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Em modelo processual penal delatório, alcaguete arrependido é a solução?

O artigo aborda a discussão sobre a natureza inquisitorial do processo penal brasileiro, destacando a prevalência da delação como técnica de investigação. Os autores, Alexandre de Morais da Rosa e Maurilio Casas Maia, analisam as influências históricas e éticas da delação, ressaltando suas raízes inquisitoriais e os riscos de um sistema judicial que prioriza a eficiência em detrimento dos direitos fundamentais. Além disso, questionam se o Brasil caminha para um modelo neoinquisitorial, enfatizando a necessidade de um debate ético no contexto penal atual.

Artigo no Empório do Direito

Por Alexandre Morais da Rosa e Maurilio Casas Maia – 21/02/2016

1. Nota introdutória: delação – a “mais usual” das técnicas inquisitoriais

Os eventos que vêm se espraiando no Processo Penal brasileiro nos últimos tempos têm reforçado as dúvidas de um debate antigo: o modelo processual penal brasileiro é, de fato, acusatório? Seria inquisitório? Misto?

Para tentar esclarecer a problemática, retomam-se os antigos (?) métodos de deflagração de procedimentos inquisitoriais – isso mesmo, da Inquisição, do “Santo Ofício”. O procedimento inquisitório poderia ser formado e conduzido a partir de uma das três seguintes perspectivas: (1) Por acusação; (2) Por pesquisa; (3) e por delação.

No procedimento por acusação – conforme lição de Nicolau Eymerico (“Nicolau Eymerich”) em seu “Manual da Inquisição” (“Directorium Inquisitorum”), datado de 1.376 d.C. (BUENO, 2012, p. 53) –, o processo era longo e litigioso, estando fora de prática naquela época, principalmente porque era arriscado ao acusador, que ao perder no litígio, poderia ser punido. Eymerico afirmava que o acusador deveria ser dissuadido a substituir a acusação pela delação e ponderou que já existia o procurador do Santo Ofício, chamado também de fiscal, que poderia acusar por ofício, sem qualquer perigo de penalidade em caso de derrota.

Na formalização “por pesquisa”, inexistiria a figura do acusador ou de um delator, sendo o caso de investigação oficiosa pelos inquisidores. Tratar-se-ia de uma (I) pesquisa geral para buscar notícias sobre hereges em bispados ou províncias, ou ainda de uma (II) pesquisa específica, na qual a pesquisa recai sobre pessoa específica e suspeita de heresia.

Por fim, cita-se o método inquisitorial “mais usual” (EYMERICO, 2009, p. 17), a delação: “A pessoa é delatada por outro como réu de heresia (…). A delação é recebida por um escrito que representa o delator ou escrevendo-se o que declara; (…) na sustentação da causa procede o inquisidor de ofício e não há parte contrária” (EYMERICO, 2009, p. 17).

Com efeito, percebe-se que a fase do inquérito policial brasileiro pode encontrar raízes e influências na formalização do procedimento inquisitorial “por pesquisa” e que, em princípio, a “acusação inquisitorial”, por ser representada por um litígio, lembra vagamente o processo penal acusatório atual. Entretanto, conforme antedito, nem a acusação e nem a pesquisa representavam o braço forte da inquisição – sua maior fonte de impulso era a delação.

A questão lançada é: O processo penal brasileiro estaria incorporando a principal característica do processo inquisitorial: o procedimento por delação? Ou seja, o Brasil caminha para a adoção de um processo neoinquisitorial? Para responder à indagação, mira-se brevemente a delação brasileira e suas raízes inquisitoriais e anglo-americanas.

2. A Delação Brasileira e sua “pegada” anglo-inquisitorial

No Processo Penal Brasileiro, agora com forte influência anglo-saxônica, a figura do delator vem crescendo em importância e isso se reflete inevitavelmente nas estruturas do modelo processual adotado. A própria ética entra no debate: “o que se vê é um conluio entre o Ministério Público (responsável pela persecutio criminis) e o traficante. Um acordo entre o Estado e o crime organizado” (PIMENTEL, 2015, p. 114). Reavivar o debate em torno de um processo penal ético e constitucionalizado é tema premente.

Em verdade, a delação premiada é um “jeitinho” fabuloso de economizar tempo e poupar em investigações, evitando-se frustrações acusatórias e populistas. Ora, se as investigações não estão frutificando por faltar investimento na polícia técnico-científica, o normal seria nela investir – certo? Mas não! Investiu-se em um atalho com influência inquisitorial, conforme se verá à frente.

Na esteira dos debates sobre a ética no Processo Penal, Fabiano Pimentel (2015, p. 111) trata a delação premiada como institucionalização da traição e, indo além, aponta-a como a confirmação do fracasso do Estado Brasileiro no combate ao crime (2015, p. 115).

A busca de sucesso investigativo e condenatório a qualquer custo vem reforçando os mecanismos delatórios. Dessa forma, começa a ficar claro: a “delação premiada somente pode ser entendida em ambiente pragmático” (LOPES JR; ROSA, 2015, p. 99-103). No referido cenário, a prisão temporária – usada com mentalidade inquisitória e como mecanismo de pressão midiático-psicológica –, sobressai enquanto via para obtenção de delações e de eficientização do processo penal (LOPES JR; ROSA, 2015, p. 106).

Com efeito, a eficientização do processo e a “expansão dos espaços de consenso” penal (vide aqui “Direito Penal também é lavado a jato”, de Aury Lopes Jr. e Morais da Rosa), força a revisão da lição segundo a qual o “objeto do Processo Penal era o caso penal inegociável, ou seja, era indisponível” (ver aqui texto de Aury Lopes Jr. e Morais da Rosa sobre o “delator que calculava”), provocando reflexão até mesmo na esfera acadêmica: como lecionar processo penal após a operação “lava jato”? Foi indagação já lançada anteriormente (vide aqui).

Na onda de um procedimento lastreado em “delações”, questiona-se: Um Processo Penal possuído por um espírito delator suporta riscos? Embora seja difícil responder a questão, a Inquisição Brasileira pode mostrar a “ponta do Iceberg”.

3. O caso Antônio de Sá Tinoco e as marcas do fracasso da delação inquisitorial brasileira

No livro “A inquisição em Minas Gerais no século XVIII”, a escritora Neusa Fernandes, revela traços das raízes da Inquisição no Brasil. Segundo Neusa Fernandes, os mecanismos e sutilezas inquisitoriais do Brasil revelavam no seu perfil sua principal fonte de alimentação: a “delação” (2014, p. 148). O “jeitinho inquisitorial brasileiro” era esfomeado por delações, um devorador de delações. Era esse o motor inquisitório e condenatório.

Ao caso concreto.

Trata-se agora do Processo de Inquisição Lisboa n. 2.490 (FERNANDES, 2014, p. 201), pelo qual Antônio de Sá Tinoco (50 anos, cirurgião e fazendeiro) fora preso pela Inquisição do Brasil em 1763. As acusações giravam em torno de blasfêmia, concubinato, afirmações hereges de que a fornicação não seria pecado e agressão (“porretada”) a um indivíduo chamado João José (FERNANDES, 2014, p. 147-148). Na colheita de prova testemunhal, mercadores e frades narraram a boa índole do fazendeiro-cirurgião, jamais confirmando a suspeita de concubinato e de outras heresias.

A esta altura o leitor indaga: O que teria a ver delação premiada e o caso de “Antônio de Sá Tinoco”? Bem, Tinoco permaneceu preso durante três anos e meio e assim permaneceu porque fora delatado pelo religioso Matias de Azevedo Coutinho. Como o processo findou?

Responde Neusa Fernandes: “O processo só foi encerrado quando o autor formal da acusação, emocionado com a missa que acabara de assistir, revelou ser falso o seu juramento e pediu perdão publicamente a Tinoco, confessando também ser ele mesmo o autor da ‘porretada’ que lhe atribuíra” (2014, p. 148).

Ou seja, o mecanismo de obtenção da delação não era – e não é –, confiável como se desejaria que fosse. Neusa Fernandes (2014, p. 148) comenta o caso: “O exame desse processo conduz à conclusão de que não se pode dar crédito aos processos como fontes fidedignas. É possível que muitos religiosos tenham feito acusações semelhantes, sem arrependimentos, e mandado à fogueira muitos cristãos-novos inocentes”.

Pois bem, e com a retomada do jeitinho delator, quem garantirá o arrependimento dos delatores e a efetivação do Justo?

4. Breve nota conclusiva

Com efeito, é notório o risco de o Processo Penal brasileiro tomar feições delatórias e neoinquisitoriais. A delação é mecanismo com forte ranço inquisitorial. Realizar acordo com o delator pode ser facilmente visto como a realização de um pacto com Judas e com indivíduos que provavelmente não se arrependerão após irem à missa ou ao culto. Ou seja, nem todos os delatados terão a sorte de Tinoco…

Que Processo Penal você deseja para o Brasil?

Notas e Referências:

BUENO, Manoel Carlos. (Org.). Código de Hamurabi. Manual dos Inquisidores. Lei das XII Tábuas. Lei de Talião. 2ª ed. Leme (SP): CL Edijur, 2012.

EYMERICO, Nicolau. Manual da Inquisição. Tradução e adaptação A. C. Godoy. 1ª ed. (2001). 8ª tiragem (2009). Curitiba: Juruá, 2009.

FERNANDES, Neusa. A inquisição em Minas Gerais no século XVIII. 3ª ed. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.

LOPES JÚNIOR, Aury. ROSA, Alexandre Morais. Processo Penal no limite. Florianópolis: Empório do Direito, 2015.

PIMENTEL, Fabiano. Apontamentos de Processo Penal Garantista. Brasília: Editora Consulex, 2015.

ROSA, Alexandre Morais da. Guia Compacto do Processo Penal conforme a Teoria dos jogos. 2ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

______. KHALED JR., Salah H. In dubio pro hell: profanando o sistema penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014.

. Alexandre Morais da Rosa é Professor de Processo Penal da UFSC e do Curso de Direito da UNIVALI-SC (mestrado e doutorado). Doutor em Direito (UFPR). Membro do Núcleo de Direito e Psicanálise da UFPR. Juiz de Direito (TJSC).

Email: [email protected] / Facebook aqui

. Maurilio Casas Maia é Mestre em Ciências Jurídicas pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pós-Graduado lato sensu em Direito Público: Constitucional e Administrativo; Direitos Civil e Processual Civil. Professor de carreira da Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e Defensor Público (DPE-AM).

Email: [email protected] / Facebook: aqui

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