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O pacto masculino acadêmico de mediocridade

O artigo aborda a invisibilidade e a exclusão das mulheres na academia e no ambiente jurídico, evidenciando como o sistema patriarcal perpetua a mediocridade masculina. As autoras, Luísa Walter da Rosa e Fernanda Pacheco Amorim, discutem a histórica falta de reconhecimento das contribuições femininas no campo do Direito e a cultura que torna difícil para mulheres serem citadas ou reconhecidas como referências. O texto clama por uma mudança estrutural, propondo um levante por igualdade para construir uma narrativa acadêmica mais inclusiva e diversa.

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Eu te cito / Tu me citas / Ele se cita / Nós nos citamos / Vós vos citais / Eles se citam.

Façamos um exercício rápido de comparação: em quantos artigos e livros jurídicos escritos por homens você lembra de a maior parte das citações e referências utilizadas serem de mulheres? Ou mais, de que sequer exista algum escrito feminino referenciado?

Isso acontece por qual motivo? Mulheres não se graduam? Não investem em suas carreiras acadêmicas? Não escrevem? Mulheres não possuem capacidade intelectual ou cognitiva suficiente para produção acadêmica de qualidade?

Obviamente, mulheres se formam em ciências jurídicas, tornam-se especialistas, mestras, doutoras, pós-doutoras e livres docentes. Escrevem, e escrevem muito. O problema não é — e nunca foi — que a gente não exista ou não produza. O problema é que não conseguimos ganhar a visibilidade, o respeito e a legitimação necessários para sermos consideradas referências em determinado assunto.

Mary Wollstonecraft, considerada uma das fundadoras do movimento feminista, falava e escrevia sobre esse tema desde 1792, quando lançou sua icônica obra “Reivindicação dos direitos da mulher” [1], que é uma crítica contundente à exclusão das mulheres como sujeitas de direitos pela Constituição Francesa publicada pós Revolução Francesa. Desde aquela época, Wollstonecraft debatia de igual para igual — em termos de qualificação e conhecimento — com Jean Jacques Rousseau, por exemplo, questionando a visão masculina, estereotipada e injusta a respeito da figura feminina, a qual era veementemente negado o acesso ao conhecimento e à educação, o que, para a autora, seria o caminho para um mundo com mais equidade de gênero [2].

Ainda falando em Revolução Francesa, que tinha como pilares liberdade, igualdade e fraternidade (para um grupo bem delimitado — frise-se), foi nesse período em que se elaborou a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Chama atenção, inclusive, que Rousseau e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão seja leitura obrigatória nas disciplinas propedêuticas do curso de Direito.

Mas cabe a pergunta: você estudou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã elaborada, em 1791, por Olympe de Gouges [3], e que tem um compromisso muito maior com a liberdade, a igualdade e a fraternidade do que a versão masculina? Poucos são os que sequer conhecem Olympe ou Mary Wollstonecraft. Elas menos ainda são mencionadas como figuras pensantes e relevantes na construção de um Estado de Direito.

A vontade de escrever este texto surgiu de um incômodo muito grande de duas mulheres que, desde os bancos da graduação, forçam entrada nos mais diversos espaços do universo acadêmico e profissional do Direito, para serem lidas, ouvidas, lembradas. Que estudaram um Direito masculino, contado e ensinado a partir da perspectiva de escritos de muitos homens, que constam repetidamente nas bibliografias das disciplinas, nos corpos docentes, nos eventos como palestrantes, como se esses espaços ocupados fossem vitalícios, inquestionáveis e imutáveis.

Somos parte de uma legião de mulheres que precisam constantemente estar reafirmando e comprovando que são competentes e capazes, que dominam diversos conteúdos e não só questões de gênero ou consideradas femininas (como Direito de Família e violência doméstica). E se não bastasse termos de lidar com os questionamentos e cobranças externos, precisamos também combater os internos, como a famosa síndrome da impostora [4]. Crescemos educadas dentro de uma cultura que nos ensina que nunca seremos boas o suficiente, que não devemos nos sobressair, que podemos ser ambiciosas e bem-sucedidas, desde que isso não ameace nossos colegas homens. É exaustivo vivenciar isso todos os dias e ter de constantemente apontar o óbvio.

Quantas vezes já tivemos de ouvir e/ou ler que não há paridade de gênero no corpo docente deste curso, na grade de palestrantes deste evento ou nos autores deste livro de artigos porque “infelizmente não existem mulheres” que deem aulas, palestrem ou escrevam sobre literalmente qualquer assunto. Se não usam a frase “não existem mulheres” é porque utilizaram a segunda opção: “É muito difícil encontrar mulheres” para compor esses quadros.

E é aí que está o cerne da questão. Você já parou para pensar por que considera que nós não existimos, não produzimos ou é tão difícil encontrar os nossos escritos? Ou porque não te incomoda homens continuarem ocupando todos os espaços, de forma majoritária? Esses questionamentos “inquestionáveis” baseiam-se na já exaustiva cultura patriarcal e machista, que segue influenciando negativamente e impedindo que nós, mulheres, vivamos uma vida plena, usufruindo de todo o nosso potencial.

Marcia Tiburi diz que: “O patriarcado é também uma forma de poder. Ele é como uma coisa, uma geringonça feita de ideias prontas inquestionáveis, de certezas naturalizadas, de dogmas e de leis que não podem ser questionadas (…)” [5]. E o patriarcado vive na sociedade, na academia e no ambiente jurídico. A legitimidade intrínseca masculina ainda é tida como regra. E assim, seguindo a lógica patriarcal, silenciam-se as mulheres.

Nas palavras de Rebecca Solnit:

“São as ideias preconcebidas que tantas vezes dificultam as coisas para qualquer mulher em qualquer área; que impedem as mulheres de falar, e de serem ouvidas quando ousam falar; que esmagam as mulheres jovens e as reduzem ao silêncio, indicando, tal como ocorre com o assédio nas ruas, que esse mundo não pertence a elas. É algo que nos deixa bem treinadas em duvidar de nós mesmas e a limitar nossas próprias possibilidades — assim como treina os homens a ter essa atitude de autoconfiança total sem nenhuma base na realidade” [6].

A alegada “dificuldade” em encontrar mulheres para palestrar ou escrever está inserida nessa cultura, e pode ser facilmente enfrentada com um esforço, por parte de todos e todas, ao ceder espaços verdadeiros, e não só pró-forma, para mulheres. Não encontrou sozinho(a) uma mulher que tenha afinidade com o tema da palestra/aula/livro/artigo? Pergunte a outras pessoas. Peça referências, indicações, dialogue com as suas colegas. Quando terminar de escrever um texto, pare e reflita sobre a diversidade das referências bibliográficas utilizadas.

Homens, estamos cansadas de ter de lutar e reivindicar algo que a vocês é tão básico e natural: vocês se leem, se citam, se ouvem e se respeitam, enquanto nós precisamos constantemente lembrá-los de que também existimos e produzimos. Mulheres que ousam desafiar todos os estereótipos, o incômodo é de todas nós, e vocês não estão sozinhas. Em relação à nossa luta, mais uma vez citamos Solnit:

“A maioria das mulheres luta em duas frentes — uma pelo tópico em questão, qualquer que seja, e outra simplesmente pelo direito de falar, de ter ideias, de ser reconhecida como alguém que está de posse de fatos e de verdades, que tem valor, que é um ser humano” [7].

E percebam que estamos aqui falando de mulheres em sua generalidade, mas, se abrirmos o leque de especificidades (o que é essencial num pensamento feminista interseccional), veremos que as particularidades e exclusões intelectuais e acadêmicas que envolvem mulheres, negras, trans, com deficiência etc. são ainda mais gritantes.

Construímos uma “cegueira deliberada” acadêmica em relação à produção científica de mulheres. O pacto se renova a cada texto: finge-se que não há mulheres escrevendo, citam-se sempre os mesmos, as mesmas ideias, as mesmas teorias, os mesmos pensamentos e quem não nasceu com o “gênero certo” fica excluída dos centros de poder. Tudo justificado pelo “ponto cego”: ah, eu não conhecia essa pesquisadora…

Joice Berth alerta:

“(…) Em uma sociedade que mantém e propaga valores dúbios e uma moral condicionada a interesses que não traduzem as necessidades coletivas, não estamos livres de nos depararmos com indivíduos que mantêm seus pontos cegos, seja por ignorância ou por conveniência” [8].

É importante que esteja claro: no ambiente jurídico-acadêmico o discurso da ignorância não é aceitável. Nos resta a conveniência e, acrescentando à escrita de Joice, a conivência com esse pacto masculino de mediocridade. Concordamos que tudo isso é cultural, mas como diz Chimamanda: “A cultura não faz as pessoas. As pessoas fazem a cultura. Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da nossa cultura, então temos que mudar nossa cultura” [9].

Se uma humanidade inteira de mulheres não faz parte da cultura jurídica, então já passou da hora de alterarmos isso. E é este o intuito deste texto: causar desconforto, apontar o dedo na ferida, clamar por voz e por vez e chamar um levante. Um levante de mulheres e homens adeptos à luta por igualdade para que juntes consigamos reescrever a história jurídica, desta vez com paridade de gênero nas referências, nos bancos das universidades, nos eventos e em todas as posições de destaque e de poder.

[1] WOLLSTONECRAFT, Mary. Reivindicação dos direitos da mulher. São Paulo: Boitempo, 2016.

[2] Também defende a educação como o caminho para não só conquistar a equidade de gênero, como também para combater o racismo a autora Angela Davis, na imprescindível obra “Mulheres, raça e classe”, publicada pela Boitempo (2016).

[3] Se você, assim como eu (Luísa), nunca tinha lido essa declaração se não fosse pela indicação da Fernanda, por favor o faça: http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/Documentos-anteriores-%C3%A0-cria%C3%A7%C3%A3o-da-Sociedade-das-Na%C3%A7%C3%B5es-at%C3%A9-1919/declaracao-dos-direitos-da-mulher-e-da-cidada-1791.html É perceptível que, infelizmente, ainda carecemos de muito do que a Olympe de Gouges tentou conquistar em termos de igualdade.

[4] Segundo Jose A. M. Vela, sociólogo e doutorando em estudos Interdisciplinares de Gênero da UAM (Universidade Autônoma de Madrid), “a Síndrome da Impostora corresponde a essa autopercepção pela qual uma pessoa se considera menos qualificada para uma determinada função, cargo ou desempenho que seus companheiros”. Sobre os fatores que influem nisso, o especialista afirma que são cruciais “uma baixa autoestima e uma excessiva auto exigência”, embora não se trate tanto de uma questão individual, mas do reflexo de um problema social. Desse modo, Vela explica que “a socialização diferenciada, pela qual homens e mulheres são educados em papéis distintos e em valores distintos, cria o caldo de cultura perfeito para que as mulheres sintam de forma maciça a síndrome da impostora”. CARPALLO, Silvia C. Por que a ‘síndrome da impostora’ continua atormentando as mulheres? Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2017/03/13/estilo/1489414564_421859.html Acesso em: 24 mar. 2021.

[5] TIBURI, Marcia. Feminismo em comum: para todas, todes e todos. Rio de Janeiro: Rosa dos tempos, 2018, p. 40.

[6] SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo: Cultrix, 2017, p. 15.

[7] SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. São Paulo: Cultrix, 2017, p. 22.

[8] BERTH, Joice. Empoderamento. Coleção Feminismos Plurais. São Paulo: Sueli Carneiro e Jandaíra, 2020, p. 106.

[9] ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos todos feministas. Companhia das letras: 2015, p. 48.

Referências

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