Colaboração premiada: Um sistema movido a versões?
O artigo aborda a utilização problemática da colaboração premiada no sistema de justiça brasileiro, onde esse instrumento, que deveria ser excepcional, tornou-se regra, promovendo uma lógica de barganha punitiva que fragiliza garantias processuais. Os autores criticam a forma como a delação tem sido usada para produzir narrativas convenientes, o que resulta em uma verdadeira fábrica de verdades institucionais, em detrimento da apuração objetiva e da defesa dos direitos fundamentais. As consequências desse cenário, exemplificado pela Lava Jato e outros casos, refletem uma transformação do processo penal em um mero palco de validação de versões, com riscos significativos para a democracia e a justiça.
Artigo no Migalhas
Introdução – A colaboração como instrumento excepcional e não como norma
Em tempos de Justiça performática e de narrativas penais mediadas pela conveniência, a colaboração premiada foi promovida de exceção à regra. Aquilo que nasceu como mecanismo subsidiário, pensado para casos extraordinários de criminalidade organizada, converteu-se no novo catecismo acusatório: delatar para não naufragar. O preço da liberdade deixou de ser a verdade e passou a ser a utilidade.
Não há mais pudor institucional em admitir que o sistema de justiça criminal opera, hoje, sob a lógica de uma barganha punitiva informal, sem transparência e com baixíssima densidade probatória. A colaboração premiada deixou de ser uma via complementar para se tornar um atalho – e um atalho perigoso. Não apenas porque atropela as garantias constitucionais mínimas, mas sobretudo porque terceiriza a atividade de investigação para os próprios investigados, fomentando uma competição perversa por versões “premiáveis”. Como aponta a doutrina, “O perigo é o de ruptura dos limites do Jogo Limpo (Fair Play), por meio da instrumentalização das categorias jurídicas pela lógica de guerra (Lawfare)”1.
Essa distorção não decorre de um erro ingênuo de interpretação. Ela é fruto de um projeto. Um projeto que vê o processo penal não como instrumento de contenção do poder punitivo, mas como máquina de eficiência repressiva. E, nessa engrenagem, o delator converte-se no novo protagonista do processo, ocupando o lugar da prova técnica, do contraditório e da apuração equânime.
A jurisprudência dos tribunais superiores, embora registre alguns alertas pontuais, ainda se curva com frequência à retórica da “eficácia colaborativa”2. A multiplicação de acordos, muitos deles firmados sem lastro fático mínimo, revela a degradação do instituto.
Não se trata de demonizar o instrumento. O problema não é a colaboração em si, mas a forma como ela vem sendo instrumentalizada: fora dos parâmetros constitucionais, à margem das garantias processuais e com ausência de critérios objetivos. Quando o Estado abre mão de investigar por conta própria e passa a depender de acordos para construir suas imputações, o processo penal se converte em terreno de simulações – onde a aparência de verossimilhança basta para condenar.
A confusão intencional entre eficiência e atalho
Não é coincidência que os primeiros a delatar sejam, quase sempre, os que ocupavam o topo da pirâmide da engrenagem criminosa. No teatro da colaboração, quem entra antes escolhe o figurino de herói. Os demais, que se virem. A inversão de papéis é institucionalizada: o chefe vira testemunha, o executor vira réu, e o processo penal se transforma num roteiro escrito por quem deveria ser investigado.
Sob o manto da eficiência, a colaboração premiada vem sendo tratada como se fosse uma varinha mágica – capaz de resolver a crônica incapacidade investigativa do Estado brasileiro. A lógica parece ser simples: se não dá pra investigar direito, terceiriza-se a produção de prova a quem estiver disposto a contar uma história útil. De preferência, alguém com acesso aos bastidores – mesmo que esses bastidores sejam reinventados a gosto da ocasião.
O problema é que o sistema absorveu esse vício como virtude. Criou-se um ciclo vicioso, onde o Ministério Público troca a estruturação de provas técnicas por pactos frágeis com versões midiáticas que vendem mais – e onde o Judiciário, salvo raríssimas exceções, homologa sem apetite de questionamento.
A justiça penal consensual, desenhada como exceção, passa a ser o novo normal. E, nesse normal distorcido, inquéritos inteiros são moldados a partir da palavra de quem topou jogar o jogo do “colabore ou afunde”. E é exatamente esse o ponto: o argumento da eficácia serve, muitas vezes, como biombo para esconder a fragilidade da legalidade. Ocorre que a eficácia não pode ser critério único de legitimação no Direito; se fosse assim, a tortura também seria eficaz.
Não se trata de combater o instituto da colaboração como um todo – mas de denunciar o seu uso como atalho. Quando a versão de um delator é suficiente para se decretar prisões preventivas, deflagrar medidas cautelares invasivas, instaurar ações penais e condenar réus, o processo deixa de ser espaço de reconstrução racional de proteção de direitos e garantias fundamentais, e passa a ser mecanismo de confirmação do que foi previamente pactuado.
A delação se transforma, então, em uma prova de fé: ou se crê na narrativa ou se perece sob o peso da suspeita. Quem não colabora, é tido como resistente. Quem recorre ao silêncio, é visto como desleal. O sistema passa a premiar quem diz o que se espera ouvir – e punir quem insiste em exercer o direito de não produzir prova contra si. Não investiga. Não ilumina. Apenas reforça o que já se queria provar.
Premiação sem mérito – A valoração irrefletida da palavra do colaborador
Poucas coisas são tão perigosas no processo penal quanto a palavra interessada que se converte em dogma. E o colaborador premiado, nessa arquitetura disfuncional, ascende à condição de oráculo da verdade. Pouco importa se mente, omite ou manipula – desde que entregue algo (ou alguém) que sirva à narrativa acusatória. O sistema não exige verdade, exige utilidade para aquele que acusa.
Na prática, o que se viu ao longo da última década foi a elevação da delação ao posto de prova autossuficiente – muitas vezes isolada, não corroborada e ainda assim suficiente para deflagrar operações, medidas cautelares e até sentenças condenatórias. A jurisprudência até repete o mantra da “necessidade de corroboração”, mas na hora da aplicação concreta essa exigência se dissolve em interpretações elásticas, quando não puramente simbólicas.
Por mais que se defenda que a colaboração premiada exige um juízo de confirmação por meio de elementos externos minimamente seguros e independentes, o que temos visto é a inversão dessa lógica: a palavra do delator passa a ser o ponto de partida e, não raro, também o ponto de chegada. O processo gira em torno dela, como se fosse uma peça de fé – e não um instrumento técnico.
Mais grave ainda: premia-se o colaborador não por aquilo que ele prova, mas por aquilo que ele promete entregar. A antecipação da recompensa, sem aferição concreta dos resultados, cria um desequilíbrio estrutural: enquanto o acusado que nega é tratado com suspeita, o delator é blindado por cláusulas de imunidade antecipada – ainda que seu conteúdo colaborativo se revele frágil, genérico ou até mesmo falso.
A consequência prática dessa engenharia é a fabricação de provas sob encomenda. O colaborador, ansioso por benefícios, sabe exatamente o que os órgãos de persecução desejam ouvir. O Ministério Público, por sua vez, molda suas investigações a partir dessas versões – e o Judiciário, em sua maioria, fecha os olhos para o risco da indução recíproca.
Mais uma vez, o problema não é o instrumento, mas o modo como ele vem sendo utilizado. A colaboração se transformou em um vale-tudo probatório, onde a seletividade e o oportunismo valem mais do que a fidedignidade e a precisão. Em vez de ser uma ferramenta para desvelar a verdade, tornou-se uma moeda de troca para negociar destinos – e, pior, com validade institucional.
A banalização da palavra do colaborador gera um dano sistêmico: corrói a confiança no processo penal, fragiliza o contraditório e alimenta a cultura do resultado a qualquer custo. Em um Estado de Direito, a verdade precisa ser construída com responsabilidade – e não comprada com promessas de impunidade.
Em sua versão mais perversa, a colaboração premiada se tornou um instrumento de fabricação de verdades. Não verdades fáticas, reconstruídas sob o crivo do contraditório, mas verdades institucionais: narrativas pré-moldadas que servem para validar decisões já tomadas – ainda que o processo sequer tenha começado. Em outras palavras, a delação passou a funcionar como um rito de confirmação daquilo que o sistema já decidiu acreditar.
Conclusão
A operação é sutil, mas devastadora. O colaborador entrega uma versão que ecoa as expectativas acusatórias; essa versão é recebida como elemento confiável por autoridades que têm interesse em confirmar a acusação; e o Judiciário, em nome da eficiência, chancela o conteúdo com verniz de legalidade. Cria-se, assim, uma cadeia de validação circular: o delator afirma, o Ministério Público repete, o juiz homologa, e a opinião pública aplaude.
O caso emblemático da Lava-Jato é um exemplo eloquente de tudo o que foi dito até agora. Muitos acordos celebrados com delatores produziram versões que, à luz do tempo e da contraprova, revelaram-se frágeis, parciais ou simplesmente falsas. Mas o efeito jurídico e simbólico já havia sido alcançado. As operações haviam sido deflagradas, as reputações destruídas, e o processo convertido em arena de confirmação institucional daquilo que o colaborador narrou – não do que, de fato, se comprovou.
Apesar do desfecho da Lava Jato, marcado pela parcialidade e pela incompetência reconhecida de seu juiz, a força-tarefa fez escola. Hoje, o foco da vez é o processo referente à tentativa de Golpe de Estado. A delação de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, evidencia que não é apenas mais um episódio midiático. Ela é um sintoma. Um sintoma de um processo penal que já não distingue verdade de conveniência, fato de narrativa, investigação de roteiro pré-escrito. O que se vê, mais uma vez, é a utilização da colaboração premiada como instrumento de aceleração política do sistema de justiça.
Enquanto a opinião pública consome, em tempo real, os vazamentos seletivos da delação – convenientemente conduzidos para reforçar certas versões e enterrar outras – o direito de defesa segue atropelado. O Ministério Público, amparado pela retórica da eficiência, celebra a entrega de versões que alimentam manchetes, pouco importando se há lastro fático concreto.
O caso Mauro Cid não é exceção. É continuidade. É a materialização de tudo aquilo que a dogmática penal crítica já vinha denunciando: o processo penal brasileiro se tornou um campo de validação institucional de delações, onde o conteúdo importa menos que o efeito político imediato. A colaboração deixou de ser meio de obtenção de prova e passou a ser meio de produção de versões úteis.
A construção de verdades institucionais por meio da colaboração premiada é, portanto, não apenas um problema técnico, mas uma ameaça democrática. Quando o processo deixa de ser um espaço de disputa racional de versões e se torna um palco de consagração da delação, o direito à defesa deixa de ser uma garantia e passa a ser uma formalidade incômoda.
Nesse cenário, o advogado criminalista precisa ser mais do que técnico. Precisa ser insurgente. Porque a lógica da colaboração premiada, como vem sendo aplicada, exige que a defesa atue em dobro: contra a imputação e contra o modelo que a sustenta. Defender alguém diante de uma delação não é apenas discutir os fatos – é desvelar os bastidores do acordo, é reverter a moral institucional que viola a CF/88, toma o silêncio como culpa e o prêmio como prova.
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1 ROSA. Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal Estratégico. Florianópolis, SC: Criminal Player Academia, 2021. Guia. Pag. 156.
2 Por todos, vide AgRg no AREsp n. 2.452.224/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 17/12/2024, DJEN de 23/12/2024.
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