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Baixo grau de ética nas relações humanas causa judicialização da vida

O artigo aborda como a falta de ética nas relações humanas, em um contexto de hiperindividualismo, está levando à crescente judicialização da vida na sociedade brasileira. O autor Marco Aurélio Marrafon discute a inversão do papel do Direito, que passou a ser a primeira instância de resolução de conflitos, e a supervalorização da sanção em detrimento da legitimidade das normas jurídicas, resultando em um sistema judiciário sobrecarregado e ineficaz. A análise conclui que sem uma reconstrução dos laços éticos coletivos, a cultura da litigiosidade continuará a se expandir, comprometendo a eficácia do Direito.

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Contudo, analisando o contexto atual, é possível constatar outras consequências da nova economia psíquica e da formação do neosujeito hiperindividualista tratado nas minhas duas colunas anteriores: sem o laço ético entre o individual e coletivo, a sociedade brasileira caminha para o distanciamento cada vez maior desse ideal de realização do Direito, o que leva ao fenômeno da “judicialização da vida”.

Duas hipóteses parecem confirmar essa ideia: a primeira delas é a inversão da prioridade entre as diferentes ordens normativas e seu papel de estabilização social, fazendo com que o Direito, que deveria ser a ultima ratio, tenha se tornado a prima ratio na resolução de conflitos. Ou seja, ante a falência dos sistemas normativos gerais, resta a violência institucionalizada do Direito — ou, ao menos, sua ameaça de potencial sanção — como último recurso para resolver controvérsias humanas.

Já a segunda hipótese, decorrente da primeira, é que o componente normativo da sanção está supervalorizado, sobrepondo-se à legitimidade enquanto elemento de garantia de eficácia das próprias normas jurídicas. Isso significa que o aspecto punitivo ganha cada vez mais força no discurso jurídico, reforçando a exigência de uma sanção célere, não importa se violando o direito fundamental ao contraditório e à ampla defesa. O Direito perde seu diferencial em relação às normas sociais. Avancemos nessas premissas.

O Direito como prima ratio A experiência de viver em sociedade, no seio do que minimamente podemos chamar de civilização, é uma experiência marcadamente normativa. Na vida social, há uma infinidade de normas que regulam as condutas humanas, impondo-lhes limites, estabelecendo obrigações ou proibições ou ainda incentivando ações.

Esse mundo normativo é marcado pela complexidade, com grande multiplicidade de princípios e regras de conduta de diferentes características e matrizes. Norberto Bobbio nos lembra de que há preceitos religiosos, regras morais, sociais, costumeiras, regras de etiqueta e boa educação (ética menor), regras que regulam a relação do homem com a divindade, ou, ainda, do homem consigo próprio, sendo que as normas jurídicas são apenas parte desse conjunto normativo[1].

A ordem moral diz respeito à delimitação do valor da conduta humana, estabelecendo critérios para a delimitação do que é bom/ruim, bem/mal. Kantianamente, entende-se que a moral é primeiramente interna, oriunda da autonomia e liberdade individual do ser humano racional. Sendo de índole intraindividual, a sanção mais comum a ela atribuída é sentimento de culpa, oriundo da violação dos princípios internamente estabelecidos.

A moral interna não se confunde com a ideia de uma ordem moral positiva que, conforme anota José de Oliveira Ascensão, é formada pelo conjunto de regras morais ou vigentes em uma determinada sociedade, com vistas ao aprimoramento e aperfeiçoamento da ordem social[2].

Ora, no contexto da “nova ordem psíquica” tanto a noção de ordem moral interna quanto a concepção de uma moral positiva e social perdem sua capacidade de regulação e controle. A primeira porque o neosujeito — perverso —, ao encobrir o outro e impor suas determinações, tem baixa capacidade de autorresponsabilização, preferindo deslocar o problema e colocar a culpa nos outros. O fenômeno do autoengano, diagnosticado por Eduardo Gianetti, bem demonstra como o sujeito tem a capacidade de mentir para si mesmo — um paradoxo lógico — justamente em face da dificuldade de suportar a culpa por seus erros[3].

Por sua vez, a ideia de uma moral positiva estável que sirva como parâmetro de conduta para a sociedade não mais encontra sustentação em ambiente altamente fragmentário e complexo, marcado pelo individualismo. Como já demonstrado, a reconstrução do laço do sujeito individual com o coletivo ainda é uma tarefa em andamento.

A(s) ordem(s) normativa(s) de índole social e heterônoma, sejam elas religiosas — dependentes da fé individual, mas de características sociais por determinar regras de conduta gerais a partir de critérios transcendentes —, sejam propriamente sociais — usos, costumes, convenções culturais que estabelecem parâmetros de conduta e impõem julgamento/reprovação/sanção imediatos —, também não têm dado conta de operar essa reconstrução do laço coletivo em bases suficientemente eficazes para produzir efeitos em prol da cidadania e da ética da tolerância, diminuindo a necessidade ou a importância do Direito.

Pelo contrário, não raro presenciamos ações fundamentalistas que significam o encobrimento ético do outro: o linchamento — moral, social ou físico — é exemplo clássico de punição extrema, executada pela própria sociedade, que mata o próximo e clama por intervenção jurídica para que seja evitado.

A cultura da litigiosidade se impõe. Nos casos concretos levados diariamente ao Judiciário, é comum o individualismo e a irracionalidade impedirem a composição amigável de litígios.

O resultado é o apego ao Direito como prima ratio: a nova economia psíquica parece prosperar e sobrepor-se a qualquer outro sistema de controle ético-normativo, fazendo com que a ordem jurídica seja o primeiro (quiçá único) sistema normativo com alguma condição de regular condutas, não porque legítima, mas porque ainda conta com a violência estatal como suporte.

Da legitimidade ao primado da sanção Aprendemos com Herbert Hart que a noção da obrigação — ideia de que onde há direito, a conduta humana é não facultativa —, não deveria ser fundada apenas na previsão das reações psicológicas do destinatário da norma ou na pressão social, mas sim na distinção entre os aspectos interno e externo da posição do sujeito em relação à estrutura social e suas normas, de modo a assentar em outras bases o vínculo de obrigatoriedade[4].

Nessa concepção, o ponto de vista interno é próprio dos que se sentem parte do grupo social e aceitam suas regras como guias de conduta. Já o ponto de vista externo é inerente aos observadores que se referem do exterior às regras de conduta de uma sociedade, ou seja, aferem seu cumprimento e regularidade, mas não se sentem legitimamente atingidos por elas[5].

Ao cooperarem voluntariamente, os observadores internos indicam que reconhecem a legitimidade das regras jurídicas, enquanto que os observadores externos apenas as cumprem quando sujeitos à possibilidade sofrerem alguma espécie de sanção ou castigo.

Eis uma das grandes lições de Hart: a realização do Direito assenta-se no binômio legitimidade-coação, em que a primeira atende aos anseios daqueles que aceitam a obrigação jurídica desde um ponto de vista interno e a segunda é o meio de garantia de cumprimento das leis para os que enxergam a ordem jurídica desde fora, isto é, de um ponto de vista externo.

Em uma civilização perfeita, todos cumprem suas obrigações e não se faz necessária a intervenção violenta do Direito, pois as chamadas regras primárias de conduta são suficientes.

Todavia, em uma sociedade composta por neosujeitos hiperindividualistas, sem culpa nem ordem social que os regulem, a grande maioria coloca-se do ponto de vista externo, levando ao primado da sanção sobre a legitimidade do Direito.

Esse quadro traz consequências drásticas: os sujeitos apenas cumprem as regras ante a possibilidade de sofrer sanções por parte do poder instituído, tornando infinita a demanda serviços judiciários. Não há estrutura processual que aguente, não há juízes, promotores, advogados e policiais suficientes: no limite, todos teriam que desempenhar, ao mesmo tempo, todas as tarefas jurídicas. Todos seríamos juízes e policiais ao mesmo tempo.

O resultado, atual e iminente, é visível aos olhos: i) sobrecarga ética do Judiciário nas demandas sociais; ii) congestionamento processual e lides quase eternas; iii) sentenças não transitam em julgado, levando ao reinado das antecipações de tutela e decisões liminares, iv) juízes assorbebados, sem condições de refletir sobre os casos e as vidas postas em suas mãos e v) predomínio de assessores e estagiários como grandes magistrados das causas.

O paradoxo é que essa situação leva à ausência de eficácia geral do sistema de Justiça e, consequentemente, à perda de credibilidade do próprio Direito ante ao não atendimento das demandas em seu devido tempo.

A sociedade fica sem saída: ou há um resgate ético e os conflitos se revolvem de maneira alternativa ou a cultura da litigiosidade baseada na coação e encobrimento do outro acabará com as possibilidades de uma jurisdição eficaz, tornando o sistema jurídico algo meramente simbólico.

Enquanto isso, o diagnóstico da nova ordem psíquica se confirma e se reforça a cada dia. A vaia da torcida brasileira na execução do hino do Chile durante jogo da Copa do Mundo é apenas mais um dos sintomas dessa perversão democrática. Entre cidadãos sem limites, com tão baixo compromisso ético, a judicialização da vida se revela um caminho sem volta.

[1] BOBBIO, Norberto. Teoria da norma jurídica. Trad. de Fernando Pavan Baptista e Ariani Bueno Sudatti. 3. ed. Bauru: EDIPRO, 2005, p. 23-26.

[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. O direito: introdução e teoria geral. 9. ed. Coimbra: Almedina, 1995, p. 31.

[3] Cf. GIANETTI, Eduardo. Auto-engano. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997.

[4] HART, Herber. O conceito de Direito. 3. ed. Trad. A Ribeiro Mendes. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 92-99.

[5] Ibidem, p. 99-100.

Referências

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