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Callegari: Peculato e ‘rachadinha’: dificuldade de adequação típica

O artigo aborda a complexidade jurídica do crime de peculato em relação à prática da “rachadinha”, questionando a adequação típica desse delito. O autor, André Callegari, discute como as condutas de funcionários públicos que recebem parte dos salários dos subordinados não se enquadram nos tipos penais de peculato, ressaltando a importância da tipicidade e da posse do dinheiro. O texto conclui que a caracterização das ações ainda depende de decisões das cortes superiores para uma definição mais clara sobre improbidade ou crime.

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Apesar das polêmicas que envolvem funcionários públicos que de alguma forma recebem parte do salário de seus funcionários ainda não estarem bem delimitadas nas cortes superiores, porque ora se fala em crime de peculato, ora se menciona que as condutas seriam de improbidade administrativa, buscaremos, de forma breve, verificar a adequação típica ao delito de peculato.

É certo que no caso da “rachadinha”, no primeiro verbo nuclear do tipo penal acima descrito, o funcionário público não se amolda, ou seja, não há uma adequação típica a essa conduta sem que se fira o princípio da taxatividade penal. A razão é simples aqui. Para que houvesse esse tipo de conduta, o funcionário teria de praticar uma espécie de apropriação indébita, ou seja, ele mesmo ficar com o dinheiro público diretamente.

Quanto à segunda hipótese do tipo penal, o peculato desvio, que exige para a sua configuração que o funcionário desvie o dinheiro público em seu proveito ou de terceiro, penso que a conduta tampouco se amolda ao tipo penal nos casos de “rachadinha”.

A razão dessa leitura preliminar se dá em relação às garantias que emergem da tipicidade penal, ou seja, dentro da funções da tipicidade [1] está a de garantir que as condutas tenham uma descrição precisa (taxatividade), não permitindo ao intérprete uma elasticidade maior do que aquilo que está descrito na norma penal incriminadora.

Nos casos que estão sendo intitulados como “rachadinha”, não há propriamente a modalidade desvio em proveito próprio, conduta exigida pelo tipo penal que configuraria a atividade delitiva. Ainda que o funcionário, por ocasião da contratação de seus subordinados, diga que uma parte dever retornar para ele, não há propriamente um desvio do dinheiro público. O dinheiro público, nesse caso, chega ao seu destinatário final, que é o subordinado, portanto, não foi desviado. Se o funcionário concorda em devolver parte dos valores recebidos, não há de se falar em peculato desvio. Diferente seria se houvesse uma exigência por parte do funcionário, o que poderia, em tese, tipificar o crime de concussão.

Porém, dito tudo isso, parece-me que o fundamental ainda não foi explorado na questão da tipicidade penal, porque de fato o tipo em comento (artigo 312, CP) menciona que o funcionário deve ter a posse do valor em razão do cargo. Assim, ainda que o funcionário peça de volta parte do salário percebido pelo seu subordinado, a posse efetiva dos valores nunca esteve ao seu alcance. A posse esteve sempre nas mãos da Administração Pública, que faz efetivamente o pagamento direto ao subordinado. Efetivamente se ele posteriormente devolve os valores recebidos, ou parte dele, impede que se afigure a figura típica inserta no tipo penal de peculato.

Hungria já se referia à modalidade do peculato como sendo “o crime do funcionário público que arbitrariamente faz sua ou desvia em proveito próprio ou alheio a coisa móvel que possui em razão do cargo, seja ela pertencente ao Estado ou apenas se ache sob sua vigilância. Tal como a apropriação indébita, o peculato pressupõe no agente a preexistência da legítima posse precária, ou em confiança, da res mobilis de que se apropria, ou desvia do fim a que era destinada” [2].

Não me parece que o funcionário público tenha a posse dos valores desviados que lhe são restituídos, ainda que se possa argumentar que as verbas de gabinete, por exemplo, são por ele administradas e destinadas aos servidores contratados. De fato isso pode acontecer, mas ainda assim não configuraria a modalidade de ter a posse propriamente dita. Nesse sentido, Hungria segue ao afirmar que “é o fato do funcionário público, que, tendo em razão do cargo, a posse de coisa móvel pertencente a administração pública ou sob a guarda desta (a qualquer título), dela se apropria, ou a distrai do seu destino, em proveito próprio ou de outrem” [3].

Como disse linhas acima, o funcionário não tem a posse de coisa móvel pertencente a Administração Pública, fato este que o impede de posteriormente dela se apropriar ou desviar. O fato de haver um acordo entre os subordinados de devolução dos valores escapa dessa modalidade penal.

Feitas essas considerações, ainda que preliminares, porque a questão deverá ser enfrentada pelo STF, sigo com dúvidas em relação ao juízo de adequação típica das condutas de recebimento de parte dos valores pagos aos subordinados e restituídos ao funcionário público. Diferentemente ocorre quando não há funcionário qualquer (caso dos funcionários fantasmas), ou seja, a contratação é fictícia e não há contraprestação de trabalho. Nesse caso, sim, haveria uma apropriação dos valores pelo funcionário público, que não contrata ninguém e recebe os valores de volta.

Há opiniões diversas sobre esse tipo de conduta, inclusive com autores que se inclinam pela improbidade administrativa do funcionário ou pela simples imoralidade do ato praticado. Como a ideia era explorar tão somente a tipicidade penal, não adentramos nessas outras hipóteses mencionadas. Aguardemos os pronunciamentos das cortes para saber se o fato descrito justifica a adequação típica do delito de peculato.

[1] CALLEGARI, André Luís. Teoria Geral do Delito. São Paulo: Atlas, 2014, p. 91.

[2] HUNGRIA, Nélson. Comentários ao Código Penal. V. IX, Rio de Janeiro: Forense, 1958, p. 332.

[3] Idem, p. 332.

Referências

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