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Na dúvida, consulte-se os antecedentes: o efeito Kafka

O artigo aborda a influência dos antecedentes criminais na atribuição de culpa no processo penal, enfatizando que, apesar da teoria tratar o crime como um ato e não como uma extensão do autor, o estigma associado a condenações anteriores persiste e molda a percepção de juízes e jurados. Os autores defendem que conhecer a biografia e o contexto do acusado pode alterar a interpretação da culpa, sugerindo que o direito penal deve se afastar de uma visão reducionista que perpetua rótulos e preconceitos, propondo uma análise mais humana e contextualizada. Além disso, destacam a necessidade de uma mudança cultural no sistema judiciário para evitar o uso indiscriminado de antecedentes como critério decisório em casos de dúvida razoável.

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Por mais que pomposamente se diga que o Direito Penal é do fato, e não do autor, muitas das atribuições de culpa ainda operam na lógica do autor. Dar-se conta dessa verdade pressuposta e silenciosa modifica o modo pelo qual o acusado deve se apresentar no processo criminal.

Infelizmente, o processo de estigmatização e etiquetamento é constante em processos criminais, pendendo sobre o acusado o eterno rótulo de uma vez delinquente, sempre delinquente. Trata-se de uma postura reducionista e determinista, mas que infelizmente habita o imaginário dos juízes e de outros atores judiciários. A eternização do estigma é ainda uma mola propulsora à própria reincidência, na medida em que, ao lhe ser atribuída uma identidade social degradada, todas as portas se fecham, menos uma: a do crime. Impossibilitado de fazer o alinhamento grupal em razão do estigma, não lhe resta outra saída senão a de assumir a identidade degradada e fazer valer o rótulo.

Daí que será necessário conhecer o acusado antes e depois da conduta imputada, apurando-se informação qualificada sobre seu passado e situação presente. Entre o evento imputado e a decisão judicial, permeia um espaço de tempo que pode alterar o sentido da culpa. Descobrir quem é o personagem acusado e quem é a vítima, seu passado e contexto atual, portanto, mostra-se como um ganho informacional capaz de ser explorado tanto pela acusação como pela defesa. Nesse contexto, até mesmo a estrutura psicológica do acusado pode fazer toda a diferença, uma vez que, para algumas pessoas, a mera imputação já lhes configura um peso gigantesco, e, mesmo diante da inocência, o fato do processo e o que pensam do acusado, visto — antecipadamente, como culpado, pode gerar comportamentos que, à primeira vista, significam a culpa — que esse processo está muito bem descrito no livro de Kafka O Processo, a que se pode chamar “efeito Kafka”.

Em geral, a existência de antecedentes criminais será levada em consideração na atribuição de culpa por mecanismos cognitivos, em geral ingênuos, mas que operam. Explorar os antecedentes é uma tática argumentativa recorrente pela acusação e também dos julgadores, que, em caso de dúvida, consultam os antecedentes. Por isso, a defesa não pode silenciar, demonstrando a superação das condenações anteriores e desvelando a vida atual do acusado. Buscar a história do acusado e da vítima pode ampliar os horizontes. Claro que não se pode cair em julgamentos da vítima, como se faz em crimes sexuais, dado ser jogo sujo e antidemocrático. O que importa é saber se os envolvidos já tinham conflitos e relacionamentos antecedentes, porque isso pode fazer diferença na imputação presente. Tanto a vida social como pessoal do acusado e da vítima podem compor diretrizes interessantes na convergência decisional. Não se pode comprovar o que o acusado pensava (dolo e culpa), devendo-se inferir da conduta experimentável o motivo de sua ação. A conduta, então, revela a motivação dos personagens.

Resgatar a biografia e o modo de vida dos personagens sempre será um ganho, mesmo que não se utilize, especialmente seu contexto familiar e trajetória de vida profissional. O acusado e a vítima existem desde antes da conduta imputada, e, assim, sublinhar esses elementos de informação pode alterar o impacto da conduta.

Durante toda a instrução, o desafio será inserir as questões relevantes, capazes de obter respostas significantes no sentido do standard probatório singularizado, ou seja, do caso penal. Tudo isso para poder gerar antecipações, projeções, enfim, que os jogadores e, em especial, o julgador possam ver o desenrolar da conduta do lugar dos protagonistas e suas opções de ação[1].

É interessante como não existe, jurídica ou logicamente, nenhum nexo causal entre antecedentes e critérios de decisão em caso de dúvida razoável. É completamente ilógico que, diante de uma dúvida razoável, recorra o julgador (ainda que sem assumir) aos “antecedentes” como critério de “desempate”. Por que o fato de alguém ter sido condenado no passado acarreta a presunção de autoria em relação a novos delitos em caso de dúvida? Ou vamos aceitar o reducionismo sem qualquer lógica de que, por exemplo, uma “vez ladrão, sempre ladrão”? De onde vem a base jurídica para um determinismo dessa envergadura? A resposta é elementar: não há base de sustentação, mas apenas uma cultura inquisitória-punitivista-estigmatizante que precisa ser rompida.

Em crimes patrimoniais, por exemplo, deve-se sublinhar os conflitos que os acusados vivenciam em relação às demandas de sobrevivência, de fome, de exclusão, capazes de justificar a necessidade da ação, sublinhando o modo de interação com as vítimas e familiares antes e depois da conduta. Pode ser que por aí se compreenda a disposição para a ação e justifique, assim, o reconhecimento da insignificância/bagatela. Sem esse alargamento das lentes do caso penal, tudo se resume à conduta penal: subtração. Pode ser, também, que os jogadores não se sensibilizem com as informações, mas talvez seja a única chance de dar crédito às necessidades e contingências de sujeitos humanos premidos pelas circunstâncias. Quando o foco da análise da insignificância é somente o valor do bem subtraído, sem o entorno pessoal do acusado, a tendência à rejeição da tese é maior/dominante, até porque os vetores estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal são típicos do Direito Penal do autor.

No tribunal do júri, o uso dos “antecedentes” criminais em plenário é perverso e covarde. Joga-se diante de jurados leigos, fragilizados pelo ritual judiciário, que são facilmente impressionáveis pelo determinismo da eternização do estigma. Deixa-se totalmente de lado a prova, para se julgar pela cara e o passado, como se ele (o passado) fosse o senhor todo poderoso que condicionasse o futuro. Para agravar o cenário, no Brasil, os jurados julgam por íntima convicção e sem fundamentar, o que, em pleno século XXI e em um Estado Democrático de Direito, é absolutamente inadmissível[2]. Mas infelizmente é assim. Uma solução, aliada ao dever de fundamentação (respeitado o fato de ser o jurado leigo, nada impede que motive — não juridicamente, por elementar — a decisão), seria a adoção de uma regra de exclusão (exclusionary rule) como existe no sistema inglês. A proibição da prova sobre o bad character serve exatamente para evitar-se o julgamento a partir dos antecedentes e da conduta de vida, o estigma que conduz ao Direito Penal do autor.

Por tudo isso, os antecedentes não deveriam ser consultados com essa finalidade. Mas são. Jogar de modo profissional no processo penal exige antecipações táticas, e quem não se dá conta tende a se dar mal. Enfim, parafraseando a letra da música do Charlie Brow Jr, “não te julgam pela razão, mas pelos seus antecedentes. Tome cuidado”. Boa semana.

[1] MORAIS DA ROSA, Alexandre. Guia do Processo Penal Conforme a Teoria dos Jogos. Florianópolis: Empório do Direito, 2017. [2] Sobre o tribunal do júri e a crítica, consulte-se a obra Direito Processual Penal, 14a ed., Saraiva, 2017, de Aury Lopes Jr.

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