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O delator que calculava e o que a delação premiada não compra

O artigo aborda a dinâmica da delação premiada no Brasil, discutindo como ela transforma o processo penal em um jogo de custo e benefício, onde acusados analisam a possibilidade de delatar em troca de penas menores. Os autores comparam a prática brasileira à tradição norte-americana, questionando os limites éticos e morais dessa negociação e ressaltando a necessidade de um entendimento profundo dos efeitos dessa prática no sistema de justiça. A reflexão sobre a mercantilização da justiça e os direitos fundamentais encerra a análise, provocando uma discussão sobre os limites do que pode ser negociado no contexto penal.

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Com o acolhimento da Justiça negocial, especialmente mediante delação premiada, os custos da “descoberta probatória” em favor do Estado são trocados por reduções de pena e de regimes prisionais, na mais ampla mesa de negócios. Os limites para tanto, diferentemente do contexto americano, por exemplo, não estão consolidados no Brasil, nem fazem parte da nossa tradição. Daí o desconforto de pensar o processo penal contemporaneamente. Evidentemente que já se discute os custos do processo há muito e uma delação, com aplicação da pena, é menos custosa do que um processo penal, daí que ambas as partes podem lucrar. O Estado reduz a pena ou o regime, enquanto o acusado/delator fornece provas contra si e/ou terceiros, apurando os custos e benefícios das recompensas. Acrescente-se que a pressão da prisão cautelar e do esculacho midiático servem de trunfos processuais.

Richard Posner já indicava esta possibilidade no clássico “Economic Analysis of Law” (1992, capítulo XXI), uma vez que os processos geram custos e externalidades positivas e negativas. Logo, a análise econômica do direito e processo penal deve ser estudada, justamente porque altera a maneira de compreender a teoria da tomada de decisão do indivíduo otimizador. Aliás, a noção de indivíduo otimizador é o ponto de partida da análise econômica da delação premiada. A leitura pela moral acaba compreendendo-o como um egoísta, esperto e sem ética (sabemos que há distinção entre ética e moral). Entretanto, a satisfação de suas próprias preferências implica, em todos nós, a possibilidade de imputação de indivíduo otimizador, desde querer manter a reputação, a dignidade, o decoro, ganhar dinheiro, penas menores, enfim, buscar prazer ou dor. Somente a partir desta noção é que se pode compreender as recompensas de participar ou não do jogo da delação premiada. Para este modelo, não há julgamentos a priori do conteúdo da otimização, mas tão somente o reconhecimento do movimento otimizador. Logo, as objeções morais são computadas nos custos, sem que tenham nenhuma transcendência.

Para que possamos compreender, todavia, o efeito da delação premiada no contexto brasileiro, precisamos abandonar, dentre outras noções, a de obrigatoriedade da ação penal, do limite mínimo e máximo de pena dos tipos penais e as regras de fixação de regime prisional. Uma verdadeira revolução na nossa maneira de pensar, com os riscos inerentes.

Isto porque a partir da definição das técnicas de estabelecimento dos princípios penais cabe a distinção entre os que conferem um direito ao seu titular e os que definem um padrão de atuar do Estado (standard), conforme afirma João Gualberto Garcez Ramos: “Ao conferir um direito, ou privilégio, ou prerrogativa, ao imputado, reconhecem que um certo mandamento foi concebido no seu estrito interesse. Em outras palavras, reconhecem que o enunciado é programático, que o sistema de justiça criminal pode ‘viver’ sem o respeito a ele, se for da vontade do imputado dele abrir mão. A essa característica da faculdade, ou direito, se chama de ‘desistibilidade’ (waivability).” Já no segundo caso: “estabelecem um standard, os princípios alicerçam o próprio sistema de justiça criminal. Com isso, o mandamento é absoluto; não pode ser afastado, porque constitui a estrutura do próprio sistema. Se for violado, configurar-se-á uma verdadeira e própria infração ao princípio standard do devido processo legal.”[2]

Logo, o acolhimento da negociação implica na renúncia do direito ao processo, mediante o acolhimento antecipado e informado, sobre os limites e modos da sanção futura. O escambo se dá a partir da liberdade do acusado e do interesse do Estado em obter informações que seriam custosas e difíceis. A troca, por sua vez, homologada pelo Estado-Juiz, converte-se no novo padrão de adjudicação de culpa. Assim é que o direito ao processo passa a ser um privilégio renunciável e não um standard irrenunciável, dado que enquadrado dentro dos limites da liberdade dos jogadores envolvidos. Rebaixa-se o estatuto de Direitos Fundamentais do direito ao processo.

Transformamos, assim, o Processo Penal de desvelamento da verdade, não real, por favor (Salah Khaled), em adjudicação da verdade consensualmente construída, conforme já afirmamos anteriormente, com os paradoxos também indicados na semana passada. No modelo importado, parafraseando o sugestivo título do livro de Gustavo Ferreira Ribeiro e Ivo T. Gico Jr[3], criamos a figura do “delator que calculava”, a saber, analisa os custos e benefícios de delatar ou não. Daí a importância de “bons jogadores”, tanto de acusação como de defesa que, além de entenderem das regras do jogo, possam dominar táticas e estratégias do jogo negocial. Precisam compreender o que é sobrecarga de acusação, informação qualificada, blefes, trunfos e recompensas, naquilo que a Teoria dos Jogos aplicada ao processo penal se faz presente[4].

A questão a ser debatida, diante do acolhimento e homologação pelo Supremo Tribunal Federal das delações, é quais os limites da negociação? Enfim, o que está na mesa de negociação e quais as cartas escondidas nas mangas. Pode-se negociar tudo?

Para responder nos inspiramos, claro, na obra O Que o Dinheiro Não Compra, do festejado professor Michael J. Sandel, de Harvard. A partir da reflexão sobre os limites morais da delação pretendemos demonstrar, nas próximas colunas, que a instrumentalização da Justiça Negocial no Brasil, comercializando paradigmas diferenciados, deveria exigir, de todos nós, para além dos ufanismos de criminalização dos vips, um ponto de vista dos custos coletivos. No momento podemos dizer que a “dignidade da pessoa humana” deveria fazer barreira, mas em nome do coletivo (somos hegelianos agora?), altera-se o sentido dos Direitos Fundamentais. E onde iremos parar?

Terminamos com uma reflexão de Sandel, que retomaremos semana próxima: “Quando decidimos que determinados bens podem ser comprados e vendidos, estamos decidindo, pelo menos implicitamente, que podem ser tratados como mercadorias, como instrumentos de lucro e uso. Mas nem todos os bens podem ser avaliados dessa maneira. O exemplo mais óbvio são os seres humanos.”[5] E a liberdade dos seres humanos pode? Onde chegaremos? Boa semana.

[1] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. Saraiva, 2015. CARVALHO, Saldo de. WUNDERLICH, Alexandre. Diálogos sobre a Justiça Dialogal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002; PRADO, Geraldo. Transação Penal. Coimbra: Almedina, 2015. [2] RAMOS, João Gualberto Garcez. Curso de processo penal norte-americano. São Paulo: RT, 2006, p. 110-111. [3] RIBEIRO, Gustavo Ferreira; GICO JR, Ivo T. O jurista que calculava. Curitiba: CRV, 2013 [4] MORAIS DA ROSA, Alexandre. A Teoria dos Jogos Aplicada ao Processo Penal. Lisboa/Florianópolis: Rei dos Livros/Empório do Direito, 2015. [5] SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra. Trad. Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, p. 15.

Referências

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