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O futuro do Direito como Direito fraterno

O artigo aborda a proposta de Eligio Resta para um futuro do Direito que se baseia na fraternidade, superando a lógica da inimizade e a intervenção excessiva do Estado. Resta argumenta que a verdadeira realização dos direitos deve ocorrer em um contexto de reciprocidade e solidariedade, desafiando modelos jurídicos que priorizam o individualismo e a soberania nacional. A reflexão convida a um repensar das relações jurídicas em busca de um Direito que promova uma convivência mais pacífica e justa entre os indivíduos.

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Lembrando dos belos momentos compartilhados com os amigos do Grupo Cainã em encontro capitaneado pelos professores Jacinto Coutinho e Avelãs Nunes em Coimbra (2008), resgatei o texto base da coletânea resultante daqueles debates[1] para, mais uma vez, homenagear o professor Eligio Resta, grande jusfilósofo italiano com quem muito aprendi durante o período de orientação no estágio doutoral na Università degli Studi di Roma Tre.

Pensador dos paradoxos, Resta enfrenta os temas sempre em chave ambiguidade e reciprocidade[2]. Possui uma leitura com alguma tinta liberal do fenômeno jurídico (em diversos momentos deixa claro sua posição contrária à intervenção excessiva do Direito) e frequentemente recorre a conceitos do funcionalismo luhmanniano para descrever o sistema jurídico, entendido como uma ordem substitutiva da Justiça e fruto da redução da complexidade social[3].

Filósofo consciente das dificuldades do voluntarismo e da profundidade das categorias com as quais trabalha, por diversas vezes não hesita em dar uma resposta ambígua e humilde aos questionamentos: “O que podemos fazer? Podemos fazer tudo o que podemos fazer” ou então, “É uma aposta que vencerá quando vencerá”[4]. Mas depois, investigando as origens das instituições e enfrentando o âmago dos temas tratados, mostra os caminhos a seguir.

Superando pré-conceitos ingênuos ou ecumênicos, Resta indica que o futuro do direito deve se dar enquanto direito fraterno, no qual a fraternidade recusa toda a hipocrisia e é entendida como a “consciência de dever de distanciar-se da lógica da inimizade e condividir espaços comuns com cada outro indivíduo, com sua vida, história e dignidade”.

Para melhor compreender sua proposta, a coluna de hoje é um convite ao jusfilosofar livre, um exercício diferente para pensar as possibilidades futuras do direito.

Ambiguidade do direito Em um mundo tão intolerante, Resta sustenta que definições maniqueístas do tipo bom/mau, justo/injusto são diferenciações que não se sustentam do ponto de vista social porque “a sociedade produz simultaneamente um e outro e um porque outro, uma coisa porque outra. Assim produz a ‘doença’ e seu remédio.“

Ele resgata o conceito platônico de pharmakon como símbolo máximo da ambivalência, que, não por acaso, ligava a lei e a violência:

O pharmakon era exatamente este jogo de oscilação que indicava no mesmo tempo veneno e seu antídoto, a cura e a doença, mas também a vítima e seu carrasco. O veneno tomado em dose justa se transformava em antídoto, mas ao mesmo tempo continuava a pertencer à natureza de veneno: aquilo que era a doença se tornava a cura, se invertesse um momento depois na cura que se transformava em doença. Uma não era dissociada da outra. A violência é a cura da violência. Assim, a lei deveria ameaçar e usar a violência para combater a violência; quem usava a violência era passível de uma outra violência, então o algoz se transforma em vítima[6].

A imunização viria através da correta aplicação do veneno, cujo diagnóstico histórico aponta para três grandes modelos de solução utilizados socialmente:

i) dação ao sacrifício;

ii) vingança (faida), duelo, guerra e;

iii) fria violência administrada monopolisticamente por um aparato judiciário burocrático.

Este último somente se realiza com a construção do Estado que, por meio de seu aparato de soberania, monopoliza a violência e confia a um terceiro, o juiz, a última palavra sobre a violência.

Assim, para que haja a imunização, o direito moderno invoca a legalidade na tentativa de evitar todo excesso inútil de pena: a aplicação da justa dose do veneno deve ser prevista e enunciada. Daí a possibilidade de condenação ser definida em lei e a violência contar com a contabilidade administrativa de um juiz que, ao julgar, evita que ela se propague.

Segundo Resta, nesse jogo de oscilação reside toda a ambiguidade do direito:

i) É uma técnica violenta que visa enganar a violência;

ii) É técnica que tem por função impor limites à própria técnica, ex. bioética, matérias relacionadas ao meio ambiente[7].

Ele se torna potência (impõe um dever-ser que muitas vezes faz valer aquilo que na realidade não podemos fazer) e também remédio para uma sociedade que, doente, precisa de respostas para seus problemas.

Além de fármaco, o aparato tecnológico do direito, enquanto um sistema complexo, constitui o que ele chama de uma macchina non banale: a decisão não acontece numa relação de estímulos singulares que produzem respostas imediatas. Ele é decisão sobre uma decisão anterior (a do legislador, que, ao elaborar a lei, faz uma escolha e reduz a complexidade sistêmica no meio ambiente social), mediada por uma série de discursos produzidos em seu interior e inúmeras regras procedimentais[8].

A partir dessas constatações e, num contexto onde não cabem explicações de matriz jusnaturalista nem juspositivista, Resta se propõe a pensar uma forma não violenta de realização do Direito que, além de superar os dogmas jurídicos da modernidade se legitime num ambiente axiologicamente pluralista e mundializado.

Para tanto, encontra no resgate da fraternidade, promessa esquecida da Revolução Iluminista, a base para a construção do novo direito.

Superação da modernidade jurídica Na direção de um direito não violento, assentado no resgate da fraternidade enquanto um valor a ser juridicamente protegido e, mais do que isso, promovido, o primeiro obstáculo encontrado pelo professor italiano é o modelo de soberania estatal nacional. Segundo ele, desde uma leitura contratualista, os Estados soberanos (chamados lobos artificiais) protegem os direitos fundamentais, mas possuem um vício de origem[9].

Esse vício ocorre porque os direitos fundamentais são a afirmação histórica da fraternidade e frutos de ideais universalistas, mas apenas encontram abertura na prática política ligados a uma realidade imaginária, a do Estado Nação, conforme aparece disposto já no artigo 3º da Declaração de 1789.

Nessa leitura, a fraternidade enunciada de maneira fortemente atrelada à ideia de soberania apresenta um grande limite à condição fraterna dos povos, uma vez que “terminava por assinalar um destino entregue ao internacionalismo mais que ao verdadeiro e próprio cosmopolitismo: aquele direito fraterno se proclamava universal mas tinha necessidade de estado e soberania”[10].

Pensando na realização de uma civitas maxima — isto é, uma comunidade política de cidadãos acima da cada estado — Resta compreende que a primeira condição necessária para que se possa falar de direitos fundamentais em chave universal é a remoção da ideia de soberania, tornando possível que se renuncie a nacionalismos/individualismos ilusórios, de modo que os direitos dos povos possam encontrar pertença e identidade.

Conclui, então, que a soberania é o principal obstáculo à universalização da fraternidade e ao pacifismo internacional, noção presente no escrito kantiano sobre a paz perpétua e também nos escritos do primeiro pós-guerra de Kelsen.

Em consequência, Resta pontua que o direito moderno — derivado da lógica da soberania — apresenta armadilhas que precisam ser desarmadas.

Por trás de categorias como sujeito de direito, direito subjetivo, lide e conflito, todos tutelados e/ou resolvidos pelo Estado Soberano, se esconde um código de igualdade assentado numa noção egoísta de cidadania, espécie de antropologia da inveja, na qual o direito se reduz à relação entre a pretensão de uma parte e a prestação superobrigatória de outra, onde seu objeto se resume a uma mera troca individualística.

Por isso, é necessário romper com essa tradição e resgatar alguns traços (rastros) apagados, tarefa que num primeiro momento demanda uma pesquisa da semântica histórica — na linha proposta por Koseleck — que traga à luz a riqueza multifacetada dos sentidos dos conceitos jurídicos, especialmente seus traços apagados pela tradição que trai.

E, na tradição jurídica da modernidade, o direito vencedor apagou o sentido mais essencial da solidariedade — o dever de todos, o communus da comunidade de garantir o direito do próximo — promovendo uma cidadania de bases individualistas.

Resta explica que esse sentido, ora apagado, estava presente no artigo 23 da Carta francesa de 1793, no qual se encontra a noção de que a luta pelo direito é um problema de cultura da comunidade, manifestada na previsão de que é dever de todos zelar pelo reconhecimento, manutenção e efetivação do direito de cada um.

”Os direitos, entendidos como ‘plural absoluto’, deveriam se realizar como um problema comunitário e de reciprocidade positiva, pelo qual os direitos dos outros seriam reconhecidos apenas sob a condição de reconhecimento simétrico e em função da redução da violência recíproca, dentro de um pacto que não poderia exigir [admitir] uma soberania”[11].

Esse modelo, derrotado pela história, se opõe fortemente à antropologia negativa do contratualismo e à forma Leviatã, em que o estado se coloca como um terceiro apto a gerar segurança jurídica e paz entre homens que não conseguem resolver seus problemas.

Passados alguns séculos desde as grandes revoluções jurídicas da modernidade, o esfacelamento ético-moral da sociedade (quanto menos prevalece a ética social, mais o direito se torna necessário para estabilizar as relações e condutas humanas), a intolerância oriunda dos maniqueísmos e o excessivo apego ao judiciário como superego da sociedade (afinal não conseguimos resolver pacificamente nem a guarda do nosso animal de estimação, tendo que recorrer ao juiz para que ele estabeleça a guarda cão-partilhada, como tem se tornado comum nas ações de divórcio) são sintomas evidentes de esgotamento do atual modelo.

E, para resolver esses problemas, de nada adiantam reformas processuais — logo o fórum estará congestionado de novo. Daí a atualidade da advertência do professor italiano: ou repensamos as relações jurídicas a partir de maior simetria e responsabilidade recíproca pelos nossos atos e pela guarda primária do direito do próximo, enquanto expressão maior da fraternidade, ou possivelmente, não haverá futuro para o direito. Em nome da Coluna, desejo um excelente 2015 a todos!

[1] MARRAFON, Marco Aurélio. A fraternidade como valor universal: breve diálogo com Eligio Resta sobre o futuro do direito. In: AVELÃS NUNES, Antonio José. COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda (coords). O direito e o futuro, o futuro do direito. Coimbra: Almedina, 2008. p. 431-444.

[2] RESTA, Eligio. L’ambiguo diritto. Milano: Franco Angeli Editore, 1984, pp. 9-14.

[3] RESTA, Eligio. Le stelle e le masserizie: paradigmi dell’osservatore. Roma-Bari: Laterza, 1997, p. 159.

[4] RESTA, Eligio. Poteri e diritti. Torino: G. Giappichelli Editore, 1996, p. 55.

[5] RESTA, Eligio. Il diritto fraterno. Roma-Bari: Laterza, 2006, p. VII.

[6] Ibidem, p. 100.

[7] RESTA, Eligio. Poteri e diritti. Op. cit., p. 55 e ss.

[8] RESTA, Eligio. Le stelle e le masserizie: paradigmi dell’osservatore. Op. cit., p. 182.

[9] RESTA, Eligio. Poteri e diritti. Op. cit., p. 22.

[10] Ibidem, p. 18.

[11] Ibidem, p. 90-91.

Referências

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