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O juiz das garantias e o fim do faz-de-conta

O artigo aborda a necessidade de uma reformulação no sistema processual penal brasileiro, enfatizando a figura do juiz das garantias como essencial para garantir a imparcialidade e a igualdade cognitiva no julgamento. Os autores discutem como o juiz, influenciado por preconceitos e pela informação unilateral da fase de inquérito, tende a prejudicar a defesa, resultando em um cenário de “fingimento” de igualdade. Para efetivar uma verdadeira equidade processual, defendem a separação entre as fases de investigação e julgamento, para preservar a originalidade cognitiva do juiz.

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Que blindagem psíquica possuem os juízes brasileiros que os diferenciam dos demais? E não só os diferencia dos demais juízes, senão dos demais seres humanos? Nenhuma. A premissa é: o juiz, enquanto ser-no-mundo, também constrói imagens mentais a priori (no sentido kantiano adaptado, ou seja, antes da “experiência completa”), também decide primeiro para depois buscar os argumentos que justificam a decisão já tomada (parafraseando a clássica passagem de Franco Cordero) e também padece com a dissonância cognitiva e o efeito primazia. São diversos os estudos e pesquisas de campo demonstrando o imenso prejuízo cognitivo que decorre dos pré-juízos.

A realidade do processo penal — e que não se quer desvelar — é: a defesa sempre entra correndo atrás de um imenso “prejuízo cognitivo”. Ela sempre chega à fase processual em desvantagem e não raras vezes, já perdendo por um placar cognitivo negativo considerável, quando não irreversível. O processo não é mais que um faz de conta de igualdade de oportunidades e tratamento. O juiz já está — na imensa maioria dos casos — psiquicamente capturado [1] pela tese acusatória, até então tomada como verdadeira e geradora de graves consequências decisórias.

Enquanto não houver preservação da originalidade cognitiva do juiz — o que somente é possível com juízes diferentes para as fases pré-processual e processual, a fim de que o julgador do caso conheça dos fatos livre de pré-juízos formados pela versão unilateral e tendenciosa do inquérito policial —, o processo penal brasileiro não passará de um jogo de cartas marcadas e um faz de conta que existe contraditório. O próprio conceito de contraditório precisa ser reconfigurado para exigir também a igualdade de tratamento e oportunidades na dimensão cognitiva.

É preciso que se entenda isso de uma vez por todas, porque a oportunidade que se tem em mãos com o juiz das garantias — suspensa atualmente pela famigerada “liminar Fux” — pode não aparecer de novo, mantendo o Brasil como exemplo de modelo (neo)inquisitório do século XXI.

Qual é a dificuldade, afinal, de se compreender que todos os seres humanos — juízes, inclusive! — possuem uma tendência de equilíbrio cognitivo (leia-se coerência entre crenças, opiniões, ações, etc. — cognições) cujo rompimento, por insuportável, busca-se sempre evitar, ou, não sendo possível, restaurar, por meio de processos cognitivo-comportamentais involuntários [2] — como desde a década de 50 revela a teoria da dissonância cognitiva [3] —; sendo inconcebível que alguém que criou uma imagem mental unilateral sobre um fato, receba uma versão oposta acerca do mesmo fato sem desacreditá-la, diante do mal estar psíquico que inexoravelmente representa?

Ou, então, que uma vez fixada uma primeira impressão sobre alguém, serão mais facilmente aceitáveis informações que a corroborem do que outras que a contrariem, como também já comprovou a psicologia social pelo denominado “efeito primazia”, revelando que as informações posteriores a respeito de alguém são, em geral, consideradas no contexto da informação inicial recebida [4], a qual exerce um direcionamento não apenas das demais cognições a respeito da respectiva pessoa como também do comportamento em relação a ela, fundamento do jargão popular de que “a primeira impressão é a que fica” [5]?

Porque se não há dificuldade, como é que se pode duvidar da inevitável contaminação do juiz pela investigação preliminar na estrutura processual penal atual, considerando que os elementos investigativos constantes no inquérito (entre outros sistemas de investigação), unilaterais por natureza, são as primeiras informações/impressões disponíveis ao juiz a respeito do fato, as quais exercerão forte influência sobre as informações posteriores recebidas no processo, no sentido de adequação a essa primeira imagem mental, para evitar dissonância cognitiva e seus efeitos perniciosos correlatos?

Mais: como é que se pode esperar que um juiz, depois de decretar uma série de medidas restritivas de direitos fundamentais com base nesse mesmo arcabouço informativo parcial — interceptações telefônicas, quebras de sigilo bancário e fiscal e até prisões cautelares —, reforçando cada vez mais a conformação da sua cognição contra o investigado, receba a versão dos fatos apresentada pela defesa na futura fase processual com a mesma tranquilidade cognitiva que receberá a versão da acusação?

Simplesmente não há como concordar com todas essas problematizações ao mesmo tempo. Ou se adere ao argumento inicial — fundamentado teórica e empiricamente — ou se adere a uma negação genérica e irracional, sem fundamento algum.

E nem precisariam ter sido testadas tais hipóteses teóricas na própria dinâmica de um processo penal concreto para se concluir que o juiz condena mais frequentemente quando conhece a investigação preliminar do que quando é apresentado aos fatos somente na fase processual. Mas foram [6], havendo, inclusive, subsídio empírico específico atualmente para se comprovar que sem juiz das garantias o juiz não passa de um terceiro manipulado no processo penal.

Aliás, tal pesquisa evidencia também outro ponto fundamental à criação do juiz das garantias: a indispensabilidade da exclusão física (ou não inclusão) dos autos do inquérito, exceto provas de natureza cautelar, antecipadas e irrepetíveis [7], sob pena de se esvaziar complemente a eficácia da proposta, na medida em que o contato direto do juiz da fase processual com tais elementos investigativos unilaterais impede, por tudo o que aqui se viu, a preservação da sua necessária originalidade cognitiva para instruir e julgar o caso.

Em suma, ou se permanece na fantasia infantil de que a jurisdição criminal brasileira é exercida por seres dotados de superpoderes — imunes a fenômenos naturais à condição humana — ou se admite a falibilidade das decisões e dos julgamentos humanos, sempre influenciados por pré-julgamentos e pré-conceitos, reconhecendo-se a imprescindibilidade do juiz das garantias para acabar com o faz-de-conta-que-existe-igualdade-cognitiva vigente no processo penal brasileiro.

[1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. 17ª Edição. São Paulo: Editora Saraiva, 2020, p. 385 e ss.

[2] Remetendo o leitor que se interessar nas respostas que o sistema psíquico humano oferece para o enfrentamento do molesto rompimento de seu equilíbrio, reflexo da experimentação de dissonância cognitiva, para: RITTER, Ruiz. Imparcialidade no processo penal: reflexões a partir da teoria da dissonância cognitiva. 2ª. ed. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2019. p. 99-141.

[3] FESTINGER, Leon. Teoria da dissonância cognitiva. Trad. Eduardo Almeida. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1975. p. 11-12.

[4] GOLDSTEIN, Jeffrey H. Psicologia social. Trad. José Luiz Meurer. Rio de Janeiro: Editora Guanabara Dois, 1983. p. 93.

[5] FREEDMAN, Jonathan L; CARLSMITH, J. Merril; SEARS, David O. Psicologia Social. 3ª. ed. Trad. Àlvaro Cabral. São Paulo: Editora Cultrix, 1977. p. 40.

[6] SCHÜNEMANN, Bernd. O juiz como um terceiro manipulado no processo penal? Uma confirmação empírica dos efeitos perseverança e aliança. In: SCHÜNEMANN, Bernd. Estudos de direito penal, direito processual penal e filosofia do direito. Luís Greco (coord.). São Paulo: Marcial Pons, 2013.

[7] Nos termos da acertada previsão do novo artigo 3º-C, parágrafo terceiro, do CPP.

Referências

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