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A exclusão dos autos do inquérito e o tribunal do júri

O artigo aborda as implicações da reforma do Código de Processo Penal trazida pela Lei 13.964/19, especialmente sobre a exclusão dos autos do inquérito no Tribunal do Júri, evidenciando a necessidade da imparcialidade do julgador e o fortalecimento do contraditório. O autor discute as consequências da decisão do STF que suspendeu a aplicação dessa norma, destacando os riscos de acesso dos jurados a provas colhidas sem a devida participação da defesa. Assim, busca-se a restauração da eficácia da norma para garantir a proteção dos direitos fundamentais e a justiça no processo penal.

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O Código de Processo Penal, mais uma vez, foi objeto de reforma com o advento da Lei 13.964/19 (“pacote anticrime”) decorrente dos PL 10.372/18, PL 10.373/18 e PL 882/19. Interessa, aqui, analisar especificamente o artigo 3º-C, §3º com relação à sua aplicação no Tribunal do Júri e os efeitos da decisão monocrática no STF nos autos das Ações Diretas de Inconstitucionalidade nºs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, pontos relevantes acerca da adequação constitucional do tema.

Cabe informar que estas ações têm por objeto diversos dispositivos da novel lei. Em 22 de janeiro de 2020, o Ministro Relator, Luiz Fux, revogou decisão anterior dada pelo Presidente Dias Toffoli durante plantão judiciário, e entre outros artigos, suspendeu a eficácia dos artigos 3º-A a 3º-F que tratava da implantação do juiz das garantias e seus consectários. Por conseguinte, afastou-se a aplicação do §3º, do artigo 3º-C que é objeto deste artigo.

As normas constantes dos dispositivos legais (arts. 3º-B a 3º-F), como dito, regulam a figura do juiz das garantias que tem como propósito diminuir os riscos de contaminação subjetiva do julgador, reforçando a sua imparcialidade. Dentre elas, criou-se a regra do § 3º, do artigo 3º-C de que os autos que compõem as matérias de competência do juiz das garantias (aquele que atuará na fase de investigação realizando um controle da legalidade e das garantias dos direitos fundamentais) não serão apensados aos autos principais que serão enviados ao juiz da instrução e julgamento, com exceção das provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas.

Esta norma dispõe sobre a exclusão dos autos de competência do juiz das garantias dos autos principais processados pelo juiz da instrução e julgamento. Trata-se de um avanço na disciplina processual penal, haja vista que o julgador do mérito da causa não será influenciado ou contaminado subjetivamente com elementos produzidos na ausência da defesa e do acusado, assegurando tanto a imparcialidade do julgador como o princípio do contraditório, o direito ao confronto, a imediação e a paridade de armas.

No tocante ao procedimento do Júri, há uma peculiaridade, haja vista que o julgamento é realizado por pessoas leigas, tecnicamente não-conhecedoras do direito, cujo sistema de valoração da prova é da íntima convicção, em que não haverá exposição das razões de decidir.1

Defende-se, aqui, que, com a promulgação da Lei 13.964/19, houve uma mudança de panorama e o artigo 155 do Código de Processo Penal merece uma releitura. É certo que a referida lei não alterou o artigo 155 do CPP expressamente, mas trouxe algumas normas significativas cuja interpretação sistemática é medida que se impõe.

O artigo 3º-A prevê expressamente que o processo penal terá estrutura acusatória e o artigo 3º-C, §3º determina que os autos do inquérito não serão apensados aos autos principais enviados ao juiz da instrução e julgamento, com exceção das provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas ou de antecipação de provas. Entende-se, assim, que o juiz que julgará o mérito não poderá se valer em sua fundamentação de elementos informativos colhidos na investigação, eis que este não terá contato com os autos do inquérito policial, de forma que deverá fundamentar sua decisão em provas produzidas sob o contraditório.

Pode-se afirmar que houve uma revogação tácita do artigo 155 na parte em que se permitia que o juiz fundamentasse sua decisão em elementos informativos colhidos na investigação, somente sendo autorizado, atualmente, que a fundamentação tenha por base provas produzidas em juízo, com a exceção já mencionada anteriormente, de tal sorte que restaram fortalecidos diversos princípios com esta nova regra.

No momento, apesar de tal regra encontrar-se em vigor, está suspensa sua eficácia pela decisão liminar do Ministro Luiz Fux e, assim sendo, sua não-aplicação retorna ao status quo ao autorizar que tudo aquilo que for objeto do inquérito ou da investigação sejam apensados aos autos cujo acesso será permitido ao juiz, no procedimento comum, e ao juiz presidente e jurados no caso do tribunal do júri. Quanto ao juiz no procedimento comum, permanece a dicção legal do artigo 155 que lhe autoriza fundamentar a sentença condenatória em elementos informativos obtidos no inquérito, desde que não seja exclusivamente, conforme entendimento assentado pelo Supremo Tribunal Federal.2

A situação é mais grave quando se trata do procedimento do Júri. Com relação ao juiz presidente, não há grandes problemas, eis que este não será o julgador do mérito da causa, todavia, em relação aos jurados, há violação de princípios e garantias fundamentais, como indicado acima.

Com efeito, não há fundamentação pelo Conselho de Sentença e a admissão de elementos informativos colhidos na investigação pode gerar graves prejuízos à defesa e a democraticidade que se espera assegurar no processo penal.

Além do acesso direto aos autos por parte dos jurados, na prática, não é incomum o membro do Ministério Público proceder com a leitura de elementos do inquérito, sejam declarações testemunhais, da vítima ou do próprio acusado em seu prejuízo, sejam outras peças existentes neste procedimento inquisitivo.

Acontece que tais elementos foram produzidos sem respeitar o contraditório e a ampla defesa, uma vez que ausente a participação da defesa técnica nesta fase inquisitorial, na maioria das vezes. Como se sabe, o inquérito é um procedimento administrativo, inquisitorial, escrito, etc e tais princípios não se realizam em sua completude nesta seara3, sendo o entendimento correto que os elementos informativos do inquérito devem servir apenas para subsidiar a admissibilidade da acusação e o juízo acerca de medidas cautelares pessoais, patrimoniais ou probatórias.4

A razão de ser do §3º, do artigo 3º-C foi justamente afastar o julgador dos elementos colhidos na investigação, a fim de assegurar a sua imparcialidade e também fortalecer o contraditório. No procedimento do júri não é diferente.

Ainda que a decisão monocrática do STF entenda pelo afastamento da figura do juiz das garantias com todas suas funções previstas no artigo 3º-B, não é razoável a interpretação de suspender a eficácia da norma acerca da exclusão dos autos do inquérito (art. 3º-C, §3º). E uma coisa não impede a outra. Com efeito, muito embora tenha se decidido pelo afastamento do juiz das garantias como controlador da legalidade da investigação e das garantias dos direitos fundamentais, plenamente possível manter a regra de exclusão dos autos do inquérito, considerando os próprios argumentos delineados na decisão do Ministro, aplicando-se tanto ao procedimento comum, como ao Tribunal do Júri.

Como dito, o aspecto problemático neste último procedimento é que os jurados acessarão elementos inquisitoriais durante o julgamento em plenário, os quais não foram submetidos ao contraditório e ao direito ao confronto – controle defensivo –, e julgarão sem fundamentar suas decisões, de forma que não se saberá se a decisão levou em conta elementos do inquérito ou produzidos em juízo.5

Daí que a decisão nas ADIs 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305 impediu o avanço legislativo já iniciado com o advento da Lei 11.689/08, na qual a oralidade restou reforçada no procedimento do júri, limitando a possibilidade de leitura de depoimentos anteriores pelas partes no momento do julgamento.

Observe-se, nesse sentido, o teor do artigo 473, §3º, do CPP que permite as partes e jurados requererem a leitura de peças que se refiram às provas produzidas por carta precatória e às provas cautelares, antecipadas e irrepetíveis. Numa interpretação a contrario sensu, não poderão requerer (ou efetivamente proceder a leitura) de declarações prestadas na fase de investigação e até mesmo na primeira fase do procedimento.6 Tal entendimento, porém, não é pacífico.7

Um dos pontos trazidos pela reforma de 2008 foi obstar práticas comuns no Plenário do júri, em que as partes se valiam de leitura e exibição das declarações anteriormente prestadas por testemunhas em substituição a sua produção no julgamento.8

Anteriormente à esta alteração legal (2008), o CPP permitia que fossem dispensadas as testemunhas já ouvidas na primeira fase (antigo artigo 561, nº IV), sendo facultativo arrolar testemunhas no libelo e na contrariedade ao libelo, de tal forma que, na prática, o julgamento era realizado com base em provas escritas constantes dos autos produzidas na primeira fase do procedimento – na ausência dos jurados – e/ou no inquérito policial).

Considera-se, portanto, um grande avanço a norma do artigo 3º-C, §3º, incluído pela Lei 13.964/19 que, expressamente, acolheu orientação doutrinária9 para excluir os autos do inquérito policial do processo, priorizando as provas produzidas em obediência às garantias do devido processo legal.

Caso mantida a referida decisão do STF, em vez de fortalecer o entendimento de que os jurados não devem ter acesso aos autos do inquérito, permitir-se-á a continuidade da prática de leitura de peças do inquérito por parte do Ministério Público durante os debates no julgamento do Tribunal do Júri.

Diante disso, a fim de evitar violações a princípios democráticos e direitos fundamentais, é de suma importância que o Plenário do Supremo Tribunal Federal, ao julgar as ADIs citadas, restabeleça a eficácia do artigo 3º, §3º, do CPP, determinando a exclusão do inquérito policial, o que trará efeitos positivos principalmente para o procedimento do tribunal do júri. Assegurar-se-á, assim, a dimensão democrática do processo penal com respeito à dignidade humana do acusado e a proteção do inocente.

1 Cf. NARDELLI, Marcella Mascarenhas. A prova no tribunal do júri: uma abordagem racionalista. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, sobre críticas a este modelo e sugestão de um critério racional de valoração da prova nos procedimentos do júri.

2 STF, AP 470/MG “Mensalão”, Plenário, relator Ministro Joaquim Barbosa, fls. 54.050-54.052; STF, HC 114.592 – MT, 2a Turma, relator Ministro Ricardo Lewandowski, de 26 mar 2013. Cf. ainda STF, HC 125.035 – MG, 1.ª Turma., relator Ministro Dias Toffoli, de 10 fev 2015.

3 Em alguns momentos, permite-se o acesso da defesa aos autos do inquérito, conforme súmula vinculante 14 do STF, artigo 3º-B, inciso XV, do CPP, incluído pela Lei 13.964/19. De todo modo, é apenas o acesso, e não participação momentânea nos depoimentos.

4 LOPES JR., Aury; GLOEKNER, Ricardo Jacobsen. Investigação preliminar no processo penal. 6º ed. rev., atual. e ampl. São Paulo. Saraiva, 2014, p. 322. Para tais elementos serem valorados deverão ser produzidos na fase processual. MENDES, Paulo de Sousa. Lições de direito processual penal, Coimbra: editora Almedina, 2014, p. 48. AMBOS, Kai. Processo penal europeu: preservação das garantias e direitos individuais: princípios processuais e análise da convenção europeia de direitos humanos. Tradução, notas e comentários sob a perspectiva brasileira de Marcellus Polastri. Rio de Janeiro: editora Lumen Juris, 2008.

5 Na Espanha, através da Lei Orgânica 5/1995, que alterou normas referentes ao julgamento pelo Júri, o inquérito policial é excluído dos autos principais. Da mesma forma é o sistema italiano com a exclusão do indagine preliminare.

6 BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo Penal. 4a ed. rev. atual. ampl., São Paulo: Editora Revista do Tribunais, 2016, p. 698.

7 Em sentido contrário, v. MENDONÇA, Andrey Borges de. Nova reforma do Código de Processo Penal. São Paulo: Método, 2008, p. 93, que defende peças do inquérito não poderiam ser lidas durante a instrução em plenário (antes das alegações orais das partes) pelo escrivão, mas que estas peças poderiam ser lidas pelas partes no tempo que lhes couber durante os debates orais.

8 Cf. o voto do então Desembargador Geraldo Prado (TJRJ, Correição Parcial nº 246643-78.2010.8.19.0001, relator Desembargador Geraldo Prado, 5a Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, de 28/11/2011. Disponível em http://www1.tjrj.jus.br/gedcacheweb/default.aspx?UZIP=1&GEDID=0004B8791F30EBC148CC3D5C9CD60A883D3E3FC434366115&USER=. Acesso em 09 março de 2020) que considerou que “a primeira etapa do procedimento do júri sofreu verdadeira blindagem e a nítida e rigorosa divisão entre o antes e o depois da pronúncia marcou, também, a distinção do papel da prova em ambas as etapas”.

9 Por todos, v. LOPES JR., Aury. Direito Processual Penal.12ª ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 162-166.

Referências

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