Artigos Conjur – O processo penal acusatório entre o Brasil e a Itália (parte 2)

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O processo penal acusatório entre o Brasil e a Itália (parte 2)

O artigo aborda a análise comparativa do processo penal acusatório entre Brasil e Itália, destacando a influência da doutrina italiana no sistema jurídico brasileiro e as limitações do modelo inquisitorial vigente no Brasil. Os autores discutem a inadequação do conceito de lide no contexto penal e a necessidade de um sistema acusatório adaptado às realidades sociais brasileiras, em face de uma população carcerária crescente e desigual. Além disso, enfatizam a importância de restabelecer laços com a experiência italiana, especialmente após as reformas que melhoraram o sistema judicial na Itália.

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continuação da parte 1

O lugar de autoridade dos italianos no Brasil

Um velho advogado de Santa Catarina (que estudava muito), no século passado, dizia sempre que quem tinha uma questão processual e tivesse Carnelutti do seu lado… ganhava a causa; antes disso, quem sabe, só quem tinha mais prestígio, em Portugal (e no Brasil, então), pelas Ordenações, preenchia a lacuna do Direito quando não se tinha a solução legal para o caso concreto, ou seja, fosse fonte subsidiária do Direito: primeiro Acúrsio (1182-1263), um dos grandes glosadores e, na falta de uma glosa dele, Bártolo de Sassoferrato (1313-1357), um dos grandes pós-glosadores ou comentaristas (Ordenações Manuelinas [Livro II, título V, § 1] e Ordenações Filipinas [Livro III, título LXIV, § 1]).

Por mais que seja apenas o relato de experiências individuais, o exemplo ilustra um pouco da importância que tem a doutrina italiana para o Direito e, em particular, para o direito processual no Brasil, o que é difícil de se recusar quando se tem sob os olhos o conceito carneluttiano de lide e a subsidiariedade das glosas de Acúrsio e a opinião (por comentários ou pareceres) de Bártolo.

Os italianos, como se sabe, sempre foram desconfiados com o conceito de lide no processo penal. É difícil garantir com precisão, mas a maioria dos professores de direito processual penal não aderiu, principalmente da forma que sugeriu Carnelutti: conflito entre privados; entre autor e vítima. Em um processo penal que tem o Ministério Público como acusador, isso só é possível com uma engenharia de muitos cálculos.

Mas o conceito de lide era importante porque se prestava a servir de base para uma Teoria Geral do Processo (TGP). Quando, posteriormente, em 1941, nas Istituzioni del nuovo processo civile italiano, Carnelutti nega a lide no processo penal, a TGP naufraga. O que restou, na Itália, foi uma “versão” dela conforme a criação de Giovanni Leone: conflito entre o jus puniendi do Estado e o status libertatis no cidadão.

A tese é sugestiva, mas não se sustenta. Serviu, no Brasil — por outro lado — para que se sustentasse (e se siga sustentando, mas com muito menos força) a TGP. Isso acontece em face da TGP ser produto dos processualistas civis, ou seja, ela é uma TGP do e de direito processual civil; e de lá passa, inadvertidamente, para o processo penal. Isso, porém, não tem nenhum sentido lógico se visto desde a realidade do processo penal. Ajuda, porém, nas deformações do processo penal brasileiro.

Uma delas se vê na teoria do processo como relação jurídica, de Oskar von Bülow (de 1868, no seu “A teoria das exceções processuais e os pressupostos processuais”), que representa mais uma proeza da TGP. A ideia de Bülow servia para o processo civil daquele momento histórico, próprio do pós-revolução francesa, que buscava colocar o cidadão no processo como sujeito de direitos. Isso, no entanto, cobrava paridade de armas e igualdade de condições na disputa processual, o que no Brasil nunca se teve. Para isso perceber, basta ver o número de presos, contados aos milhares, a extragrande maioria pobres e miseráveis.

O processo misto à italiana no Brasil

Desde o CPP (DL n° 3.689, 03.10.41), o modelo brasileiro era semelhante ao italiano, do codice Rocco e, logo, inquisitorial, mas com diferenças historicamente justificáveis que lhe agravaram a inquisitorialidade imitada (ver aqui a primeira parte deste texto). Uma delas é o Inquérito Policial que, mesmo depois de 80 anos do CPP, segue essencialmente inalterado.

O Brasil, pela Itália, entrou no equívoco do processo misto com o cariz que tem, a armadilha de Napoleão e Cambacérès: o sistema é inquisitório; com alguns institutos do sistema acusatório. Isso sempre foi conveniente. Com a investigação preliminar sendo conduzida pela polícia, tudo dela passava — e passa — para a fase processual (de regra regida por um juiz monocrático), e justificava as decisões. Bastava — e basta —, de certo modo, manipular a prova da investigação preliminar e a causa estava e, de certo modo, está, ganha. Com isso é só pensar o que pode acontecer em alguns aspectos, começando pela corrupção policial, quando aparece.

De todo modo, a despeito das diferenças, a proximidade estrutural entre os modelos de processo gerou vínculos muito fortes com a Itália: muitos brasileiros foram estudar nas universidades italianas, a doutrina peninsular ocupou e ocupa um lugar marcadamente de autoridade e, consequentemente, a venda de livros de juristas italianos no Brasil ocorria e ocorre em grande escala.

Porém, a Itália passou por uma refundação na direção do sistema acusatório em 1988, com o novo CPPI, e o Brasil não a acompanhou; e ainda colhe os frutos do modelo inquisitório de 1941, agora potencializado pelas incoerências entre as disposições legais geradas pelas inúmeras reformas parciais e pelo, de certa forma, (in)consequente e despudorado ativismo judicial vivenciado em matéria processual penal.

O processo acusatório como alternativa

Num contexto assim, não é de estranhar que o resultado seja uma opção preferencial pelos pobres (não no sentido de Leonardo Boff, por evidente): a população carcerária do Brasil, considerando presos condenados e provisórios, passou de 832,3 mil em 2022 para 852 mil em 2023, uma alta de 2,4%, segundo aponta o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2024, divulgado em 18 de julho de 2024. Um em cada 4 presos ainda não foi julgado [1]. Eis um estado de coisas inconstitucional (conforme decidiu o STF), socialmente discriminatório e com o qual não se pode conviver, em especial em face da Constituição de 1988.

Por isso (entre outras tantas coisas), a adoção de um sistema acusatório, adaptado à realidade jurídica e social brasileira, coloca-se como elemento essencial para o enfrentamento desse problema que, para além de ser jurídico, de incompatibilidade entre Constituição e Código, afeta desgraçadamente os mais socialmente mais vulneráveis e suas famílias.

Na América Latina, por uma ação regional financiada pela OEA (Organização dos Estados Americanos) e comandada por Julio Maier e Alberto Binder (da Argentina), a primeira refundação veio em 1992, na Guatemala. Era um presságio.

Depois vieram todos os países, menos o Brasil, muito ligado ao modelo inquisitorial italiano do Codice Rocco. Mas o giro da América Latina para um sistema acusatório é, sobretudo, de cariz norte-americano (em muitos pontos incompatível com o que se vive e se tem como processo penal no Brasil); mas não italiano, porque o que estava mudando, aparentemente, era o fundamento epistêmico.

Enfim, é preciso uma tentativa de aproximar o Brasil da Itália mais uma vez, porque depois de 1988, quando, no Brasil, veio a Constituição democrática e, na Itália, o novo CPP democrático, os italianos têm muito para ensinar.

[*] Apontamentos parciais das conferências proferidas no evento La circolazione del modello giuridico italiano in Brasile: dialoghi interdisciplinari. Università degli Studi di Milano, 16 de setembro de 2024.

__________________________

[1] Leia mais na fonte original: (https://www.poder360.com.br/seguranca-publica/brasil-tem-852-mil-presos-maioria-homens-negros-jovens/).

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