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Opinião: Defensor público, o profeta cívico no deserto brasileiro

O artigo aborda a importância da Defensoria Pública como um papel essencial na promoção da justiça social no Brasil, destacando-a como “profetas cívicos” que denunciam injustiças e lutam pelos direitos dos vulneráveis. Os autores discutem sua natureza como uma instituição que opera em prol da cidadania e da igualdade, ressaltando a necessidade de uma atuação crítica frente às desigualdades sociais. Além disso, enfatizam a relevância do defensor público na transformação social, apesar do isolamento e resistência que enfrentam em um sistema jurídico desigual.

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“Mas eu não estou interessado em nenhuma teoria Em nenhuma fantasia, nem no algo mais Longe, o profeta do terror que a laranja mecânica anuncia Amar e mudar as coisas me interessa mais” (“Alucinação”, Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes)

A efeméride foi efetiva e oficialmente comemorada pela primeira vez no ano de 1983, portanto cinco anos antes de a Constituição de 1988 escolher o modelo salaried staff de assistência jurídica já adotado no estado do Rio de Janeiro, ou seja, aquela realizada por uma instituição pública cujo nascedouro se deu dentro da Procuradoria-Geral do Estado, como coirmã do Ministério Público, guardando, em relação a este, algumas semelhanças (e muito distintas missões) que ajudam a compreender sua feição de órgão de Estado-defensor [2], vocação coletiva e atuação como amicus democratiae [3].

A escolha do 19 de maio não foi aleatória, uma vez que se relaciona, tal como indicado na própria proposta legislativa, com a data de falecimento de Ivo Hélory de Kemartin, no ano de 1303. O religioso francês era doutor em Direito, Teologia, Letras e Filosofia e, embora de origem afortunada, dedicou a vida à firme e heroica defesa gratuita dos miseráveis, o que justificou o seu título de patrono dos advogados.

Os autores do presente texto não visam a adotar qualquer postura própria de um proselitismo religioso, até mesmo porque não há espaço diante de um Estado constitucionalmente laico, porém se valem de categorias próprias do discurso judaico-cristão para demonstrar a relevância do defensor público no cenário sociojurídico brasileiro.

A apropriação de elementos religiosos para a vida cívica, aliás, não constitui uma novidade no processo histórico brasileiro. Não se pode negar a relevância dos positivistas para a queda do regime monárquico e da representatividade que tiveram durante toda a República Velha. Em um país com uma maioria católica — que era, inclusive, a religião oficial na época do Império —, a existência de um templo da humanidade se mostrou uma aposta acertada realizada pelos positivistas ortodoxos:

“As dificuldades, no entanto, só levaram ao redobrar esforços por parte dos ortodoxos para ganhar a adesão dos grupos médios e o respeito ao grande público. Está também fora de dúvida que a ênfase na religião tinha a ver com a percepção da tradição católica no Brasil e com a concepção de Comte de que entre os católicos se encontravam os ouvintes mais receptivos” [4].

Afirmar que defensores públicos representam profetas cívicos não traduz um apontamento saudosista, ou seja, não se tratam de sacerdotes que anunciariam as palavras do mistério, tampouco são profissionais especializados na interpretação de sonhos. Não, defensores públicos não são místicos remunerados pelo Estado. Ao se afirmar que esses profissionais são profetas, o que se tem em mente é a capacidade/dever de denunciar os erros, as mazelas e as injustiças existentes neste país-continente.

Essa definição de profeta se encontra em plena consonância com o pensamento de Leonardo Boff e Mark Hathaway, que tecem oportunas considerações sobre o agir desse personagem:

“(…) É a ação profética que critica e desafia os fundamentos do sistema e, assim, leva-o a atingir um ponto de bifurcação e de transformação radical” [5].

Os conhecidos profetas da chuva, por exemplo, fazem previsões com fundamento em observações das atividades dos insetos, mudanças mínimas no ecossistema, na umidade do ar, quantidade, qualidade e durabilidade de nuvens nos céus. Esses sertanejos e sertanejas conhecidos como profetas — e profetisas — do sertão se reúnem para predizer a ocorrência vindoura de um ano de chuvas ou de seca, sem conotações místicas, exotéricas ou cabalísticas.

Pois bem, mas o que então essas pessoas estão a denunciar incansavelmente em cada processo e em cada atuação extrajudicial? Aqui não se verifica qualquer projeto grandioso ou complexa tese jurídica, pois gritam pela necessidade de se observar o óbvio que também atende pelo nome de Constituição Cidadã. O norte magnético é o composto pelo disposto no artigo 1º, inciso III, no artigo 3º e no artigo 134, todos do texto constitucional vigente: a Defensoria Pública é uma instituição permanente e essencial à função jurisdicional do Estado, verdadeira expressão e instrumento do regime democrático, primorosa via de acesso à justiça para os hipossuficientes, ferramenta indispensável na busca e realização de uma sociedade livre, justa e solidária, que erradique a pobreza e a marginalização e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, concretização da dignidade da pessoa humana.

A partir da realidade de cada um desses profetas, é possível acrescentar outros preceitos constitucionais que se mostram imprescindíveis para o verdadeiro credo entoado e praticados pelos rincões de miséria. Com olhos nos direitos e garantias fundamentais e no processo penal, este texto passa então a maldizer comportamentos que não podem mais ser aceitáveis.

Em solo brasileiro, a pena de morte somente se mostra possível em tempos de guerra. O cenário bélico depende da aprovação do Congresso Nacional, tal como dispõe o texto constitucional vigente, vide o artigo 49 da Constituição da República. Ora, arroubos retóricos podem seduzir veículos midiáticos que se pautam no sensacionalismo, mas não permitem falas corretas elaboradas por autoridades públicas, que, sob o manto de uma dita guerra urbana, demonstram a validade da vida nua de pretos, pobres e favelados.

O processo penal não pode ser compreendido como caminho para a aplicação da lei penal. Antes mesmo de se pensar na visão instrumental, é imprescindível visualizá-lo e vivenciá-lo como limitador racional e ético do poder punitivo estatal. Somente a partir dessa compreensão é que se mostrará possível romper com um caótico tratamento conferido às nulidades, que, hodiernamente, são a prova clara do sujeito solipsista. Processo é garantia!

A liberdade ambulatória não pode ser mensurada em termos econômicos; logo, o discurso próprio de uma análise econômica do Direito não pode ter qualquer espaço no âmbito do processo penal. Mais do que nunca é preciso resistir quanto a uma sedução trazida por toda uma construção pautada numa eficiência processual.

A partir de um diálogo estabelecido com a teologia, pode-se perfeitamente afirmar que a defesa criminal, em todos os seus aspectos, possui como característica ínsita à sacralidade. Independentemente de quem a exerça, não se pode pensar na criminalização da defesa. No imaginário político brasileiro, frases como “aos amigos tudo, aos inimigos os rigores da lei” e “quem defende bandido também é bandido” se constituem forma de demonstrar a dificuldade de a sociedade respeitar a impessoalidade. É chegado o momento de abandonar trechos deste discurso e ressignificar outros: ainda que seja um desafeto, o rigor da lei deverá representar o irrestrito cumprimento do texto constitucional, a começar pelo respeito da sua defesa criminal.

A norma de tratamento que decorrer do estado de inocência é oponível a todos. Como pontua Rui Patrício, o princípio da presunção de inocência é comando “dirigido ao legislador, aos sujeitos processuais penais cujas esferas tanjam a esfera do arguido e a todos os cidadãos” [6]. Assim, não só os atores jurídicos deverão tratar como se inocente fosse enquanto não advir a decisão penal condenatória, a sociedade e o tribunal midiático não pode se valer de juízos sumários — e não podem fazê-lo extensivamente à defesa.

Essa postura altiva, e que não decorre da aprovação em um difícil concurso público ou mesmo da obtenção de uma carteira funcional de modelo padronizado, cobra um alto preço dos defensores públicos e uma outra categoria teológica pode muito bem definir a consequência desse agir, vale dizer, o deserto.

Uma ilusória solidão pode acometer cada defensor público que se propõe, no exercício do seu mister, a bradar pelo cumprimento daquilo que é tido como o óbvio ululante. Esse isolamento não é real, sendo, na verdade, um afastamento daqueles que se encontram isolados em suas torres de marfim e incapazes de se sensibilizarem com o status quo.

Helder Câmara já alertava sobre o deserto ser o destino manifesto de quem adota a rebeldia contra a realidade desigual existente:

“Quem se arranca de si parte como peregrino de justiça e da paz, prepara-se para enfrentar desertos. Os grandes e poderosos desaparecem, cortam toda e qualquer ajuda, passam a represálias. Não raro financiam campanhas, que se tornarão, tanto mais rudes, difamadoras e caluniosas quanto mais sentirem perigo à vista” [7].

Ainda que o deserto possa causar medo e temor, os defensores públicos brasileiros — quem sabe inspirados na lógica de que se trata também de um lugar de purificação — têm enfrentado os seus demônios e suas tentações, sendo certo que uma das maiores é querer se igualar as outras instituições jurídicas em um prestígio pautado na mais pura alienação. Aliás, caso a tradição judaico-cristã não tivesse surgido no Oriente, mas, sim, na América do Sul, o deserto seria facilmente substituído pelo sertão.

Profetas cívicos, pois não estão a denunciar determinada crença, mas a forma como se desenvolve o sistema jurídico brasileiro, e destinados ao deserto, já que por desagradarem poderosos se veem alijados do processo decisório excludente. Essa é uma das formas em se definir a figura do defensor público no cenário brasileiro.

Dia 19 de maio é, sem sombra de dúvida, uma data de comemoração, mas também poderá servir como reflexão para que os demais atores possam compreender as condutas adotadas por esse personagem. Quiçá pudéssemos afirmar que os defensores públicos são agentes transformadores da realidade social, novos abolicionistas diante das amarras da hipossuficiência, fortes e úteis órgãos de consecução de igualdade e de justiça — todos Luíses Gamas.

Enquanto o óbvio necessitar ser bradado, oxalá possam esses profetas se insurgir, e, tal qual o profeta de Sobral, se interessem muito mais por amar e mudar as coisas. Contudo, quando não mais for necessário gritar pelo evidente, parodiando Rachel de Queiroz, que restem os defensores públicos como memória da linda jornada que travaram. Viva a Defensoria Pública do Brasil. Viva as defensoras e os defensores públicos do Brasil.

[1] O dossiê legislativo se encontra disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=node0m189mljjqfdlnmlwe3huv8sj729545.node0?codteor=1128235&filename=Dossie+-PL+958/1999. Acesso em 16 de maio de 2021.

[2] ROCHA, Jorge Bheron. O Histórico do Arcabouço Normativo da Defensoria Pública: da Assistência Judiciária à Assistência Defensorial Internacional. In: Os Novos Atores da Justiça Penal. 1. ed. Coimbra: Almedina, 2016 e CASAS MAIA, Maurilio. A Defensoria Pública enquanto institucionalização constitucional da defesa dos vulneráveis frente à Ordem Jurídica e aos poderes públicos. In: COSTA-CORRÊA, André L. SILVIO, Solange Almeida Holanda. Sociedade e Estado: Do direito de defesa às garantias fundamentais do cidadão frente ao Estado. Porto Alegre: Paixão Editores, 2017, p. 145-166. ALVES, Cleber Francisco. Justiça para todos! A assistência jurídica gratuita nos Estados Unidos, na França e no Brasil. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006.

[3] ROCHA, Jorge Bheron. Defensoria Pública Amicus Democratiae: atuação em prol da afirmação do Estado Democrático de Direito e da prevalência e efetividade dos direitos humanos independentemente de configuração de vulnerabilidades. Revista da Defensoria Pública da União, Brasília, n.11, jan/dez. 2018. Jurisprudência: TJPA Apelação Cível 0050552-62.2015.8.14.0006; TJCE HC 0629912-53.2020.8.06.0000; TJAM Agravo Regimental 0003697-80.2019.8.04.0000

[4] CARVALHO, José Murilo. A formação das almas. O imaginário da república no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 139.

[5] HATHAWAY, Mark e BOFF, Leonardo. O Tao da Libertação. Explorando a ecologia da transformação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 472.

[6] PATRÍCIO, Rui. O direito fundamental à presunção de inocência (revisitado – a propósito do novo Código de Processo Penal de Cabo Verde). In Revista do Ministério Público. Ano 26, n.104, p.119-138., out/dez. 2005, p. 132.

[7] CÂMARA, Helder. O deserto é fértil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975. p. 31.

Referências

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