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“Salve Geral” – Quando o Estado negocia com o crime

O artigo aborda a relação entre o Estado e o crime organizado, exemplificando com a entrega de Pablo Escobar na Colômbia e a suspensão das atividades do Comando Vermelho no Brasil. Os autores, Philipe Benoni Melo e Silva, argumentam que o crime se tornou uma forma de governança, evidenciando a falência das instituições estatais. Destacam que a negociação com facções não é uma solução, mas um sinal de impotência do Estado, que deve deflagrar políticas públicas robustas e respeitar o devido processo legal para enfrentar o crime.

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Introdução: Da catedral ao palácio – o dia em que o Estado se entregou

Em 1991, a Colômbia viveu um momento surreal. Pablo Escobar, o maior narcotraficante da história, se entregava voluntariamente ao Estado – mas com condições. Nada de extradição. Nada de prisão comum. Escobar construiria sua própria cadeia, em terreno escolhido por ele, com campo de futebol, sauna, telefone sem monitoramento, visitas ilimitadas e. liberdade operacional para continuar mandando no cartel. A prisão foi chamada de “La Catedral”, mas o que se ergueu ali foi um símbolo do colapso: o crime não apenas sobreviveu, ele venceu. E o Estado, por cansaço, covardia ou conveniência, aceitou ser governado pelo crime que deveria reprimir.

A trégua com Escobar não foi um gesto de paz. Foi a oficialização da impotência. O acordo não pacificou o país – apenas trocou sangue por humilhação. O que deveria ser prisão virou palácio e o cárcere virou quartel-general.

Trinta anos depois, no Brasil, um relatório da Polícia Federal1 veio a público revelando que o Comando Vermelho teria suspendido suas atividades criminosas por sete dias – durante a reunião do G20 no Rio de Janeiro – a pedido de “um representante das autoridades no Rio”.

Essa trégua revela que o eco de “La Catedral” ressoa nos morros do Rio. O crime organizado, mais uma vez, mostra que governa e o Estado se ajoelha.

Não se trata mais de organizações criminosas no sentido clássico. As facções brasileiras não são meras quadrilhas armadas. São estruturas paraestatais. Possuem hierarquia, códigos internos, tribunais informais, controle territorial, capacidade de mobilização social e poder de coerção. Governam comunidades inteiras, impõem regras, regulam condutas, financiam eventos, “proíbem” certos crimes e até exercem formas de justiça paralela.

É o que Gabriel Feltran denomina de relações rotineiras entre governo e crime, “por serem essas as matrizes discursivas que produzem políticas explícitas de controle da violência letal”2. Onde o Estado formal é ausente ou omisso, o crime organizado ocupa o vácuo de poder com eficiência e legitimidade forçada. A segurança, nesse modelo, não vem do Estado – vem da trégua que a facção concede. A paz, portanto, é uma concessão do domínio criminoso.

A soberania envergonhada, a estética da repressão e a performance penal

O que mais assusta na revelação da PF sobre o G20 não é a trégua em si, mas a suposta participação – ou pior, a iniciativa – de uma autoridade estatal. Se confirmado, esse dado encerra qualquer ficção de soberania. Esse tipo de acordo é mais do que pragmatismo: é um atestado de falência política, ética e institucional. O pacto com Escobar na Colômbia deveria ter ensinado isso. Pactuar com quem destrói o Estado é reconhecer que o Estado não tem força para existir sem a permissão do destruidor.

Enquanto isso, o Estado continua encenando seu papel. Helicópteros, operações cinematográficas, tropa de elite, prisões midiáticas – a estética da repressão substitui a presença real do Estado. O pior é que, depois, a “estética” passa para a decisão judicial. Um tribunal que julga como quem escreve para impressionar a sociedade, e não para garantir direitos e garantias fundamentais.

O Direito Penal virou um instrumento simbólico3, cuja principal função é manter a aparência de controle. A punição é seletiva, estruturalmente racista e dirigida aos pobres. E o poder estrutural da criminalidade organizada se fortalece justamente nesse cenário: enquanto o Estado prende os fracos, o crime governa os territórios.

É nesse ponto que minha crítica à Fishing Expedition – tema do meu livro “Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão”4 – se torna central. O Estado que investiga em rede, que vasculha celulares sem delimitação de objeto, que transforma mandados genéricos em autorizações para devassar vidas inteiras, é o mesmo que se cala diante da governança paralela de facções. A seletividade do poder investigatório não é só técnica: é política. E a trégua revelada no G20 é mais um episódio dessa inversão. Onde deveria haver contenção institucional ao poder criminoso consolidado, há silêncio. Onde deveria haver limites, há omissão. E onde deveria haver garantias, há abuso.

Escobar foi o rei do antiestado. As organizações criminosas, hoje, ocupam papel semelhante em certas regiões brasileiras. O acordo informal durante o G20 não é uma ação isolada. É parte de um ciclo em que o Estado se curva, o crime se fortalece e a legalidade se converte em mera aparência.

A falsa paz e o risco do precedente

A trégua de sete dias não é “sucesso de segurança pública”. É o preço da vergonha travestido de estabilidade. Ao aceitar a trégua, o Estado mostra que as organizações criminosas podem negociar com as instituições. Mostra que o crime tem assento, mesmo informal, na mesa da governabilidade.

A crítica à trégua com o crime não é – nem pode ser – um apelo ao populismo penal ou à barbárie punitivista. Ao contrário. Falo aqui como advogado criminalista, comprometido não apenas com o combate aos abusos do Estado, mas também com a preservação da sua legitimidade. O Estado que negocia com facções é o mesmo que, nas audiências, viola o sistema acusatório, ou tenta justificar espancamento com “resistência à prisão”. É o mesmo que ignora cadeia de custódia, que desrespeita o contraditório, que prende preventivamente por conveniência midiática.

O advogado criminalista – o verdadeiro, o que acredita na Constituição e não no oportunismo da toga – não defende o crime! Defende o devido processo legal. E por isso mesmo exige que o Estado combata o crime com as armas da legalidade, da inteligência institucional e da justiça material. Sem trégua, mas também sem tortura. Sem conluio, mas também sem inquisidores.

A defesa do Estado não é incompatível com a defesa das garantias. Ao contrário: é exatamente por defender a legalidade que não se admite que o Estado se curve diante de quem não respeita nem a vida. Porque quando o Estado negocia com facções, ele fere duplamente o pacto republicano: abandona os territórios e os transforma em campos de exceção. E a advocacia, nesta hora, não pode calar. Não pode ser nem cúmplice da omissão, nem instrumento da vingança. Tem que ser a voz da legalidade e da ordem democrática, justamente quando ela está em risco.

Conclusão

A Colômbia demorou para romper o pacto com Escobar. Quando o fez, teve que pagar com mais sangue a ousadia de ter cedido antes. O Brasil, hoje, tem a chance de reagir antes que seja tarde. Antes que “La Catedral” seja construída em nossos presídios – se já não está…

Não se combate facção com pedido de trégua. Combate-se com inteligência, com presença institucional, com políticas públicas, com Justiça real e com o resgate da autoridade estatal como valor inegociável.

A soberania não pode ser terceirizada. O dia em que o Estado pede licença para existir, ele deixa de ser Estado – e vira apenas um protocolo vazio, vigiado por homens armados que não prestaram concurso público, mas que já governam, mesmo sem assinar leis.

Eu permanecerei na última trincheira. E, com a defesa dos direitos e garantias fundamentais no processo penal, não haverá trégua.

_____________

1 Disponível em: https://oglobo.globo.com/rio/noticia/2025/05/18/comando-vermelho-ordenou-tregua-de-crimes-para-reuniao-do-g20-no-rio-revela-policia-federal.ghtml . último acesso em 19 de maio de 2025.

2 FELTRAN, Gabriel. Governo que produz crime, crime que produz governo: o dispositivo de estão do homicídio em São Paulo (1992 – 2011). Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 6, n. 2, 232-255 Ago/Set 2012.

3 ZAFFARONI, Raul Eugenio. Em busca de las penas perdidas. Seg.Reim. Ediar: Buenos Aires, 1998.

4 MELO E SILVA, Philipe Benoni. MORAIS DA ROSA, Alexandre. SILVA, Viviani Ghizoni da Fishing Expedition e Encontro Fortuito na Busca e Apreensão. Florianópolis, EMais, 2022.

Referências

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