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Ana Cláudia Pinho: Porque precisamos falar sobre garantismo

O artigo aborda a importância de discutir o garantismo penal no atual cenário democrático brasileiro, ressaltando os desafios enfrentados pela democracia desde o golpe de 2014 e a ascensão da extrema-direita. Ana Cláudia Pinho defende que, mais do que nunca, precisamos de juristas garantistas no Supremo Tribunal Federal, que respeitem a Constituição e assegurem os direitos de todas as minorias. O texto destaca que o garantismo não é apenas uma questão penal, mas uma teoria essencial para a defesa da democracia em sua totalidade, ressaltando a responsabilidade da Corte em proteger os direitos fundamentais.

Artigo no Conjur

Em 2017, publicamos, eu e meu parceiro Fernando Albuquerque, a primeira edição do nosso “Precisamos falar sobre garantismo: limites e resistência ao poder de punir”[1]. Trata-se de uma introdução — cujo objetivo principal era o de ser acessível, sobretudo, aos alunos da graduação — acerca dos fundamentos epistemológicos, axiológicos e normativos da teoria do Garantismo Penal, especialmente delineada por Luigi Ferrajoli, na obra Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale[2].

Eu ainda teria alguns pontos a elencar, pois venho trabalhando com a teoria de Ferrajoli há, pelo menos, 21 anos (sei disso porque a minha versão em espanhol — a primeira na qual estudei — data de maio de 2001). Entretanto, gostaria, a partir daqui, de destacar outros, não tão próprios do Garantismo Penal, mas que precisam ser objeto de reflexões, a quem pretende compreender a arquitetura mais ampla de Ferrajoli, no que diz respeito, em especial, à democracia.

E por que, mais do que nunca, precisamos falar sobre isso?

Em primeiro lugar, porque — pela primeira vez na história recente do Brasil, pós golpe militar de 1964 — estamos experimentando um esgarçamento do tecido democrático, tão cuidadosamente alinhavado na CRFB/88.

Durante os últimos oito anos — desde o início da operação “lava jato” (março de 2014)[4], passando pela abertura do processo de impeachment contra a então presidente Dilma Roussef (dezembro-2015), até as eleições presidenciais de 2018 e os quatro anos que daí se seguiram — observamos a ascensão da extrema direita no país, com tudo o que isso pode significar de mais ameaçador a um regime democrático: o aniquilamento das chamadas minorias (discursos de ódio contra a população negra, a comunidade LGBTI+, os povos originários, ações concretas de desproteção de certas categorias, como as mulheres, por exemplo); a adoção de uma política irracional em relação ao meio ambiente, favorecendo o desmatamento de florestas e minguando os órgãos de proteção; o incentivo e medidas concretas para facilitar a aquisição de armas de fogo por parte da população civil, sem qualquer controle efetivo; um total descaso com a saúde pública, com a educação pública, com a cultura; a adoção — por parte de agentes do governo, inclusive — de símbolos, gestos e frases próprios do regime nazista; o elogio a torturadores e ações do regime militar, como o AI-5; o sequestro dos símbolos nacionais e, uma das coisas mais preocupantes, a constante agressão virulenta ao Poder Judiciário, em especial, ao Supremo Tribunal Federal e ao Tribunal Superior Eleitoral, por meio de ofensas graves à honra de seus integrantes.

Digo que isso se reveste de especial gravidade, porque, numa democracia, como a desenhada em nosso país, o Poder Judiciário é contra-majoritário e possui a elevada e desafiadora missão de garantir a defesa intransigente da Constituição e dos direitos fundamentais de todos. Ou seja, está-se atacando a instituição republicana responsável, em última análise, pela manutenção, aperfeiçoamento e, inclusive, existência, da própria democracia.

Em segundo lugar, precisamos mais do que nunca falar sobre garantismo porque, conforme veiculações na imprensa e nas mídias sociais, o presidente da República recentemente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, pretende(ria) nomear para as duas vagas que, em 2023, serão disponibilizadas na Suprema Corte (com as aposentadorias do ministro Ricardo Lewandowski e da ministra Rosa Weber), juristas garantistas!

Bem, mas o que, então devemos entender por isso, para que não pairem as dúvidas e os pré-juízos (que acabam se tornando prejuízos) de sempre?

Um ministro ou uma ministra do Supremo Tribunal Federal, “terrivelmente” garantista é, antes de mais nada, alguém que deve total rendição à Constituição da República e às leis que com ela sejam compatíveis (“Constituição acima de tudo! Leis constitucionais acima de (e para) todos!”).

Um(a) garantista é, ainda, alguém que ama a democracia e respeita, fielmente, a estrutura republicana, compreendendo, de forma muita clara, a separação (e equilíbrio) dos poderes. É alguém que sabe seu lugar nesse jogo, isto é, sabe que há temas que são da política, há temas que são da Corte. Porém, há temas políticos que são da Corte e que devem ser enfrentados com os instrumentos republicanos colocados a seu dispor: a Constituição e as leis. Por isso, não faz muito sentido essa crítica de “judicialização da política”, porque é inexorável que uma Corte Constitucional opere em casos de moralidade política (Dworkin), como, para usar um exemplo emblemático, na questão das uniões homoafetivas, corretamente equiparadas às heteroativas, pelo STF, em 2011[5]. A questão não é o que, mas o como.

Um(a) garantista não é um sujeito que pactua com toda a sorte de abrandamento punitivo. Já disse acima e repito: garantista quer punição de gente culpada, com o respeito integral às regras do jogo democrático. Punição com racionalidade. Um ministro ou uma ministra garantista não será uma ameaça ao sistema de justiça criminal. Pelo contrário, poderá ser uma peça fundamental para o aperfeiçoamento de um sistema absolutamente deficiente, que opera claramente contra uma parcela vulnerabilizada da sociedade (pessoas negras) e que, não raro, condena (ou, no mínimo, impõe graves restrições, como prisões preventivas, por exemplo) pessoas inocentes[6].

Precisamos lembrar que nosso Código Penal data de 1940 e nosso Código de Processo Penal, de 1941, ambos, portanto, do período ditatorial de Vargas (Estado Novo), confeccionados pelas mãos de Francisco Campos (que jamais escondeu suas preferências pelo nazi fascismo) e inspirados ideologicamente pelo Codice Penale italiano, da década de 30, que serviu aos anseios de Benito Mussolini. E é, sim, tarefa inarredável do STF fazer esse controle, a fim de adaptar as leis penais e processuais penais ao modelo constitucional de intervenção punitiva, desenhado na CR/88.

É inevitável, a esse passo, registrar que a questão criminal — embora não sendo a única — é, sem dúvida, o locus privilegiado do garantismo, razão pela qual a teoria se apresenta como a melhor de todas as opções democráticas para enfrentar temas dessa ordem. A propósito, cabe registrar aqui, a título de exemplo, duas situações pendentes de julgamento pelo STF, que dizem diretamente com princípios garantistas (axiomas), tão caros a Ferrajoli e cuja decisão, seguramente, apontará um rumo bastante definido em direção a um modelo de Direito e Processo Penal compatível com o Estado Democrático de Direito, ou não…

Um deles: recurso extraordinário, com tema em repercussão geral, que discute a possibilidade de início da execução de pena após condenação pelo Conselho de Sentença. A proposta de tese do relator, ministro Luís Roberto Barroso é a de que a prisão do réu, condenado por decisão do Tribunal do Júri, ainda que sujeita a recurso, não viola o princípio constitucional da presunção de inocência ou não culpabilidade, tendo em vista que as decisões por ele proferidas são soberanas (artigo 5º, XXXVIII, da CF). Foi acompanhado pelos ministros Alexandre de Moraes, Dias Toffoli e Carmem Lúcia.

O ministro Gilmar Mendes pediu vista, abriu divergência para negar provimento ao recurso extraordinário, sob o seguinte argumento: a Constituição Federal, levando em conta a presunção de inocência (artigo 5º, inciso LV), e a Convenção Americana de Direitos Humanos, em razão do direito de recurso do condenado (artigo 8.2.h), vedam a execução imediata das condenações proferidas por Tribunal do Júri, mas a prisão preventiva do condenado pode ser decretada motivadamente, nos termos do artigo 312 do CPP, pelo juiz presidente a partir dos fatos e fundamentos assentados pelos Jurados“ e declarava a inconstitucionalidade da nova redação do artigo 492, I do CPP com redação dada pela Lei Anticrime. Foi seguido pelo ministro Ricardo Lewandowski e pela ministra Rosa Weber. O ministro André Mendonça pediu vista.

Segundo exemplo: ADIs 6298/DF- relator ministro Luís Fux. A ação foi manejada pela Associação da Magistratura Brasileira e pela Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e questiona a constitucionalidade da introdução do juiz das garantias no ordenamento jurídico brasileiro, pedindo que sejam julgados inconstitucionais alguns dispositivos da chamada Lei Anticrime. Os dispositivos questionados tiveram a sua eficácia suspensa por decisão monocrática do relator, quando a lei entrou em vigor e, desde então, aguarda julgamento. Há um pedido de prioridade na tramitação, mas ainda não foi decidido.

Os casos acima são bons exemplos a demonstrar o quanto importa (e muito) falar sobre Garantismo no âmbito da Corte Constitucional. Não é objeto dessas breves linhas aprofundar a parte teórica do garantismo ferrajoliano, mas a estrutura epistemológica e normativa do SG (sistema garantista) é suficiente para apontar o caminho: i) no primeiro caso, por evidente que a soberania do júri não pode implicar automática execução da pena, até mesmo porque aquela (a soberania) encontra limites, na própria teoria dos recursos. Cabe registrar que se trata de uma decisão de primeira instância ainda! O duplo grau de jurisdição é uma garantia claramente defendida por Ferrajoli. ii) no segundo caso, o juiz de garantias é uma providência inarredável se quisermos efetivamente pensar num modelo acusatório de Processo Penal para o Brasil. Não há como seguir como está, com um juiz contaminado pela fase investigativa e já tendo formado convencimento mesmo antes de receber a denúncia! Ferrajoli pormenoriza todas as graves consequências da (ainda) adoção de um modelo inquisitório.

Em terceiro lugar, importa, mais do que nunca, falar sobre garantismo, porque se trata de uma teoria da democracia! E aqui recorro ao novo livro de Luigi Ferrajoli, ”La costruzione della democrazia: teoria del garantismo costituzionale“[7], para encerrar essas breves reflexões.

A democracia garantista não se esgota na regra de maioria. Essa é importante, mas não suficiente. É necessária, por exemplo, para que possamos escolher nossos representantes no Poder Executivo e no Poder Legislativo. Há poucos dias vivemos essa experiência rica em nosso país, que nos está possibilitando retornar à normalidade democrática. E nesse ponto, de fato, a maioria vence! Venceu em 2018. Venceu em 2022. É o que Ferrajoli chama de democracia política, ou formal. A maioria, portanto, pode muita coisa! Mas, não pode tudo! O paradoxo da democracia garantista é que ela se auto limita! Isso porque, além do aspecto formal ou político, existe outro igualmente relevante: o material. E esse diz com a tutela de todas as pessoas, inclusive aquelas que, porventura, não integrem nenhuma eventual maioria[8].

Eis aqui o papel fundamental da Corte Constitucional: garantir que todos (absolutamente todos), ainda que minorias, tenham resguardados e tutelados seus direitos. Como já sustentei em artigo anterior, também publicado nesta ConJur, o juiz não deve ouvir a voz das ruas. Ele só tem uma voz a ouvir: a da Constituição![9]

Que bons ventos nos levem… O tempo parece alvissareiro!

[1] O livro teve uma segunda edição, pela Empório do Direito e Tirant lo Blanch, em 2019.

[2] Diritto e Ragione: teoria del garantismo penale. Prefazione di Norberto Bobbio. Editori Laterza, 1989.

[3] FERRAJOLI, Luigi. Principia iuris: teoria del diritto e della democrazia. Editori Laterza, 2007.

[4] Sobre a Operação Jato como exemplo privilegiado de lawfare, conferir o excelente Lawfare brasileiro. SANTORO, Antônio Eduardo Ramires e TAVARES, Natália Lucero Frias. Belo Horizonte: editora D’Plácido, 2019.

[5] ADI 4.277 e ADPF 132

[6] O Brasil conta hoje com, aproximadamente, 920.000 pessoas presas, das quais 66,7% são negras (pretas e pardas). O dado do quantitativo é do CNJ e o dado do percentual é do Anuário Brasileiro de a segurança pública, de 2020.

[7] FERRAJOLI, Luigi. La costruzione della democrazia: teoria del garantismo costituzionale. Editori Laterza, 2021.

[8] O tema sobre democracia formal e substancial consta no livro acima referido, a partir da página 227.

[9] https://www.conjur.com.br/2019-abr-12/ana-pinho-juizes-devemouvir-constituicao-nao-voz-ruas

Referências

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