A crise da advocacia criminal no Brasil
O artigo aborda a crise da advocacia criminal no Brasil, destacando suas raízes históricas e sociais, incluindo a precarização da profissão e a ambiguidade ética dos advogados. Os autores, Raphael Boldt de Carvalho e Thiago Fabres de Carvalho, analisam a divisão interna da categoria, a luta pela sobrevivência em um mercado saturado e a pressão exercida pelo sistema judicial, culminando em um novo perfil de advogado desconectado das realidades sociais. A reflexão crítica sobre esses fatores revela a fragilidade da advocacia enquanto classe social e a necessidade de um engajamento político mais efetivo.
Artigo no Conjur
No início da década de 1990, Roberto Aguiar elaborou um profundo e intenso diagnóstico sobre aquilo que identificava como uma “crise da advocacia no Brasil”. O autor alertava para o fato de que a crise da profissão de advogado estaria enlaçada “à história brasileira” e “mantém laços com o autoritarismo que marcou nossa política, desde os primórdios”. Ademais, “é expressão do capitalismo tardio e cartorial que ainda vige no país”, ao passo que “reflete a profunda crise econômica que se abate sobre o Brasil, de forma repetitiva”. De forma decisiva, “a crise da advocacia é uma faceta da crise de legitimidade de nossas instituições e do Direito como elemento de regulação social” [1].
Historicamente, a crise apresenta inúmeras facetas, diversas raízes históricas e estruturais. Em primeiro lugar, a formação técnica, generalista e idealista, produz, como resultado inevitável, um ser ambíguo, enxergando-se basicamente “como um ser neutro que, no dia-a-dia, aplica a lei aos casos concretos, para produzir acordos, postulações, contestações e recursos”. A visão corporativa, politicamente descomprometida, faz do advogado um ser conservador, uma vez que sua grande meta oficialmente declarada “é uma ordem judiciária estável, o famoso Estado de Direito” [2].
Destaca-se, ainda, a fragilidade da formação teórica e política dos profissionais do Direito, forjados no textualismo formalista, que reduz a realidade social ao plano idealizado das normas jurídicas, no qual o mundo ser é devorado e substituído pelo dever ser. Em rigor, “o senso comum dos advogados entende que a sociedade é harmônica e que o Direito tem a função de recolocá-lo em equilíbrio toda vez em que o contraditório venha a turbá-la. Logo, o Direito é um instrumento neutro e desinteressado que equilibra, por sua aplicação, a sociedade naturalmente harmônica”.
Com efeito, a ausência de um olhar mais crítico sobre o mundo e a realidade social contribui, decisivamente, para a formação de uma autoimagem que enaltece o distanciamento das questões econômicas, políticas e sociais que estão necessariamente atreladas ao reconhecimento e efetivação dos direitos. Desse modo, o advogado oscila entre o representante dos direitos sonegados dos cidadãos e um astuto conservador do status quo, em especial quando isso profissionalmente lhe convém.
Das constatações empreendidas por Aguiar, muitas permanecem insistentemente atuais. Essa ambiguidade política e de visão de mundo nutre a própria fragilidade da categoria enquanto classe social e ator coletivo, pois reduz as questões ao plano da superficialidade corporativa ou propostas medíocres travestidas de novidades geniais. A advocacia atual transformou-se numa profissão que, além de aviltada e proletarizada, se coloca como servil aos poderes estabelecidos, aduladores ou omissos em face de privilégios e violências intoleráveis protagonizadas por outros atores do campo jurídico, sobretudo quando dotados de um poder do qual depende a sua atividade, em especial magistrados e membros do Ministério Público.
Há, ainda, perceptivelmente, uma divisão interna e perversa de classes no interior da própria categoria, contribuindo para a neutralização das mudanças efetivas, para a compreensão mais ampla de sua missão política enquanto categoria e da sua união em torno de pautas comuns que tenderiam a produzir uma pressão mais organizada e efetiva sobre os poderes políticos estatais, em especial a própria magistratura.
De um lado, a grande massa de advogados que militam cotidianamente numa prática perversa, uma luta pela sobrevivência num cenário cada vez mais saturado de profissionais, perante um Judiciário frio, distante, ensimesmado, burocratizado e absolutamente insensível aos sofrimentos e dores diárias dos profissionais e dos cidadãos por eles representados, sobretudo as classes sociais mais vulneráveis, que buscam algum amparo para além dos serviços da Defensoria Pública, historicamente aviltada e desprestigiada diante das outras categorias profissionais.
Por outro lado, uma gama de profissionais que dominam o mercado, posto que agrupados em escritórios consolidados e dotados de elevada expertise e excelência técnica, voltados para a defesa e proteção dos direitos e interesses das classes hegemônicas. Nesse mesmo terreno, uma nova geração de advogados busca todas as formas de ascensão possíveis e faz da profissão um reino do autoexibicionismo delirante, até certo ponto patológico, moldando a advocacia como um produto do marketing e do espetáculo. A publicidade abusiva e enfadonha aparece como sinônimo de empreendedorismo, sucesso, competência, na caça voraz e desesperada por clientes e pela construção de uma imagem positiva, capaz de torná-los um produto mais atraente no mercado. Um verdadeiro vale-tudo em nome da “captação”.
O mundo da advocacia é, pois, plural, complexo, multifacetado. Entre hordas de bacharéis sem espaço no mercado de trabalho da advocacia, agregam-se inúmeros profissionais que fazem da advocacia uma atividade meramente complementar, pois já possuem algum cargo ou atividade compatível com o exercício da profissão. Uma enorme parcela se submete a integrar escritórios como empregados ou subassociados, por salários muito pouco atrativos e sem perspectiva alguma de ascensão na carreira. Ao lado deles, um grupo consegue sobreviver como profissionais liberais, autônomos e sobrevivem exclusivamente da atividade.
Imersos nessas contradições, os dilemas e obstáculos ao exercício da profissão se avolumam, são múltiplos, contraditórios, uma vez que refletem essas tensões e divisões internas. Desde a fixação de um piso salarial mínimo até a construção de uma rede de assistência social em caso de doença ou incapacidade, verifica-se que os problemas corporativos não apagam os problemas comuns, que exigem lutas políticas mais amplas e que afetam os advogados como atores sociais e políticos: a morosidade e a corrupção no Judiciário e no Ministério Público, a falta de transparência e de acesso igualitário às instâncias judiciais, o tratamento desumano e muitas vezes grosseiro aos quais profissionais e jurisdicionados são diariamente submetidos pelos funcionários e pelas autoridades encarregadas do exercício do poder estatal de dizer o direito no caso concreto. Presídios, delegacias, fóruns e órgãos públicos em geral continuam a tratar advogados, em muitos casos, como objetos, como estorvos ou empecilhos ao exercício de seus poderes absolutos.
A crise da advocacia criminal é, sobretudo, o reflexo da condição de precariedade da sociedade salarial disseminada por todos os cantos da vida em sociedade, enfraquecendo os vínculos sociais entre os indivíduos e, consequentemente, a própria advocacia. Em consonância com as estratégias políticas de inspiração neoliberal, toda e qualquer forma de resistência que possa emergir da configuração de um coletivo coeso e cônscio diante das novas e sofisticadas formas de exploração do trabalho logo é enfraquecida.
Em um cenário no qual a lógica da precarização dos direitos instala-se como um elemento constitutivo da nova configuração social, também os advogados são obrigados a transitar em um mundo de incertezas e instabilidade, desvinculados de qualquer projeto coletivo. No contexto de naturalização da precariedade, o discurso da responsabilização individual, revigorado, impede o sujeito de realizar toda a sua potencialidade e o transforma em mero empreendedor de si mesmo, promovendo, no final das contas, o declínio do conhecimento jurídico e a redefinição cognitiva das funções da advocacia, dos mercados e, principalmente, da noção de indivíduo, supostamente o único capaz de superar o cenário de crise, responsável por vencer as incertezas e inseguranças da vida social dentro do contexto do capitalismo flexível. Como resultado, amplia-se a frustração decorrente da incapacidade individual de transformar o mundo e a sua própria realidade, fragilizando-se, ainda mais, os vínculos sociais e conduzindo o indivíduo a fechar-se sobre si mesmo.
No cerne dessas transformações, projeta-se um novo advogado, polivalente, desvinculado de filiações coletivas, um indivíduo resiliente que se percebe como o único responsável por sua condição material de existência, uma persona, espécie de Harvey Specter, alguém que se permite “iludir” por discursos ideológicos que lhe retiram a capacidade de cognição da realidade. A esse novo advogado criminalista interessa apenas o desejo de se destacar, ainda que para tanto e paradoxalmente ele precise se desligar dos verdadeiros problemas, das mazelas sociais, do sofrimento alheio, daqueles que são massacrados pelo sistema penal. “Que me importa tudo isto? (…) O objetivo de ser alguém único e incomparável é acompanhado, muitas vezes, pelo de não se destacar, de se conformar” [3].
* Este texto foi produzido pelos autores e permaneceu inédito até a presente data. Artigo dedicado ao querido e saudoso amigo Thiago Fabres de Carvalho, um exemplo de docente, pesquisador e advogado
[1] AGUIAR, Roberto A. R. A crise da advocacia no Brasil. São Paulo: Alfa-ômega, 1999, p. 22.
[2] Idem, p. 27-8.
[3] ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1994, p. 124.
Referências
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