Informação, do uso, da forma e do trajeto em que as ditas informações obtidas por intermédio das agências estatais aportaram na investigação ou no processo, com vistas a garantir a normatividade e o devido processo legal.

Conclusão Dentro desse panorama, fundamental que a defesa técnica tenha conhecimento da origem das provas que embasaram determinada investigação penal e o processo penal, o que não ocorrerá se encabeçada por órgão cujo principal atributo é a obtenção de dados, por vezes jamais documentados, com preservação de segredo. Tanto a investigação preliminar quanto o processo penal devem se desenvolver em conformidade com os limites constitucionais e legais, uma vez que o investigado é pessoa sujeita de direitos; e, nessa condição, urge ter preservadas as respectivas garantias fundamentais.

Após as reformas parciais de 2008 e de 2019, o processo penal brasileiro se viu reformulado, para que adequado a estrutura acusatória e o controle da legalidade da persecução penal fosse exercido na sua plenitude, desde o início da apuração da infração penal, com especial relevo para cadeia de custódia. Por isso, naquela concepção primária (de um processo penal acusatório), a etapa de admissibilidade da acusação é concebida, fundamentalmente, para que o julgador assuma a função de garante da constitucionalidade/legalidade das práticas investigatórias, dos elementos informativos e da própria fiabilidade da acusação, em necessário desprezo às investigações que não se submetem ao crivo da norma constitucional ou legal [22].

Sendo assim e afinal, não deve o Judiciário, mesmo que confrontado com situação fático- jurídica de expansão dos métodos ocultos de investigação, por mais graves sejam os crimes, aquiescer diante de violação a direitos e garantias fundamentais [23], sob pena de transformar o processo em vale tudo. Aceitar sem maiores reflexões de conformidade normativa, favorece os eventuais mandatários do Poder Executivo no uso do lawfare e do fishing expedition contra inimigos de momento. As regras que garantem o devido processo legal não podem ser subvertidas em nome do genérico combate ao crime. Enfim, as regras do jogo democrático devem ser estritamente observadas na constante construção da democracia processual.

[20] Operação que investigou possíveis crimes de desvio de verbas públicas, corrupção e lavagem de dinheiro. A Abin realizou investigações tipicamente de polícia judiciária, o que resultou na declaração de ilicitude das provas obtidas, com o trancamento do inquérito policial que foi inaugurado depois da investigação da Abin.

[21] VIEIRA, Luís Guilherme. Op. cit.

[22] PRADO, Geraldo. Op. cit., p. 51.

[23] GRINOVER. Ada Pellegrini. In: Liberdades Públicas e Processo Penal − as interceptações telefônicas. 2ª ed., São Paulo: RT, 1982, p. 58.

Referências

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