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Do projeto de reforma do CPP ao projeto de lei “anticrime”: mirando a Constituição

O artigo aborda a necessidade de uma reforma abrangente do Código de Processo Penal (CPP) brasileiro para alinhar seus aspectos aos valores democráticos da Constituição de 1988, destacando a importância da adoção do sistema acusatório. Discute a separação das funções judiciais nas fases de investigação, instrução e julgamento, visando minimizar o viés de confirmação em decisões judiciais, e critica a proposta do pacote anticrime por manter uma estrutura inquisitória que contraria os princípios constitucionais. A proposta do PLS 156/2009 é apresentada como essencial para modernizar o sistema penal e assegurar direitos fundamentais.

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A aprovação em Plenário da redação final do texto (cf. Parecer 1.636/2010 da Comissão Temporária de Estudo da Reforma do CPP) ocorreu na sessão extraordinária de 7/12/2010, com remessa de comunicação à Câmara dos Deputados (Ofício SF 2427, de 21/12/2010) em 23/3/2011, onde passou a tramitar sob o PL 8.045/2010.

2. Na Câmara, houve apresentação de um problemático substitutivo, de autoria do então relator, deputado federal João Campos (PRB-GO), o qual obteve, em 13/6/2018, parecer pela constitucionalidade, juridicidade, adequada técnica legislativa e, no mérito, aprovação.

O último andamento se deu em 21/3/2019, mediante ato da atual Presidência — deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ) —, que criou Comissão Especial, a ser composta de 34 titulares e igual número de suplentes, para proferir parecer sobre o PL 8.045/2010.

3. A comissão de juristas responsável pela elaboração, junto ao Senado, da versão original do anteprojeto de reforma do CPP (criada pelo Requerimento 227/2008, aditado pelos requerimentos 751 e 794/2008, e pelos atos do Presidente 11, 17 e 18/2008) foi composta de Antonio Correa, Antonio Magalhães Gomes Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira (relator-geral), Fabiano Augusto Martins Silveira, Felix Valois Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido (presidente), Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar e Tito Souza do Amaral.

4. O eixo central da reforma consiste na compatibilização do processo penal brasileiro com os valores democráticos da Constituição de 1988, em especial o princípio acusatório. O sistema processual penal vigente no país é estruturado a partir do Decreto-lei 3.689, instituído por Getúlio Vargas em 3/10/1941. Trata-se de cópia (ou quase isso) do Código Rocco italiano de 1930, o qual tem por base, além de ideais fascistas, uma estrutura inquisitorial.

5. Há dois sistemas processuais penais fundamentais[1]: o inquisitório e o acusatório. O primeiro surgiu no seio da Igreja Católica em 1215, no IV Concílio de Latrão, sob o papado de Inocêncio III. O segundo nasceu na Inglaterra, sob o reinado de Henrique II, a partir da instituição do trial by jury (1166). A diferença essencial entre ambos reside na gestão da prova. Quando a função de levar provas ao processo é do juiz (por exemplo, artigo 156 do CPP vigente), o sistema é inquisitório. Quando é das partes (por exemplo, artigo 4º do PLS 156/2009), o sistema é acusatório.

6. A função que a Constituição de 1988 reserva ao juiz não é a de produtor de provas, de senhor absoluto do processo ou do poder de decisão sobre a liberdade alheia. Não pode haver sobreposição ou confusão entre as funções de acusar e julgar. Por isso, dentre as mudanças que propõe, o PLS 156/2009, além de expressamente vedar iniciativas investigativo-probatórias e acusatórias do juiz, estabelece uma separação entre as funções típicas do magistrado no 1º grau de jurisdição (investigação, instrução e julgamento), conformando constitucionalmente cada fase do procedimento.

7. Para a fase de investigação preliminar (pré-processual), o PLS 156/2009 cria a figura do juiz das garantias, cuja atuação se voltará ao controle da legalidade, mormente para salvaguarda de direitos e garantias individuais. Ele não será o mesmo juiz da fase processual da persecução que se inaugura com a denúncia ou representação. Ao juiz do processo (fase de instrução) não caberá, todavia, a iniciativa da produção de provas, cuja faculdade à luz do princípio dispositivo deve ser reservada somente às partes (acusação e defesa), mas, sim, supervisionar (controlar) a observância às regras do jogo, notadamente o contraditório, a ampla defesa e a inadmissão de provas ilícitas. Finalmente, caberá ao juiz do julgamento — que pode ser, como pessoa física, aquele que conduziu a instrução —, a decisão de mérito (acertamento) do caso penal, absolvendo ou condenando o acusado com base no que se produzir nas fases anteriores.

8. A importância da separação entre as funções de controle da investigação, instrução e julgamento reside na tentativa de mitigação do chamado “efeito confirmatório” de decisões anteriores (confirmation bias). Trata-se de uma característica comum do comportamento humano: tomada uma decisão, a tendência é que a pessoa tente sempre buscar elementos ou argumentos voltados à sua confirmação subsequente, não à sua revisão ou reconsideração.

No caso específico do processo penal, isso costuma ocorrer com alguma frequência em decisões que decretam prisões antes de sentenças condenatórias (finais) de mérito. Se um juiz vier a compreender, seja na fase pré-processual, seja durante o processo (antes da sentença), que um crime existiu, que o acusado é seu provável autor e que, como tal, não pode ficar solto até julgamento final porque oferece algum risco à ordem pública, à vítima ou à efetividade da jurisdição, é pouco provável que venha a ocorrer, posteriormente, uma absolvição[2]. É com vistas à solução desse problema e de outros correlatos que PLS 156/2009 propõe uma separação entre as funções do juiz das garantias, do juiz da instrução e do juiz do julgamento.

9. O PLS 156/2009 também propõe uma melhor racionalização do sistema de recursos do processo penal, tornando mais claras suas hipóteses de cabimento, espécies e rito, de modo a se evitar a continuidade da utilização indiscriminada do instituto do Habeas Corpus como substituto (sucedâneo) e, assim, promover-se uma otimização (e “desafogamento”) da atuação das cortes de apelação e dos tribunais superiores.

Aliada a uma maior valorização da atividade jurisdicional de 1º grau (mediante atuação, agora, de três juízes em vez de um único magistrado), a reestruturação do sistema recursal dialoga com outras medidas também importantes, como as restrições às hipóteses de foro privilegiado (por prerrogativa de função) e aos papéis das cortes superiores, os quais vêm sendo exercidos com nítida (e confessa) usurpação de prerrogativas dos demais poderes, em violação ao que foi estabelecido e pensado para o país a partir da Constituição de 1988.

10. Uma reforma global do CPP é, portanto, condição de possibilidade (lógica e necessária) para que não haja fratura no sistema processual penal brasileiro, circunstância já presente e que se anuncia continuada em virtude não só das problemáticas inovações trazidas pela Lei Federal 12.850/2013, que tratou da figura da organização criminosa e disciplinou laconicamente o instituto da delação premiada[3], mas também, e talvez até principalmente, do que se observa no “pacote anticrime” enviado pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública à Câmara dos Deputados em 4/2/2019[4].

11. Reformas pontuais não são suficientes. Uma mudança ampla é necessária, a fim de que nela se incluam todos os aspectos pertinentes à reformulação do sistema[5]. O primeiro passo talvez seja uma mudança cultural, pois de nada adiantará uma reforma legislativa completa se os “aplicadores” da lei (mormente os juízes) mantiverem a mesma mentalidade (inquisitória) de outrora.

A tendência atual, de se importarem, “à brasileira”, ou conforme a conveniência do julgador, institutos do common law estadunidense (como o plea bargaining), mas sem que haja, para tanto, uma reforma global do sistema brasileiro vigente, que é de tradição (romano-germânica) e sistema jurídico distintos (civil law), implica um paradoxo — ou talvez reforça a razão tupiniquim do “jeito” (Roberto Gomes). Incompatibilidades sistêmicas gritantes não estão sendo solucionadas, colocando-se em risco a estabilidade e a segurança do sistema para todos.

12. O Brasil é o único país da América Latina que ainda não promoveu a reforma de seu sistema de processo penal para a adoção de uma matriz efetivamente acusatória, conforme se pode verificar em relevante diagnóstico do Centro de Estudios de Justicia de las Américas (Ceja)[6]:

13. Conforme o pensamento liberal de Francesco Carrara, a finalidade do processo penal é a tutela (proteção estatal) da inocência[7]. Enquanto o Direito Penal existe para os culpados, o Direito Processual Penal existe para os inocentes. Mas isso não significa que culpados não tenham direito (ou mesmo dever de submissão) ao processo penal. O processo penal é direito/dever de todos, pensado tanto para defesa de inocentes quanto como garantia de um processo justo para os culpados, mediante estabelecimento de regras claras (limites) para a atuação judicial. Sem processo, todos tenderiam a ser culpados, desde o início.

Claus Roxin entende que o processo tem quatro finalidades: “a condenação do culpado, a proteção do inocente, a formalidade do procedimento afastada de toda arbitrariedade e a estabilidade jurídica da decisão”[8]. Daí a necessidade de uma reforma ampla (global) do sistema vigente, de modo a se eliminar da cultura social brasileira uma mentalidade (inquisitória) ultrapassada e que, como tal, coloca o processo penal à mercê do subjetivismo (individualismo) do julgador, em um círculo vicioso que desnatura a função do magistrado, confundindo–a com a da acusação.

14. O que se pretende, portanto, é a aprovação da versão original do PLS 156/2009, atualmente em discussão na Câmara dos Deputados sob o enfoque do problemático substitutivo do então deputado federal João Campos (PL 8045/2010), de modo a se promover a efetiva compatibilização do processo penal brasileiro com os ditames constitucionais.

15. O projeto de lei “anticrime”, neste aspecto, não ajuda nada. Ao contrário, mantendo a estrutura inquisitória, deixa o Brasil de braços com o atraso e, diferente do que se possa pensar, consolida e amplia as inconstitucionalidades, de todo indesejadas. Uma nação que pretende crescer democraticamente não pode, por certo, enganar-se com uma proposta primária que, se passar, causará tantas injustiças. Isso serviria para causar vergonha, antes de tudo.

[1] Cf. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente demarcado. In Revisa de Informação Legislativa. Brasília a. 46 n. 183 julho./set. 2009, p. 103-116. [2] Sobre o tema: GLOECKNER, Ricardo Jacobsen. Prisões cautelares, confirmation bias e o direito fundamental à devida cognição no processo penal. In: PEREIRA, Flávio Cardoso (Coord.). Verdade e prova no processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 261-287. [3] Cf. Observações apresentadas em especial pelos Profs. Drs. Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Aury Celso Lima Lopes Júnior e Alexandre Morais da Rosa em audiência pública no Senado Federal em 21/11/2017, no âmbito da CPMI da JBS. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=GlDgc0LQUkk, acesso em 24/3/2019. [4] Cf. PL 881/2019, 882/2019 e PLP 38/2019. [5] TAPOROSKY FILHO, Paulo Silas & CANI, Luiz Eduardo. Programa brasileiro sobre reforma processual penal (CEJA) – Curitiba/2018: algumas impressões. Curitiba: Empório do Direito, 2018. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/programa-brasileiro-sobre-reforma-processual-penal-ceja-curitiba-2018-algumas-impressoes, acesso em 24/3/2019. [6] Cf. GONZÁLEZ, Leonel & FANDIÑO, Marco. Balance y propuestas para la consolidación de la justicia penal adversarial en América Latina. In La Justicia Penal Adversarial en América Latina. Hacía la Gestión del conflicto y la fortaleza de la ley. Chile/Santigago, 2018, p. 503-505. [7] CARRARA, Francesco. Programma del Corso di Diritto Criminale. Lucca: Tip. Canovetti, 1863. [8] ROXIN, Claus. Derecho procesal penal. Buenos Aires: Editores del Puerto, 2000, p. 4.

Referências

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