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Lavagem de capitais: é típica a conduta de registrar imóveis em nome próprio e de descendentes?

O artigo aborda a tipicidade da conduta de registrar imóveis em nome próprio ou de descendentes no contexto da lavagem de capitais, destacando que tal prática pode não configurar crime se não houver ocultação ou dissimulação da origem ilícita dos recursos utilizados. Os autores discutem a necessidade de distanciamento entre o agente e o bem adquirido, além de analisar a intenção do agente, afirmando que a simples aquisição de bens, mesmo com dinheiro ilícito, não implica em tipicidade penal se não houve intento de ocultação.

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O crime de lavagem de capitais, previsto no artigo 1º da Lei nº 9.613/98, pode se materializar de diversas formas. Uma das mais tradicionais envolvem a constituição de pessoa jurídica, na qual costuma figurar como sócio-administrador interposta pessoa, diversa daquela envolvida na prática do delito antecedente, ou mesmo do real administrador da pessoa jurídica que se volta a dar a aparência de licitude a valores provenientes de atividades criminosas.

Este terceiro, a quem não compete, de fato, a administração da empresa, é o famigerado “laranja”. Sua função nesta cadeia delitiva consiste justamente em promover um distanciamento entre o autor da lavagem e/ou do crime antecedente, com o fim de efetivamente ocultar ou dissimular a real propriedade da empresa e, como consequência, mascarar a origem ilícita dos valores. Não é equivocado afirmar, portanto, que a relevância da criminalização da lavagem de capitais “está intrinsicamente vinculada à finalidade de progressivo distanciamento do produto de infração penal de sua origem ilícita” [1].

Outra forma bastante comum de se praticar o delito de lavagem de dinheiro envolve a aquisição de imóveis. Conforme consta no artigo 1º, §1º, inciso I, da Lei nº 9.613/98, incorre nas mesmas penas previstas no caput aquele que “para ocultar ou dissimular a utilização de bens, direitos ou valores provenientes em infração: I — os converte em ativos lícitos”.

Aqui, entendemos que o raciocínio se mantém idêntico, isto é: a conduta do(s) sujeito(s) envolvido(s) deve ter por objetivo conferir distanciamento [2] relevante entre o real proprietário do imóvel. Além disso, não se pode olvidar que a mera realização da conduta descrita no tipo objetivo é insuficiente, devendo-se demonstrar a existência dos elementos cognitivo e volitivo do dolo, sob pena de caracterização de (indevida) responsabilidade penal objetiva.

Imaginemos, portanto, a seguinte situação hipotética: um empresário, que goza de expressiva saúde financeira, resolve — dadas as variações do mercado, os riscos do negócio etc. — proteger parte de seu patrimônio e o futuro patrimonial de seus herdeiros.

Para tanto, passa a utilizar parte dos lucros auferidos com suas empresas na aquisição de imóveis. Parte dos imóveis adquiridos é registrado em nome próprio e alugados a terceiros. A outra parte, por sua vez, é registrada em nome de dois filhos, sendo um destes menor.

Evidentemente, até aqui, não há qualquer ilicitude, na medida em que a aquisição e o registro de imóveis em nome próprio são resguardados pela legislação civil. Do mesmo modo, a compra e o registro de imóveis em nome de filhos (inclusive, os menores) não afrontam o ordenamento jurídico, visto que a doação de imóveis a descendentes caracteriza mero adiantamento de herança (artigo 544, CC/02).

Suponhamos, então, que parte da saúde financeira do empresário decorra do fato de o sócio administrador ter praticado por meio de sua pessoa jurídica de direito privado delitos como sonegação fiscal e evasão de divisas. Imaginemos, por fim, que os valores provenientes destas atividades ilícitas constituam parte relevante do patrimônio do empresário e tenham sido efetivamente empregados na aquisição dos imóveis.

Com base nesse aspecto, há de se questionar: resta configurado, então, o crime de lavagem de dinheiro? Pelos motivos que exporemos a seguir, entendemos que se está diante de um fato atípico.

O primeiro argumento concerne à atipicidade objetiva da conduta.

Notemos que as condutas descritas no tipo exigem que o sujeito ativo do crime oculte ou dissimule a propriedade ou a origem ilícita dos bens ou valores. No caso, ao adquirir e registrar os imóveis (ativos lícitos) em nome próprio, o sujeito imediatamente promove a identificação da propriedade do bem e torna extremamente fácil a identificação dos valores ilícitos utilizados para a aquisição dos bens. Ora, conforme já ressaltado, para que se tenha a devida ocultação ou dissimulação, faz-se absolutamente necessário um distanciamento relevante entre o agente e o bem adquirido.

É importante observar que há condutas que se apresentam como um simples postfactum impunível oriundo de crime antecedente. Ou seja, apenas fazem utilização do dinheiro ilícito, mas sem executar o seu “branqueamento”. Como exemplo dessa situação, podemos citar a compra de um imóvel com valores provenientes de crime antecedente. Essa conduta não busca, disfarçadamente e para fins de ocultação, inserir no mercado quantias ilícitas, razão pela qual não configura crime de lavagem de capitais.

Registro em dependentes não afasta o bem

Da mesma forma, o registro em nome de descendentes não promove o afastamento idôneo do bem, permitindo a ágil identificação dos valores ilícitos empregados na aquisição do imóvel. Isso porque se trata de alguém que na “árvore genealógica” se encontra imediatamente acima do descendente. Tal fato se torna ainda mais evidente quando o registro do imóvel ocorre em nome de filho menor. Afinal, na medida em que o menor é incapaz para a prática de atos da vida civil, a realização destes deverá ocorrer por intermédio de seus representantes legais — no caso hipotético, o pai —, que, por se tratar de filho menor, deverá realizar o registro público do imóvel.

O segundo argumento, digno de nota, diz respeito a ausência de dolo (tipicidade subjetiva) da conduta.

Ao buscar constituir patrimônio para si e para seus descendentes, o genitor em momento algum deseja ocultar ou dissimular a propriedade dos bens ou a origem dos valores ilícitos empregados. Ao contrário, identificando-se como comprador, registrando imóveis em seu nome ou de seus descendentes, intenta tão somente formar patrimônio familiar e garantir o futuro de seus descendentes.

Uma vez que a para a materialização do crime de lavagem de dinheiro se faz necessária a ocorrência das condutas típicas “ocultar” ou “dissimular”, estando a suposta conduta delituosa despida de qualquer nota de ocultação ou dissimulação, não se estará diante do crime em questão.

Por fim, deve-se questionar ainda a idoneidade do meio empregado. Imaginemos que o genitor efetivamente tinha a intenção de ocultar a propriedade dos bens e/ou a origem ilícita dos valores. Nessa hipótese, também o fato resultaria atípico.

O motivo é simples: ainda que houvesse o desejo e que as condutas perpetradas pelo agente evidenciassem essa dimensão subjetiva, fato é que o registro de imóvel em nome próprio ou em nome de descendentes não constitui meio idôneo para a ocultação ou dissimulação da propriedade dos imóveis, tampouco da origem ilícita dos valores empregados na compra dos imóveis. Portanto, estar-se-ia diante de uma tentativa inidônea a ensejar a prática de crime impossível (artigo 17, CP).

Assim, a aquisição de imóveis com registro em nome próprio ou de filhos (menores ou não) não promove o necessário distanciamento entre o agente e o imóvel, ou entre o agente e os valores. Na pior das hipóteses, portanto, poderíamos tomar essas ações como mero exaurimento dos crimes. [3]

A adoção dessa linha interpretativa, sustentável dogmaticamente, não tem por objetivo-mor “privilegiar a impunidade dos crimes de colarinho branco”. Pelo contrário, a construção de um saber jurídico-penal comprometido com a imposição de limites racionais ao exercício do poder punitivo alinha-se a um propósito de construção de um sistema penal democrático, voltado a afirmar e garantir os direitos e garantias individuais contra o arbítrio estatal. Arbítrio este que se manifesta, de forma mais visível, pelo insaciável desejo de punir que acometem certos setores do Ministério Público e do Judiciário.

Diante do aumento considerável nos processos criminais por lavagem de capitais [4] decorrente de uma interpretação equivocada daqueles que atuam na área penal, no sentido de que tudo compreende esse novo fenômeno criminal, convém à doutrina mais crítica e comprometida com os direitos e garantias individuais assumir o seu papel de constranger a jurisprudência, corrigindo os rumos adotados pelos tribunais ao aderirem à expansão punitiva.

[1] BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal Econômico: volume 02. Saraiva: São Paulo, 2016, p. 469.

[2] Nesse sentido, BITENCOURT, op.cit., p. 471, afirma que “é preciso demonstrar, para a criminalização da autolavagem na hipótese do §1º, I, que o agente atuou com a finalidade de proceder ao progressivo distanciamento do produto de infração penal ilícita”.

[3] Nesse sentido, BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de Dinheiro: aspectos penais e processuais penais; comentários à Lei 9.613/1998, com as alterações da Lei 12.683/2012. 4. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 116-117: (…) se o agente utiliza o capital procedente da infração para comprar imóvel, bens, ou o deposita ou transfere para conta corrente, no Brasil ou no exterior, em seu próprio nome, ou em empresas, fundações ou trusts nas quais consta abertamente como instituidor, não existe o crime em discussão. O mero usufruir do produto infracional não é típico. Aquele que se propõe a praticar uma infração penal com resultado o faz, em regra, com a intenção de gastar em proveito próprio os bens adquiridos. Trata-se de mero aproveitamento do produto do crime, ato irrelevante para a administração da Justiça”.

[4] A respeito, Cf. JORIO, Israel Domingos; BOLDT, Raphael. A supercriminalização da lavagem de capitais e o papel da advocacia. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jan-01/a-supercriminalizacao-da-lavagem-de-capitais-e-o-papel-da-advocacia/. Acesso em: 01 de maio de 2024.

Referências

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