Artigos Empório do Direito – Sangue bom: ser ou ter – a propósito dos impedimentos estatais para doação de sangue

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Sangue bom: ser ou ter – a propósito dos impedimentos estatais para doação de sangue

O artigo aborda os contratempos e contradições nos critérios de impedimentos estatais para doação de sangue, destacando como esses critérios podem refletir preconceitos e estereótipos sociais. A autora, Maíra Marchi Gomes, analisa as regras que excluem potenciais doadores com base em condições como comportamento sexual, histórico criminal e condições de saúde, questionando a lógica dessas restrições e a influência da subjetividade dos profissionais de saúde. A reflexão convida a uma revisão dos critérios, considerando também a ética e a dignidade de todas as pessoas envolvidas no processo de doação.

Artigo no Empório do Direito

Por Maíra Marchi Gomes – 02/11/2015

O aço dos meus olhos E o fel das minhas palavras Acalmaram meu silêncio Mas deixaram suas marcas…

Se hoje sou deserto É que eu não sabia Que as flores com o tempo Perdem a força E a ventania Vem mais forte…

Hoje só acredito No pulsar das minhas veias E aquela luz que havia Em cada ponto de partida Há muito me deixou Há muito me deixou…

Ai, coração alado Desfolharei meus olhos Nesse escuro véu

(Fagner)

Ao se analisar os critérios para doação de sangue (ou melhor, seus impedimentos), é-se surpreendido, primeiramente, com algumas contradições entre s informações provindas de diferentes órgãos estatais relacionados ao tema. Sobre ele, sinto-me impossibilitada de discorrer a respeito, posto tratarem de condições que apenas um profissional da área de saúde poderia dizer. Por exemplo, quanto tempo após uma endoscopia alguém pode se candidatar a doar sangue ou se alguém que possui piercing na mucosa oral ou genital pode ser doador.

De qualquer modo, não é desconsiderável esta própria contradição entre as informações, que nos leva a pensar na influência da subjetividade do profissional de saúde (e do Estado, em última instância) no estabelecimento de critérios para que se permita a alguém que seu sangue corra em outras veias.

A influência desta subjetividade não é novidade, pelo menos a quem já deixou de acreditar nos ideais da ciência moderna e de que o Estado é um ente abstrato, tanto quanto já deixou de acreditar em vampiros. Porém, ela deixa de ser apenas inevitável e passa a ser maléfica quando este fator subjetivo autoriza preconceitos e estereótipos a escorrerem pela voz do Estado.

Nesta direção, pode-se citar alguns impedimentos para doar sangue encontrados em alguns sites oficiais, ainda que se saiba que normativas federais podem ser mais precisas e padronizadas. Espera-se, assim procedendo, problematizar justamente o que é publicamente divulgado à população. Os impedimentos que me pareceram melhor atender a este objetivo são:

* Segundo a Fundação Pró-Sangue, do estado de São Paulo, não se pode doar sangue por doze meses se:

1) teve contato com prostituta ou com outra pessoa que recebeu ou pagou com dinheiro ou droga pelo ato sexual.

Aqui chama a atenção o fato do órgão estatal partir do princípio de que uma prostituta encontra-se em maior risco que outro sujeito, já que é de seu ofício manter relações sexuais com pessoas que lhe pagam com dinheiro. E, da mesma forma, que alguém que possui relações sexuais com prostitutas encontra-se em maior risco.

Da mesma forma, parece que se parte do princípio de que o usuário ou comerciante de droga (qualquer que seja e por qualquer via de administração, já que não é especificado) encontra-se em maior risco.

Enfim, intriga o fato do critério não ser simplesmente algo como “ter tido relação sexual com alguém sem uso de preservativo”.

2) se foi detido por mais de 24 horas.

Pode-se questionar sobre o que o Estado reconhece tão despudoradamente acontecer em estabelecimentos de sua responsabilidade com pessoas detidas para que explicite que alguém que por eles passou, ainda que rapidamente, encontra-se em maior risco. E, ao lado disto, o etiquetamento que se faz destes sujeitos visíveis ao aparato penal: o de sangue-ruim. Talvez seja mais um etiquetamento que eles sofrem….ou talvez seja apenas uma outra manifestação do etiquetamento central que recebem: o de merecedor de exclusão (que serve, em última instância, para que o Estado legitime a exclusão por ele desde sempre dirigida a tais sujeitos).

3) tem alguma doença que gere inimputabilidade jurídica.

Inicialmente cabe apontar o explícito empréstimo de uma terminologia própria do direito penal, que certamente (segundo a psicanálise) não é ingênuo. Aqui se pode continuar de alguma forma a discussão realizada no item anterior, para pensar sobre a exclusão como doadores daqueles que, ao atuarem criminalmente, não podem sofrer penas. Mais uma vez, parece haver uma tentativa de excluir os visíveis ao aparato penal, independente de passíveis ou não de sofrerem pena.

Desconsiderando agora a infestação por simbolismo penal num texto oficial que trata de saúde, consideremos que se está referindo neste item aos incapazes civilmente. Mas mesmo aqui indaga-se a propósito do direito do Estado de impedir por exemplo a psicóticos de doarem sangue. Caso o operador do direito consultasse algum profissional psi quanto ao caso particular, poderia se surpreender ao saber que, para alguns sujeitos psicóticos, este ato poderia ser inclusive terapêutico. Evidentemente que deveria ter antes de tal análise uma manifestação do próprio sujeito em questão de seu interesse em doar sangue, para aí então seu discurso ser avaliado tanto em termos do que diz da relação com o outro (este que receberia sua doação) e com o Outro (este a quem expressa seu interesse). O que não parece pertinente é a proibição genérica, e provinda de um campo do saber (o direito) que talvez não seja o melhor conhecedor de psicoses.

Também é passível de reflexão a exclusão dos portadores de deficiências mentais como potenciais doadores, como se estes sujeitos não tivessem condição de realizar qualquer escolha.

Por sua vez, o Banco de Sangue de São Paulo compreende que serão inabilitados por um ano, como doadores de sangue, os candidatos que nos 12 meses precedentes tenham sido expostos a uma das situações abaixo:

1) Pessoas que tenham feito sexo com um ou mais parceiros ocasionais ou desconhecidos, sem uso do preservativo, ou que foram vítimas de estupro.

Resta-nos apenas perguntar se relações estáveis trazem, em si, menos risco. E, também, se a relação sexual com conhecido é de menor risco que a com desconhecido.

No mais, como o órgão estatal pensaria a situação da mulher vítima de estupro por parte do esposo? Ou será que não concebe que isto exista? Será que desconhecem que o estupro, contra qualquer público é cometido por conhecidos; aliás, começando pelos mais íntimos (no caso de crianças, por exemplo, pelos pais – padrasto fica em segundo lugar, seguido de outros familiares)?

E será que também não cogitam a situação do estuprador usar preservativo? Ou, até, que estupros não incluam penetração ou contato com sangue? Qual seria o estereótipo de cena de estupro presente na fantasia de quem redigiu estes termos?

2) Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais destes.

Aqui se evidencia um preconceito contra homens que possuem relações sexuais com outros homens. É pertinente lembrar que o alvo deste preconceito não são os homossexuais, mas qualquer homem que tenha experiência sexual com outro homem. Ou negaremos, por exemplo, haver heterossexuais adeptos de mènage?

De fato parece que aqui temos ainda outro público excluído: o de quem se relaciona com alguém que faz sexo com alguém que faz sexo com alguém do mesmo sexo. Não parece ser possível pensar de outra maneira a compreensão de que se relacionar com mulheres que transam com homens que transam com outros homens é uma situação, em si, de risco.

O INCA, por sua vez, estabelece como impedimento definitivo o uso de drogas ilícitas injetáveis, não cogitando a hipótese de que algum usuário, por algum meio qualquer, não se encontre em risco maior que um não usuário. Também é interessante pensar porque esta instituição acredita que injetar uma droga que seja lícita é, em si, uma situação de menor risco.

Por fim, na continuidade da discussão e para não se eximir totalmente a iniciativa privada da discussão, cabe dizer que conforme o Hospital Israelita Albert Einstein não pode temporariamente ser doador quem fez uso de cocaína via nasal, crack ou anabolizante injetável no último ano. Neste detalhamento melhor se explicita que o preconceito e estereótipo dirige-se praticamente ao usuário de drogas ilícitas, já que cita administração por outra via que não a injetável. E, ainda, um preconceito e estereótipo contra o usuário de anabolizantes, porque se sabe que isto pode ser feito de maneira segura. Em resumo: fisiculturistas também são excluídos.

Enfim, parece que antes do sangue, quem é triado é quem o porta. Antes de se analisar se o sangue é bom, analisa-se se quem o porta é sangue-bom. Sangue bom nesta concepção, cabe lembrar, seria aquele não usuário de drogas (ilícitas, principalmente), não prostituta, não praticante de sexo casual ou com desconhecido, adepto da monogamia, invisível à polícia, que não contrata serviços de prostitutas, não psicótico, não portador de deficiência mental, não vítima de estupro, não praticante de sexo com alguém do mesmo sexo.

Deparando-me com o que considero ignorância (decorrente de moralismos), procurei nas plataformas scielo, capes e lilacs trabalhos que abordassem a doação de sangue. Não tendo encontrado publicações que discorressem sobre seus impedimentos, resta por enquanto constatar que a questão é tão absurdamente rasa que sequer há o que se complexificar. Ressalta-se apenas, mais uma vez e ao que parece, o interesse estatal em elogiar a família burguesa e a racionalidade moderna e combater o tráfico.

A quê o medo de se contagiar por aqueles que transgridem estes ideais e interesses político-econômicos serve, será/foi assunto para outros momentos. De qualquer modo, desde já cabe lembrar que o repúdio é tão maior quanto mais nos reconhecemos no repudiado. Daí, por exemplo, o medo do sangue dizer por exemplo do medo do que ele representa para alguns: dor, morte. Há quem seja tão imune à vida que o sangue alheio nunca lhe remete à vida. Para os de sangue azul, os de sangue vermelho sempre são suspeitos e merecedores de sangrias.

Maíra Marchi Gomes é doutoranda em Psicologia, mestre em Antropologia pela Universidade Federal de Santa Catarina e Psicóloga da Polícia Civil de SC.

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Imagem Ilustrativa do Post: Blood Orange // Foto de: Jono Haysom // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/jonohaysom/5063803747

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Referências

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