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Normas bem-intencionadas, resultados inconstitucionais: da Lei nº 15.160/2025

O artigo aborda a análise crítica da Lei nº 15.160/2025, que altera dispositivos do Código Penal relacionados à violência sexual contra a mulher. Os autores, Jorge Bheron Rocha e Gina Muniz, destacam que, apesar da boa intenção da lei, ela gera distorções que podem comprometer a igualdade de tratamento e a proporcionalidade das penas, além de levantar dúvidas sobre sua constitucionalidade. A análise sugere que a solução proposta intensifica desigualdades e não resolve questões mais amplas sobre a responsabilização penal, sendo uma oportunidade perdida para um debate mais profundo sobre o tema.

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O enfrentamento da violência contra a mulher constitui um verdadeiro imperativo civilizatório, dada sua natureza estrutural, raízes históricas profundas e múltiplas formas de manifestação. A promulgação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) representou um marco nesse contexto, ao reconhecer expressamente diferentes tipos de violência — física, psicológica, moral, patrimonial e sexual — e romper com uma visão limitada de proteção. Apesar desse avanço normativo, os desafios permanecem significativos. Por isso, toda proposta legislativa que tenha por objetivo reduzir os índices de violência de gênero deve ser objeto de debate sério, comprometido e, sobretudo, juridicamente responsável.

Com base nesse panorama, o presente artigo tem por objetivo realizar uma análise crítica da Lei nº 15.160/2025, recentemente aprovado pelo Congresso e promulgada sem vetos. A proposta legislativa altera os artigos 65 e 115 do Código Penal (Decreto-Lei nº 2.848/1940), com a finalidade de vedar a aplicação da atenuante da menoridade relativa — para agentes com menos de 21 anos na data do fato —, bem como da causa de redução do prazo prescricional — atualmente prevista para maiores de 70 anos na data da sentença ou menores de 21 anos na data do fato — nos crimes que envolvam violência sexual contra a mulher. A análise que se propõe busca examinar os fundamentos, os efeitos jurídicos e as possíveis implicações práticas dessa alteração legislativa, à luz do ordenamento constitucional e dos princípios do direito penal contemporâneo.

Tabela comparativa entre legislação atual e projeto de lei:

Hipóteses de eventual aplicação e de não aplicação da nova lei

Dando continuidade à análise, o artigo busca demonstrar, por meio de exemplos concretos, como a aplicação da Lei nº 15.160/2025 suscita sérias dúvidas quanto à sua constitucionalidade. Embora o objetivo de reforçar a repressão aos crimes sexuais contra mulheres seja legítimo, a forma como a norma foi construída revela critérios de discriminação arbitrários e incompatíveis com os princípios da isonomia, da proporcionalidade e da proteção integral de grupos vulneráveis.

Exemplo 1 – A proteção que exclui crianças:

Imagine-se o caso de um homem de 71 anos que comete estupro contra uma criança de cinco anos do sexo masculino. Nesse cenário, ele continuará tendo direito à atenuante da idade e à redução do prazo prescricional. Contudo, se a vítima for uma mulher adulta, essas benesses serão automaticamente afastadas. A lógica da proteção, portanto, não se orienta pela vulnerabilidade da vítima, mas sim pelo seu gênero, criando um tratamento jurídico que favorece mais a mulher adulta do que uma criança. Tal discrímen, centrado em um critério meramente identitário e dissociado do grau de vulnerabilidade, configura violação ao princípio da igualdade material e ao dever de proteção prioritária da criança e do adolescente (CF, artigo 227).

Exemplo 2 – Protege-se menos a vida do que a intimidade:

Um homem de 19 anos que tenta matar sua companheira — caso de tentativa de feminicídio — terá direito à atenuante da menoridade relativa e à redução da prescrição. No entanto, se ele simplesmente fotografa a companheira nua sem consentimento e divulga as imagens (crime do artigo 216-B do CP), já não poderá invocar esses benefícios. Ou seja, a tentativa de homicídio contra uma mulher é tratada com mais indulgência do que um crime contra a intimidade, com pena bem inferior. Essa distorção revela uma quebra na proporcionalidade entre gravidade da conduta e severidade da resposta penal.

Exemplo 3 – Vítima mulher, mas crime de natureza não sexual:

Considere, ainda, o caso de um idoso de 75 anos que explora uma adolescente do sexo feminino em condição análoga à de escrava, utilizando-a como empregada doméstica (artigo 149-A, II e §1º, II, do CP). Apesar da gravidade da conduta e da vulnerabilidade da vítima, como não se trata de crime sexual, o autor do fato seguirá beneficiado pela atenuante da idade e pela redução prescricional. Isso mostra que o critério adotado pelo projeto não leva em conta a gravidade concreta da violação aos direitos da mulher, mas apenas a natureza sexual do delito, criando lacunas de proteção e distorções punitivas.

Essas distorções evidenciam que a novidade legislativa em questão, embora motivada por um legítimo apelo à proteção das mulheres contra a violência sexual, incorre em inconstitucionalidades materiais e em graves incoerências sistêmicas. Em vez de promover uma política penal coerente com os fundamentos do Estado Democrático de Direito, o projeto acaba por intensificar desigualdades de tratamento com base em critérios arbitrários, desconsiderando a complexidade das vulnerabilidades e a proporcionalidade da resposta penal.

De mais a mais, essa lógica invertida colide frontalmente com os princípios da isonomia e da razoabilidade, previstos no caput e no inciso I do artigo 5º da Constituição. A exclusão seletiva de benefícios penais com base em um único tipo de crime e em uma única categoria de vítima — ainda que relevante — produz distorções sistemáticas que fragilizam o próprio fundamento do sistema de justiça criminal.

O descompasso entre a natureza da infração penal e os efeitos jurídicos que dela decorrem compromete diretamente o princípio da proporcionalidade, que exige coerência entre a gravidade da conduta, a vulnerabilidade da vítima e a intensidade da sanção imposta. Se o objetivo da norma é reforçar a resposta penal diante de crimes especialmente ofensivos, então não há razão lógica ou jurídica para que a exclusão de atenuantes e causas de redução se restrinja apenas aos crimes sexuais ou apenas quando a vítima for mulher, deixando de fora, por exemplo, casos de extrema gravidade cometidos contra crianças do sexo masculino — cuja vulnerabilidade é, em muitos casos, ainda maior.

Além disso, ao fixar uma exceção casuística e limitada a um recorte específico de infrações e vítimas, a lei abre um precedente perigoso para a proliferação de outras exclusões seletivas, baseadas em clamor público, pressão midiática ou critérios morais subjetivos. Esse processo de “pulverização normativa” desestrutura a dogmática penal, fragiliza a segurança jurídica e enfraquece a racionalidade do sistema punitivo, que passa a operar em mosaicos fragmentários e desiguais, em vez de em um corpo normativo coeso, universal e guiado por critérios objetivos.

Ao par desses problemas, a Lei nº 15.160/2025 deixa de enfrentar um ponto crucial que há tempos carece de revisão: a atenuante da menoridade relativa. O critério etário dos 21 anos tem origem histórica no Código Civil de 1916, cujo artigo 9º estabelecia essa idade como marco da maioridade civil. Essa previsão influenciou a legislação penal da época, justificando a redução de culpabilidade para agentes com menos de 21 anos no momento do fato. No entanto, com a entrada em vigor da Constituição de 1988 e, posteriormente, do Código Civil de 2002 (artigoo 5º), a maioridade civil passou a ser fixada em 18 anos, criando um novo paradigma normativo.

Apesar disso, diversas normas do próprio Código de Processo Penal — como os artigos 34, 52, 54 e 564 — ainda refletem esse anacronismo, tratando agentes entre 18 e 21 anos como se tivessem capacidade diminuída. A doutrina e a jurisprudência, no entanto, vêm abandonando esse marco de forma crítica e progressiva.

Com efeito, não se justifica a manutenção de um benefício penal fundado em um critério etário superado. A Constituição é clara ao atribuir plena imputabilidade penal a partir dos 18 anos, não havendo, portanto, base constitucional para manter, de forma genérica, uma atenuação da pena para adultos plenamente responsáveis por seus atos. Isso permite sustentar que o instituto da menoridade relativa, tal como concebido, é incompatível com a estrutura jurídica atual, e que seu abandono total poderia ser debatido de forma ampla, em relação a todos os crimes e vítimas — e não apenas em relação a um tipo penal específico.

Por outro lado, uma reflexão moderna e constitucionalmente orientada poderia se apoiar na categoria do “jovem” prevista no artigo 227 da CF/88 e delineada pelo Estatuto da Juventude (Lei nº 12.852/2013), que reconhece como tais as pessoas entre 15 e 29 anos. Nesse contexto, ao invés de simplesmente extinguir ou manter a atenuante com base em parâmetros ultrapassados, seria possível discutir formas diferenciadas de responsabilização penal, ancoradas em estudos neuropsicológicos, sociais e comportamentais que indicam que a maturidade plena, sobretudo para decisões morais e comportamentos impulsivos, não se consolida necessariamente aos 18 anos.

A Lei nº 15.160/2025, no entanto, ignora completamente essa possibilidade de debate qualificado, optando por uma solução pontual, reativa e limitada, voltada exclusivamente para crimes sexuais contra mulheres, o que acentua a fragmentação do sistema penal e aprofunda suas contradições internas.

Assim, embora seja possível afirmar com segurança que a manutenção da menoridade relativa tal como está prevista hoje é anacrônica e constitucionalmente inadequada, também se conclui que a Lei nº 15.160/2025 perde uma oportunidade valiosa de promover um debate estruturado e abrangente sobre os critérios de responsabilização penal na juventude, optando por uma intervenção legislativa parcial e mal fundamentada, que compromete a coerência e a racionalidade do ordenamento jurídico-penal.

Em arremate, a Lei nº 15.160/2025, no lugar de representar um avanço no enfrentamento da violência de gênero, revela-se um retrocesso técnico e constitucional, justamente por comprometer a coerência sistêmica, a igualdade de tratamento e a racionalidade proporcional da resposta penal. O enfrentamento legítimo da violência contra a mulher exige políticas públicas integradas e normas penais bem fundamentadas — não respostas legislativas simbólicas que, embora bem-intencionadas, produzem mais insegurança e desequilíbrio do que proteção real.

Como não houve o controle de constitucionalidade preventivo (veto total), o repressivo (redução de texto) pode ser o caminho jurídico-constitucional adequado

Diante da manifesta inconstitucionalidade e da evidente desproporcionalidade da proposta legislativa, ao presidente da República caberia, sob o ponto de vista dogmático e constitucional, impor o veto integral do projeto. Tratava-se de medida necessária para que o debate pudesse retornar ao Congresso e ser retomado sob bases mais sólidas de racionalidade, tecnicidade e justiça.

O artigo 66, §2º, da Constituição, é categórico ao limitar o veto parcial às hipóteses de supressão de artigo, parágrafo, inciso ou alínea, não permitindo o veto de meras palavras ou expressões isoladas, como “contra a mulher” ou “sexual”, sob pena de violação à unidade semântica da norma e até de criação de uma nova inconstitucionalidade — desta vez, de natureza formal.

Porém a realidade é outra. Promulgada tal como aprovada, a questão provavelmente será levada ao controle concentrado de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, que poderá empregar técnicas de interpretação conforme a Constituição ou mesmo aplicar a declaração parcial de nulidade sem redução de texto, a fim de tentar preservar os valores que motivaram a legislação, ainda que por meio de uma reconstrução do texto normativo. Trata-se, contudo, de uma tentativa de “salvar” uma boa intenção legislativa plasmada em uma técnica inadequada, o que reforça a importância de que o próprio processo legislativo se paute por rigor constitucional desde sua origem.

Proteger as mulheres contra a violência — toda e qualquer forma de violência — é imperativo constitucional e ético inegociável. Mas não se combate um mal com a fabricação normativa de outro. O sistema penal não pode ser um instrumento de resposta simbólica, seletiva ou populista, mas deve se manter como um território de rigor técnico, coerência lógica e fidelidade à Constituição. Somente assim, será possível construir uma política criminal verdadeiramente comprometida com a justiça e com a efetiva proteção dos direitos fundamentais.

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