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Fake news: um processo penal feito de mentiras

O artigo aborda a influência das fake news na democracia e no processo penal, destacando como a desinformação pode comprometer direitos e garantias constitucionais. Os autores discutem casos emblemáticos, como o assassinato da vereadora Marielle Franco, para evidenciar o impacto negativo das mentiras disseminadas na esfera pública e na percepção coletiva, e afirmam que tais práticas vulnerabilizam o sistema judiciário e o processo legal. A análise ressalta a urgência de reverter essa corrosão da verdade, que ameaça a integridade democrática.

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Ocorre que, nos Estados com uma democracia de fachada, essa luta pela ocupação de um espaço verdadeiramente democrático parece ter um preço. Como bem afirma John Markoff, é imaginável reduzir a capacidade dos partidos para fazer campanhas por vários meios. É possível que um Judiciário corrupto interprete as leis de registro de eleitores para impedir completamente a campanha de um partido ou, de uma maneira bem menos sutil, os candidatos do partido podem ser traídos, espancados ou até mesmo assassinados[1].

Conforme se depreende do pensamento de John Markoff, resumido acima, a saga pelo desenvolvimento de espaços democráticos de qualidade compreende, além da morte objetiva, a morte subjetiva, consistente na divulgação de fake news, com o indisfarçável objetivo de também assassinar as ideias e os ideais.

Hoje, com a democratização da internet, que pode ser considerada uma das maiores e mais acessíveis fontes de informação da população, é possível, lamentavelmente, tornar disponível para um número exponencial de indivíduos todo e qualquer tipo de notícia, sem que se conheça a real fonte e a veracidade de seu conteúdo, ainda que isso concorra para a morte subjetiva de um cidadão de bem.

Se, de um lado, esse acesso democrático facilitou a obtenção de informação, de outro, abriu os olhos daqueles que procuram se beneficiar da ausência de controle e veracidade das informações para reproduzir qualquer tipo de fake news, influenciando tudo e todos.

Há suspeitas de que essas fake news foram capazes de influenciar, inclusive, as eleições dos Estados Unidos[2]. No Brasil, o exemplo não seria diferente. O jornal El País chegou a afirmar que aqui seria um “perfeito campo de batalha”[3], tendo em vista que teríamos todos os elementos presentes: pessoas muito ativas nas redes sociais, forte polarização ideológica e eleições acirradas que irão acontecer em outubro.

Se no processo eletivo de um país a propagação das fake news, notícias falsas ou distorcidas, pode influenciar (negativa e geometricamente) a própria democracia, na medida em que, a multiplicação exponencial e descontrolada da mentira transforma-se em verdade no tecido social, não é demais enxergar esse mesmo resultado danoso no campo dos direitos e garantias constitucionais no âmbito do processo penal, na medida em que as fake news têm se revelado mais potentes do que os direitos e garantias constitucionais do processo.

A facilidade e a rapidez do acesso à informação, a transmissão televisiva de todas as fases da persecução penal (busca e apreensão, prisão preventiva, oferecimento da denúncia, julgamentos em rede nacional etc.) e a utilização das redes sociais por agentes públicos para a propagação de discursos inflamados de “combate” a determinado crime têm criado um imaginário polarizado na população de que uns seriam os salvadores da pátria e outros os seus algozes. E lá se vão os direitos e garantias fundamentais.

Conforme Haberle, uma sociedade seria livre e aberta na medida em que amplia o círculo de intérpretes da Constituição[4]. Todavia, o fato é que a sociedade aberta de intérpretes aproximou o povo de um processo constitucional democrático, todavia criou novos atores que não estavam acostumados com o palco. E agora eles cobram seus aplausos na televisão, na internet, nas redes sociais, nos PowerPoints…

Recentemente, foi possível vislumbrar esse falso e triste discurso de ódio com o brutal assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco — mulher, negra, militante dos direitos humanos e lutadora pela ocupação do espaço público democrático pelas minorias. E, nesta democracia de fachada, essa voz precisava ser calada.

Mas não bastou isso. Para além de calarem a voz e não respeitarem a luta de Marielle, não foi respeitado o luto da família. Logo após o seu assassinato, uma desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e um deputado federal, sem qualquer confirmação da veracidade do teor das informações, especialmente por serem membros dos poderes Judiciário e Legislativo, espalharam em suas redes sociais que Marielle estava “engajada com bandidos” e que teria sido “eleita pelo Comando Vermelho”[5].

As fake news se espalharam pelos celulares de milhões de pessoas. E elas acreditaram na veracidade da informação. Afinal, ora, era um parlamentar e uma desembargadora que repassavam as notícias…

É bem de ver que a magistrada reconheceu o seu erro e deixou o seguinte registro em sua página: “Diante das manifestações contra meu comentário, proferido em uma discussão no Facebook de um colega, a respeito da morte da vereadora Marielle Franco, venho declarar o que segue: no afã de defender as instituições policiais, ao meu ver injustamente atacadas, repassei de forma precipitada notícias que circulavam nas redes sociais. A conduta mais ponderada seria a de esperar o término das investigações para então, ainda na condição de cidadã, opinar ou não sobre o tema”[6].

Nada obstante esse reconhecimento, a tonelada de penas provenientes das fake news já havia sido lançada de um prédio de mais de cem andares. Portanto, a corrosão da falsa notícia é de incerta e quase impossível reparação.

Se no âmbito do processo penal é preciso cautela e respeito às regras do jogo, o membro do Poder Judiciário, cujo pronunciamento contém manifesto julgamento público em rede social, precisa ter precaução redobrada. Em casos como esses, não se revela razoável despir-se da toga e vestir-se do manto de cidadão comum, com o objetivo de ser agente disseminador de fake news, especialmente em sede de imputações criminosas. Afinal, o processo até “pode cooperar como controle social, mas não pode ser um aliado de trincheira. Se assim se postar, perde a dimensão coletiva de garantia que a democracia exige”[7].

Hassemer aponta que, enquanto o Direito Penal pretender intervir em direitos, “terá que justificar essa intervenção diante das próprias tradições e da Constituição, e para isso a simples referência à justiça da reação punitiva não bastará”[8]. Lamentavelmente, as próprias bases principiológicas do Direito e do processo penal vêm sendo desconstruídas, justamente como dito por Hassemer, com o discurso simplista de se fazer justiça através do combate.

Nessa saga, um membro do Ministério Público, com vídeo publicado no YouTube, critica o direito ao silêncio constitucionalmente assegurado ao acusado[9]. O grande público, que não conhece a origem, a história e a dimensão desses direitos, ouve a fake news do inquisidor e aplaude. E pior, a propagação das fake news, conforme já foi demonstrado, tem contaminado até mesmo o Poder Judiciário. Recentemente, uma juíza condenou um acusado e, em sua sentença, criticou o que ela alega ser um “silêncio seletivo”[10].

Aparentemente, o que é dito no Facebook tem mais peso do que as garantias constitucionais e legais. Afinal, quem se importa se o artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal não traz limitações ao direito de permanecer calado ou se o parágrafo único do artigo 186 do Código de Processo Penal determina que o silêncio do acusado não pode ser interpretado em prejuízo da defesa?!

Em 2016, ao julgar o HC 126.292/SP, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5.º, inciso LVII, da Constituição Federal”.

Bastou isso para uma avalanche de reportagens do tipo “Diminuição da impunidade: STF admite prisão logo após condenação em 2ª instância” ou “STF acaba com a farra dos recursos”, fazendo criar um imaginário na mentalidade da população que, a partir daquele momento, a condenação em segunda instância teria como consequência imediata e automática a prisão. Afinal, como dizia Joseph Goebbels, ministro de propaganda nazista de Hitler, uma mentira repetida mil vezes torna-se uma verdade…

Esse caráter alucinatório conduz a um contágio da verdade. Deve-se ter cuidado redobrado com essa evidência midiática, pois, em razão do seu imenso déficit de correção, cria um sobrecusto alucinatório que se põe entre o fato e o espectador[11].

A falsa interpretação ou a distorção de um julgado é o expediente perfeito para os players autoritários defenderem a ideia de que a prisão é a regra após uma condenação em segunda instância.

Para além de discordar da posição do Supremo Tribunal Federal sobre a não violação do princípio da presunção de inocência ao se possibilitar a prisão após condenação em segunda instância, é preciso ter em mente que o princípio da presunção de inocência está expressamente consagrado, até o trânsito em julgado, no artigo 5º, LVII, da Constituição Federal, no artigo 11 da Declaração Universal dos Direitos do Homem, no artigo 2º da Convenção para Proteção dos Direitos do Homem e no artigo 14.2 do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos.

E, apesar da complexidade do tema, o princípio da presunção de inocência deve impor ao Estado, ao menos, um dever de tratamento e uma regra de julgamento[12]. O dever de tratamento, na perspectiva interna, implica ao acusador e ao julgador um tratamento efetivo de inocência ao réu que não foi definitivamente condenado. Na perspectiva externa, a presunção de inocência impõe limites à publicidade abusiva e à estigmatização do acusado, coibindo qualquer desvio causal do fato, a fim de inviabilizar o surgimento de fake news, o julgamento precipitado da população e a sua contaminação do processo.

A potencialização exponencial da divulgação das fake news no tecido social e o clamor social por justiça, fundado nesse tipo de informação, não pode servir de motivação para jogar os direitos e garantias do processo penal nesse ambiente corrosivo das fake news.

Sobre Marielle? Presente! Marielle não teve sua inocência presumida. Foi julgada viva e sentenciada morta. Já teve a sua morte objetiva. Agora, almejam também a sua morte subjetiva: querem promover o funeral do seu legado, de suas ideias e de seus ideais. A persistir esse estado de coisas, a passagem da democratização da informação para a democratização do julgamento é um indicativo de que estamos à beira do caos.

[1] MARKOFF, John. Olas de democracia. Movimentos sociales y cambio político. Madrid: Editora Tecnos. p. 155. [2] SHANE, Scott. The Fake Americans Russia Created to Influence the Election. Disponível em: https://www.nytimes.com/2017/09/07/us/politics/russia-facebook-twitter-election.html. [3] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/02/09/politica/1518209427_170599.html. [4] HÄBERLE, Peter. Hermenêutica Constitucional. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1997, p. 40. [5] https://www.opovo.com.br/noticias/brasil/2018/03/boatos-sao-espalhados-sobre-marielle-na-internet-confira-as-mentiras.html acesso em 19/3/2018. [6] BERGAMO, Mônica. Disponível em: www1.folha.uol.com.br. Acesso em 19/3/2018. [7] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4 ed. rev. atual. e ampl. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. p. 94. [8] HASSEMER, Winfried. “Defesa contra o perigo pelo Direito Penal: uma resposta para as atuais necessidades de segurança?”. Revista de Estudos Criminais, 55, out./dez. 2014, p. 32. [9] MARTINES, Fernando. Procurador do MPF se revolta com direito constitucional de permanecer calado. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-18/procurador-mpf-revolta-direito-constitucional-silencio. [10] GALLI, Marcelo. Juíza de Brasília reclama de “silêncio seletivo” de réus em ação penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/juiza-reclama-silencio-seletivo-reus-acao-penal. [11] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. pag. 628. [12] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. 14. Ed. São Paulo: Saraiva, 2017. pag. 354.

Referências

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