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Presunção tributária como prova de materialidade delitiva no processo penal

O artigo aborda a utilização da presunção tributária como meio de prova no processo penal, destacando os riscos de sua aplicação, como a inversão do ônus da prova e a violação do princípio da presunção de inocência. Os autores, Raphael Boldt de Carvalho e Leonardo Nunes Marques, argumentam que o direito penal brasileiro requer provas concretas para a comprovação da materialidade delitiva, e que presunções tributárias não podem fundamentar condenações, além de enfrentar a rejeição à responsabilidade penal objetiva.

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No direito penal, a presunção de ocorrência de um delito é uma questão que exige extrema cautela, dado que o processo penal visa, em última instância, proteger os direitos fundamentais do acusado, especialmente sua liberdade. A utilização de presunções no campo penal, especialmente quando derivadas de outras áreas do direito, como o direito tributário, levanta preocupações significativas, uma vez que pode subverter princípios fundamentais como a presunção de inocência e aspectos concernentes ao standard probatório para a condenação do acusado, ainda que geralmente se afirme a inexistência da adoção de tais critérios no ordenamento processual penal brasileiro [1].

No direito tributário, as presunções legais são ferramentas importantes para a administração pública. Elas permitem ao Fisco presumir a ocorrência de certos fatos com base em indícios, dentre eles as diferenças apuradas a partir de registros fiscais, facilitando a fiscalização e a cobrança de tributos. Um exemplo disso é a presunção de operações tributáveis não registradas decorrente da diferença apurada mediante levantamento quantitativo de mercadorias, conforme previsto no inciso IV, do artigo 76-A da Lei Estadual nº 7.000/2001 do Espírito Santo. Essa presunção autoriza o Fisco a concluir que as diferenças apuradas significam a realização de operações tributáveis sem o devido registro, permitindo a cobrança do imposto supostamente não recolhido.

Contudo, embora relativamente comum, a aplicação dessa lógica no direito penal é profundamente problemática. A presunção tributária opera, na prática, uma inversão do ônus da prova, exigindo que o contribuinte prove que não houve a infração, em vez de caber ao Fisco demonstrar a materialidade da conduta ilícita. No direito penal, onde as consequências de uma condenação são muito mais severas, essa inversão é inadmissível.

A presunção de inocência, consagrada no artigo 5º, LVII da Constituição, exige que a acusação prove a culpa do acusado além de qualquer dúvida razoável. Qualquer tentativa de utilizar presunções para suprir a falta de provas diretas contraria esse princípio e coloca em risco os direitos do réu.

Levando-se em conta que, num cenário de aplicação da presunção tributária, inexiste a efetiva comprovação do fato típico, torna-se inviável aferir as características da infração pressuposta, prejudicando até mesmo a individualização da pena.

O TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo), em uma decisão emblemática proferida num processo que envolvia um lançamento tributário confeccionado com base em levantamento fiscal, afirmou que “no Direito Penal, a única presunção admitida é aquela favorável ao acusado e jamais a contrária ao réu” [2]. Essa orientação jurisprudencial reforça a ideia de que, no âmbito penal, não se pode admitir condenações fundadas em presunções tributárias, pois isso equivaleria à responsabilidade penal objetiva, vedada em nosso ordenamento jurídico-penal.

Conforme exposto, embora útil e legítima no contexto da fiscalização e da cobrança de tributos, a presunção tributária não pode ser utilizada isoladamente para comprovar a materialidade de um crime. No processo penal, a materialidade delitiva deve ser comprovada por meio de provas concretas, que demonstrem de maneira inequívoca a prática do ato ilícito. A mera existência de uma presunção tributária não pode, por si só, substituir a necessidade de provas robustas que atestem a efetiva ocorrência delituosa.

O STJ (Superior Tribunal de Justiça) tem sido claro ao afirmar que a presunção tributária não pode ser utilizada como base exclusiva para uma condenação penal. Em decisões recentes, o tribunal destacou que, para a configuração dos crimes tributários, é indispensável que o Ministério Público comprove a materialidade delitiva com elementos probatórios concretos, que vão além da simples presunção de que houve uma infração fiscal. Essa exigência decorre do fato de que, no direito penal, a liberdade do indivíduo está em jogo, e qualquer dúvida deve beneficiar o réu, conforme o princípio in dubio pro reo [3].

Busca pela verdade

A adoção de presunções como prova da materialidade delitiva também esbarra na declarada busca pela verdade que, segundo os epistemólogos do processo, pode ser resumida como a tentativa de fazer corresponder a premissa fática do raciocínio judicial com os fatos como efetivamente ocorreram. Em outras palavras, verdade como correspondência [4]. Ainda que a verdade do processo penal nunca seja a verdade [5], essa pretensão ou esse princípio, exige que o juiz busque “a verdade dos fatos”, baseando sua decisão em provas sólidas e consistentes.

A presunção, por definição, é uma suposição, uma inferência que pode ou não corresponder à realidade. No processo penal, onde a segurança jurídica e a proteção dos direitos individuais são valores supremos, não se pode admitir que uma condenação seja fundada em suposições, por mais plausíveis que possam parecer.

Um dos maiores perigos de se admitir a presunção tributária como prova da existência do crime é a potencial introdução de uma forma de responsabilidade penal objetiva no direito penal brasileiro, já expurgada do direito penal moderno há tempos. A responsabilidade penal objetiva, que dispensa a comprovação de dolo ou culpa, é amplamente rejeitada quando se trata de responsabilização penal, justamente por não se coadunar com a lógica de proteção dos direitos fundamentais e com o princípio da culpabilidade, baseado na máxima latina nullum crimen sine culpa.

A jurisprudência do STF é enfática ao rejeitar a responsabilidade penal objetiva. Em diversas ocasiões, a Corte tem reafirmado que, para que haja uma condenação penal, é indispensável a comprovação de que o acusado agiu com dolo ou culpa, ou seja, que houve uma vontade livre e consciente de praticar o ato ilícito ou, no mínimo, que o ato decorreu de negligência, imprudência ou imperícia [6]. Condenar alguém sem essa demonstração seria uma afronta ao princípio da culpabilidade, uma das pedras angulares do direito penal moderno.

Um exemplo claro dessa problemática pode ser visto nos crimes contra a ordem tributária, onde a complexidade das operações empresariais muitas vezes dificulta a identificação precisa do elemento subjetivo. Nesses casos, a simples diferença apurada em um levantamento quantitativo de mercadorias, a qual pode, exemplificativamente, decorrer de um mero erro na prestação de informações ao Fisco, não pode ser considerada suficiente para comprovar o dolo de sonegar tributos. A acusação deve ir além, demonstrando, por meio de provas documentais, testemunhais e periciais, que o acusado agiu deliberadamente para suprimir ou reduzir o tributo devido.

Admitir que uma presunção tributária possa servir de base para uma condenação penal é, na prática, admitir uma forma de responsabilidade penal objetiva. Isso porque, num cenário de aplicação de uma presunção tributária, apenas resta comprovada a ocorrência do fato indiciário, de maneira que apenas é possível aferir o dolo em relação a ele. Considerando-se a inexistência de prova direta da materialização do fato presumido, sequer é possível cogitar na demonstração da vontade livre e consciente do agente. Tal entendimento é inaceitável, pois fere princípios básicos do direito penal e do devido processo legal.

No processo penal, o ônus da prova recai sobre a acusação. Cabe, portanto, ao Ministério Público, como titular da ação penal, apresentar provas que demonstrem a materialidade e a autoria do delito. Essa regra decorre diretamente do princípio da presunção de inocência, que assegura ao acusado o direito de não ser condenado sem que haja provas suficientes para tanto.

A jurisprudência do STJ e do STF reforça que, em casos de crimes contra a ordem tributária, o Ministério Público deve provar que o acusado agiu com dolo, ou seja, que houve, além da má-fé, a supressão ou redução do tributo devido. A simples existência de uma presunção tributária, baseada em um levantamento fiscal, não é suficiente para suprir essa exigência. O processo penal, diferentemente do processo administrativo fiscal, não admite condenações sustentadas em suposições ou inferências [7].

Em decisão recente, o STJ absolveu um acusado de crime contra a ordem tributária justamente porque a condenação de primeira instância havia se baseado exclusivamente em uma presunção tributária. O tribunal destacou que a presunção de ocorrência do fato típico, por si só, não pode fundamentar uma condenação penal, pois viola o princípio da presunção de inocência e o ônus da prova que recai sobre a acusação [8]. Decisões como essa evidenciam a importância de se preservar a exigência de prova cabal no processo penal, em respeito aos direitos fundamentais do acusado.

O direito penal brasileiro, em consonância com os princípios constitucionais, não admite condenações baseadas em presunções, especialmente quando estas derivam de outras áreas do direito, como é o caso do direito tributário. A função das presunções no direito tributário é facilitar a fiscalização e a cobrança de tributos, mas sua aplicação no direito penal desacompanhada de outros elementos de comprovação direta do ilícito penal é absolutamente inválida. Somente dessa forma é possível garantir que o processo penal cumpra sua função de proteger os direitos individuais contra o arbítrio estatal.

_______________________________________

[1] BALTAZAR JR., José Paulo. Standards probatórios no processo penal. Revista AJUFERGS, v. 4, p. 161- -185, 2007, p. 176.

[2] TJ-SP – AC: 0010224-26.2011.8.26.0482; Rel.: Guilherme de Souza Nucci; 16ª Câmara de Direito Criminal; Data de julgamento: 10/05/2016; Data de registro: 10/05/2016.

[3] AgRg no REsp n. 1.874.619/PE, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz; Sexta Turma; DJe 2/12/2020.

[4] Há muitas obras importantes sobre a verdade no processo penal. Tratamos do tema em alguns trabalhos, dos quais destacamos: BOLDT, Raphael. Processo penal e catástrofe: entre as ilusões da razão punitiva e as imagens utópicas abolicionistas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2022.

[5] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Quando se fala de verdade no processo penal, do que se fala? Consultor Jurídico. Disponível em; https://www.conjur.com.br/2020-jun-26/limite-penal-quando-verdade-processo-penal/. Acesso em 28 de agosto de 2024.

[6] STF – AP 987/MG; Rel. Min.: Edson Fachin; Segunda Turma; Data de julgamento: 25/09/2018; Data de publicação: 08/03/2019.

[7] HC n. 821.162/SP; Relator: Ministro Sebastião Reis Júnior; Sexta Turma; julgado em 12/09/2023; DJe de 15/09/2023.

[8] AgRg no REsp n. 1.874.619/PE, Relator: Ministro Rogério Schietti Cruz; Sexta Turma; DJe 2/12/2020.

Referências

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