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O efeito do juiz de garantias no processo penal: Oralidade e imediação

O artigo aborda as implicações da implementação do Juiz de Garantias e a mudança para uma estrutura acusatória no processo penal brasileiro, enfatizando a necessidade de adoção da oralidade e da imediação nas audiências. Os autores discutem a importância da separação entre as funções de investigação e julgamento, visando garantir a imparcialidade do juiz e tornar o processo mais democrático e eficiente. Além disso, ressaltam que essa transição deve incluir uma reformulação profunda nos procedimentos, rompendo com práticas inquisitórias e priorizando a participação ativa das partes.

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O Supremo Tribunal Federal iniciou, no dia 14 de junho de 2023, o julgamento das Ações Diretas de Inconstitucionalidade ADIs 2943; 3309; 3318; 7175 e 7176, tendo por objeto: [a] Estrutura Acusatória do Processo Penal [art. 3-A] [b] Juiz das Garantias [arts. 3-B-3F]; [c] Novo regime de Arquivamento [art. 28, caput]; [d] Acordo de Não Persecução Penal [art. 28-A]; [e] Prova Ilícita e Impedimento do Juiz [§ 5º, art. 157]; [e] Audiência de Custódia e Relaxamento da Prisão; e, [f] Vacatio legis.

A par da tendência de improcedência dos pedidos formulados nas ADIs, com a ressalva de ajustes pontuais quanto a interpretação conforme à constituição de alguns dispositivos, este artigo abordará exclusivamente as consequências da declaração de constitucionalidade do art. 3º-A:

“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.

O Processo Penal brasileiro ainda é uma Ilha de práticas Inquisitórias num oceano Acusatório. A tendência à implementação da orientação do Princípio Acusatório é mundial, enquanto setores autoritários, inspirados na herança do Código de Processo Penal fascista de Rocco, transposto para o CPP de 1941, ainda resistem, com argumentos obsoletos, antidemocráticos ou de esquiva democrática [Jacinto Nelson de Miranda Coutinho [Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001]. Um dos autores da coluna de hoje, inclusive, já escreveu sobre isso antes, fazendo referência a que chamou de “Movimento da Sabotagem Inquisitória [MSI]:

”O Juiz passou a ser Juiz, ou seja, julgar, sem qualquer atividade probatória, prevalecendo a gestão da prova como fator de distinção entre os sistemas, como afirmou diversas vezes Jacinto Nelson de Miranda Coutinho. Mas o ‘Movimento da Sabotagem Inquisitória (MSI)’ que acha que Juiz é o gestor da prova, que faz e acontece, busca resistir com argumentos frágeis, negacionistas. Em resumo, querem dizer: onde se lê ‘estrutura acusatória’ deve se ler ‘estrutura inquisitória’. Beira ao ridículo“.

LOPES JR, Aury; MORAIS DA ROSA, Alexandre. ”A estrutura acusatória atacada pelo MSI – Movimento Sabotagem Inquisitória“, Conjur, 2020.

Neste sentido, a divisão funcional entre o Juiz das Garantias e o Juiz de Julgamento nada mais é do que a atribuição das mesmas funções hoje concentradas na figura de um único Juiz, com a finalidade de preservar as condições objetivas, subjetivas e cognitivas da imparcialidade. A tendência é a de que o STF também reconheça a constitucionalidade, até porque, como afirmou o Presidente do IBCCRIM, Renato Stanziola Vieira, em sua sustentação oral perante o STF, no dia 15.06.2022, se o Poder Legislativo delibera pelo Juiz das Garantias, qual o motivo da inconstitucionalidade? – e indaga ao final: ”se não agora, quando?“.

Aliás, a doutrina é clara quanto ao delineamento do lugar e da função do Juiz das Garantias, valendo destacar, dentre outros, o trabalho de Luís Geraldo Sant’Ana Lanfredi [El ‘Juez de Garantías’ y el sistema penal: (Re)planteamientos sócio-criminológicos hacia la (re)significación de los desafíos del poder Judicial frente a la política criminal brasileña. Florianópolis: Empório do Direito, 2017] e Danielle Nogueira Mota Comar [Imparcialidade e Juiz das Garantias. Belo Horizonte: D’Plácido, 2022].

O escopo será o de ajustar o Sistema Processual Penal à orientação dominante na América Latina e no mundo Ocidental quanto à cisão funcional entre o exercício das funções relacionadas à Reserva de Jurisdição das Etapas de Investigação e de Julgamento. Embora já tenhamos assumido a Estrutura Acusatória, ainda nos falta integrar os consectários da Estrutura Acusatória, consistentes na assunção da Oralidade [superação das formas escritas]; Protagonismo das Partes [atividade probatória da acusação e da defesa]; da Imediação [prova produzida perante autoridade judiciária: direta ou diferida]; do Contraditório Significativo, Ampla Defesa e Construção Participativa do Provimento Judicial. [GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. São Paulo: Atlas, 2014; MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de; GONZÁLEZ POSTIGO, Leonel; NUNES DA SILVEIRA, Marco Aurélio; PAULA, Leonardo Costa de. Reflexiones brasileñas sobre la reforma procesal penal en Uruguay: Hacia la Justicia penal acusatoria en Brasil. Curitiba; Observatório da Mentalidade Inquisitória, 2019].

Décio Alonso Gomes [Prova e imediação no processo penal. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 243] explicita a extensão do Princípio da Imediação:

”Quanto ao seu conteúdo princípio da imediação predetermina a situação e atitude processual do juiz competente para conhecer da causa, ou de uma concreta fase ou incidente, diante dos sujeitos contendores e dos elementos que vão servir para formar sua convicção, toda vez que impõe ao julgador a obrigação de encontrar-se em conexão direta e em unidade espaço-temporal com eles“.

Embora a doutrina e o Supremo Tribunal Federal declarem reiteradamente o desenho acusatório do Processo Penal brasileiro em face da Constituição e dos Tratados de Direitos Humanos [STF, HC 188.888, Min. Celso de Mello], a introdução do art. 3º-A, no corpo do Processo Penal deve implicar não somente a criação do Juiz das Garantias, mas principalmente a alteração substancial do ”formato do procedimento“, com o abandono da prevalência do formato ”escrito“ em prol do ”oral“, sob a ”imediação“ do órgão jurisdicional.

Abandona-se o formato dos atos escritos para assumir as audiências como o centro de gravidade do Processo Penal, momento em que as partes poderão ofertar documentos, produzir provas, sem a constante juntada de documentos, perícias e, principalmente do produto da Etapa de Investigação Criminal.

Logo, os incidentes serão documentados o mínimo possível, abrindo-se espaço à construção da Teoria do Caso oralmente, fazendo preponderar o contraditório entre as partes, sem a referência incessante aos autos. Em consequência, as partes preparam o julgamento oral, sem que o julgador estude previamente os autos, nem leia o que fora produzido anteriormente na Etapa de Investigação Criminal. Pode parecer contraintuitivo, mas o estudo prévio, neste caso, é ruim. E é ruim porque representará porta aberta ao viés confirmatório. É justamente o ponto em que se preserva a imparcialidade [objetiva, subjetiva e cognitiva]. No lugar do estudo prévio dos autos do processo, o que se espera do juiz é que se mantenha atento ao que é produzido diante dos seus olhos, bem próximo aos seus ouvidos. A postura é antes de humildade e modéstia epistêmica, e não de soberba daquele que acha que ”já sabe de tudo“. A disposição para ver e ouvir ambos os lados. Até porque, pela própria estrutura do procedimento, só depois disso é que estará em condições de decidir.

Além de eleger o Princípio da Oralidade como o centro de gravidade das deliberações, há também o compromisso de se evitar ao máximo as peças escritas até o encerramento do julgamento:

”A criação do Juiz das Garantias implica repensar a estrutura do sistema processual penal, de cariz acusatório [CPP, art. 3º-A], não apenas pela imposição de funções diferenciadas [Juiz das Garantias e Juiz de Julgamento], mas do modo de funcionamento de todo o processo penal. A inserção da figura do Juiz das Garantias [art. 3º, B, C, D e E] se inscreve na democratização do processo porque opera a cisão funcional entre os momentos de investigação e julgamento, típico da estrutura acusatória [CPP, art. 3º-A].

“Funções Distintas e Garantia de Imparcialidade: A separação, sem comunicação ostensiva entre as fases procedimentais, modifica o modo como se prepara o julgamento, já que não se trata da mera modificação do personagem que conduz o processo e sim porque o Juiz do Julgamento somente recebe o sumário da primeira fase e não os autos na totalidade, os quais deverão permanecer acautelado no Juiz das Garantias [CPP, art. 3-B, § 3º], com acesso às partes [CPP, art. 3-B, §4º], acabando-se com o uso manipulado de declarações da fase de investigação [só valerá e poderá ser valorado o que for produzido oralmente perante o Juiz de Julgamento]. Abandona-se o procedimento escrito/inquisitório em nome da oralidade e da imediação que deverão presidir os pedidos, normalmente em audiências presenciais ou por videoconferência [exceção justificada]. […] sem que o Juiz de Julgamento tenha acesso a todo caderno processual [autos] justamente para evitar a contaminação [CPP, art. 3-B, § 3º], mantendo-se a imparcialidade objetiva, subjetiva e cognitiva. Na fase de investigação e recebimento da acusação atuará o Juiz das Garantias, enquanto na fase de julgamento, o Juiz de Julgamento não receberá, nem se contaminará pelo produzido na fase anterior, já que somente as provas irrepetíveis, medidas de obtenção de provas e antecipação de provas serão encaminhadas”. (MORAIS DA ROSA, Alexandre. [Guia do Processo Penal Estratégico. Florianópolis: EMais, 2023, no prelo)

Por consequência, a declaração da Estrutura Acusatória demanda um realinhamento metodológico no formato dos procedimentos, contexto em que poderemos aprender muito com as práticas dos países latino-americanos quanto às objeções e às resistências de setores de Mentalidade Autoritária. Assim como não foi o Legislador de 2019 que inventou o Juiz das Garantias, também não seremos os primeiros a enfrentar os desafios da implementação.

O grande salto é que não se terá mais a lógica atual de “segundo os autos do processo”, justamente porque ele deixa de ser contínuo, a saber, não se transfere simplesmente os autos do Juiz das Garantias para o Juiz de Julgamento. Logo, rompe-se com o modelo de autos escritos e acumulativos de toda a Investigação Criminal, típicos da Estrutura Inquisitória, atualmente apensada à Ação Penal [porque o art. 12 do CPP será automaticamente revogado, por incompatível: “O inquérito policial acompanhará a denúncia ou queixa, sempre que servir de base a uma ou outra”.] Cindir as funções entre Juiz de Garantais e Juiz de Julgamento sem a radical separação de autos transforma a reforma em mera falácia garantista [FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. São Paulo. RT, 2002]. Os autos do Juiz das Garantias ficam acautelados na secretaria [CPP, art. 3º-C, § 4º: “Fica assegurado às partes o amplo acesso aos autos acautelados na secretaria do juízo das garantias”], devendo, por oportunidade da Audiência de Instrução e Julgamento cada uma das partes levar o material probatório a ser apresentado, sem juntada aos autos.

É verdade que a instância recursal deverá ter ciência do que foi acolhido/rejeitado, motivo pelo qual depois de finalizado o julgamento, as provas referidas deverão ser entranhadas nos autos de julgamento, acompanhadas da gravação/reprodução da prova testemunhal. Mas isso não se confunde à tradicional prática de juntada anterior, nem serve de manipulação para aproveitamento abusivo de elementos do Juiz das Garantias.

O que estamos a dizer aqui pode ser sintetizado da seguinte forma: toda a discussão acerca da eficácia da Estrutura Acusatória e do Juiz das Garantias pressupõe genuíno compromisso de romper com o formato por meio do qual tradicionalmente sempre se deu o processamento do caso penal. Do contrário, será uma reforma “gatopardista” (em referência ao Il Gattopardo, de Giuseppe Tomasi di Lampedusa). O romance de 1958 retratou a decadência da nobreza siciliana, presenteando-nos a célebre frase “se quisermos que tudo continue como está é preciso que tudo mude”. Ali, o personagem do aristocrata Tancredi fazia referência à ameaça do advento da República; a forma de evitar alterações efetivas que tocassem em seus privilégios seria curvando-se às etiquetas recém-chegadas, preenchendo-as, contudo, do mesmo conteúdo de sempre. Trazendo para o nosso contexto jurídico-penal, a reforma gatopardista consistiria na concessão a simples mudanças no texto normativo para que tudo pudesse seguir exatamente como sempre foi.

Neste sentido, não cabe mais a mera declaração de que estamos sob uma Estrutura Acusatória. Postura como essa seria equivalente a conservar intacta a Alma Operacional Inquisitória. Já é tempo de superar a fraude de rótulos e de demonstrar que, enfim, estamos além das promessas vazias. Eis o desafio.

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