Juiz de garantias: manutenção do sistema inquisitorial (parte 2)
O artigo aborda a crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal que exclui a aplicação do juiz de garantias nas competências do tribunal do júri, destacando a importância desse mecanismo para assegurar direitos fundamentais e um processo penal mais justo. Os autores argumentam que a manutenção desse sistema inquisitorial prejudica não só a defesa, mas a efetividade do devido processo legal. Para os autores, um verdadeiro sistema acusatório no Brasil depende da implementação do juiz de garantias, essencial para equilibrar a balança entre acusação e defesa.
Artigo no Conjur
Na semana passada publicamos a primeira parte do artigo “Juiz de garantias: a manutenção do sistema inquisitorial no Júri”, em que opinamos sobre como o julgamento pelo Supremo Tribunal Federal, nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305, desvirtuou uma das principais e mais importantes inovações legislativas no caminho de um sistema verdadeiramente acusatório: o juiz de garantias.
Primeiramente, as obviedades precisam ser ditas. Não há qualquer fundamento teórico e prático pra afastar o juiz de garantias do procedimento do júri. Constituiu uma escolha legítima do Congresso, que previu expressamente no artigo 3º- C que “a competência do juiz das garantias abrange todas as infrações penais, exceto as de menor potencial ofensivo, e cessa com o recebimento da denúncia ou queixa na forma do art. 399 deste Código”.
Para além de uma opção legislativa, a aplicação no julgamento dos crimes de competência do tribunal do júri fazia sentido a partir da interpretação da própria Constituição [1]. O júri é, por si só, uma garantia constitucional do artigo 5º. Ora, ao ser reconhecido como um direito fundamental, seu procedimento se reveste de uma cautela adicional, justamente para evitar que o julgamento popular transcorra de maneira injusta e parcial. Já discutimos diversas vezes como a balança pende para a acusação [2] e, por isso, há necessidade do desenvolvimento de instrumentos de equilíbrio para a defesa.
Consta na ata de julgamento, mais precisamente no item 10, que os ministros, por unanimidade, atribuíram “interpretação conforme à primeira parte do caput do art. 3º-C do CPP, incluído pela Lei nº 13.964/2019, para esclarecer que as normas relativas ao juiz das garantias não se aplicam às seguintes situações: a) processos de competência originária dos tribunais, os quais são regidos pela Lei nº 8.038/1990; b) processos de competência do tribunal do júri; c) casos de violência doméstica e familiar; e d) infrações penais de menor potencial ofensivo”.
Como já ressaltado, não há qualquer fundamento constitucional para excluir o procedimento do júri (ou mesmo os processos de competência originária dos tribunais e os casos de violência domésticas e familiar) da implementação do juiz de garantias. Por qual razão houve a exclusão? Pessoas acusadas deste crime não merecem que o devido processo legal seja respeitado? Por que um pré-julgamento baseado em uma hipótese acusatória? A presunção de inocência deve ser afastada quando o Estado-acusação escolhe por denunciar por certos crimes?
Sabemos que o juiz de garantias não seria a panaceia para proteção contra um sistema inquisitorial. Mas é um dos passos para que, finalmente, o Brasil deixe de ostentar o infeliz título de “único país inquisitorial das Américas”. Entretanto, urge um câmbio de mentalidade de todos os envolvidos com o processo penal (juristas, magistrados, promotores, defensores, advogados, delegados, estudantes).
Foram poucos os ministros que citaram o júri no decorrer do julgamento. O ministro Dias Toffoli, afirmou que as regras do juiz das garantias não se aplicam aos processos de competência do Tribunal do Júri, em que o julgamento coletivo, como ocorre nos tribunais, funciona como fator de reforço da imparcialidade. Com o devido respeito, esse reforço da imparcialidade por ser um julgamento coletivo, poderia ser um argumento válido caso a tomada de decisão fosse deliberativa. É uma ideia que já defendemos em algumas oportunidades [3], para que os veredictos tivessem maior qualidade, teriam que ser ponderados em um ambiente democrático e participativo. No entanto, atualmente, a tomada de decisão no júri é feita a partir de votos individuais e sem fundamentação, o que, por certo, exclui o fundamento de coletividade ou mesmo de reforço de imparcialidade.
Os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Cármen Lúcia, mencionaram o Tribunal do Júri apenas para excluir o procedimento da esfera de proteção do juiz de garantias.
Entretanto, o ministro Cristiano Zanin, por sua vez, explicitou que “para os processos afetos ao Tribunal do Júri, à Justiça Eleitoral, casos de violência contra a mulher e, ainda, na Justiça Militar, a lei não fez qualquer distinção, a não ser prevendo expressamente que o juiz de garantias incidiria em todas as infrações penais e também nos juizados. Então, onde não há, a meu ver, uma distinção na lei, eu entendo que não poderíamos, com máximo respeito, fazê-lo aqui neste julgamento”.
De maneira certeira, o ministro Nunes Marques complementou: “Quanto ao Tribunal do Júri, foi aventado também como um dos órgãos jurisdicionais que não deve ser precedido pelo juiz de garantias. Com a devida vênia, eu entendo que não há razão para essa exclusão. No ponto, acompanho o iminente Min. Cristiano Zanin, no sentido de que embora seja certo que a matéria de fato no júri fica a cargo do Conselho de Sentença, e não do juiz togado, a verdade é que o juiz da pronúncia estará sujeito às mesmas influências psicológicas decorrentes do viés de confirmação que o legislador quis evitar, caso participe de toda a fase investigatória. Acresce que aos crimes dolosos contra a vida, são cominadas as penas mais altas do ordenamento jurídico, seria paradoxal, penso eu, que nos processos por crimes com penas menores, houvesse mais garantias para o réu do que em processos por crimes maiores. Outro ponto importante, também, a se observar, é que os crimes contra a vida normalmente vêm intrincados com crimes conexos, por exemplo, o porte ilegal de arma, o tráfico de drogas, entre outros. Isso, na prática, pode gerar conflitos de competência entre juízes de garantia e juízes de varas privativas do júri, com prejuízo para a apuração dos crimes. Por fim, observo que o crime de latrocínio, durante a investigação, é confundido com os crimes contra a vida, e vice-versa, conforme esta Corte firmou na Súmula 603, que cabe ao juiz singular julgar o latrocínio, isso também poderia ser uma fonte permanente de conflito de competência com danos para a persecução penal. Por essas razões, ao meu juízo, os crimes de competência do Tribunal do Júri devem estar sob a jurisdição do juizado de garantias, isso tornará mais simples a compreensão desses juizados”.
De qualquer modo, na ata de julgamento da sessão, infelizmente, constou o afastamento do juiz de garantias por unanimidade.
Assim como ocorreu em diversos momentos históricos, esperamos que essa decisão seja revista, não apenas em respeito ao devido processo legislativo, mas, principalmente, em homenagem aos direitos fundamentais que exigem que os acusados sejam julgados por órgãos imparciais e com base na prova judicializada.
Por último, lembramos que “o Estado Democrático de Direito exige que o tribunal do júri seja compreendido a partir de um sistema acusatório ou adversarial, em respeito absoluto e intransigente aos direitos constitucionais fundamentais e convencionais” [4]. O juiz de garantias era um importante elemento neste sentido.
[1] Recomendamos a leitura do artigo: “MAYA, André Machado. A importância do juiz de garantias para o Tribunal do Júri no Brasil. In Estudos em Homenagem aos 200 anos do Tribunal do Júri no Brasil. Rodrigo Faucz e Daniel Avelar (Org.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022.”
[2] SILVA, Rodrigo Faucz Pereira e. Tribunal do Júri: Incompatibilidade com o Sistema Acusatório. In Desafiando a Inquisição: Ideias e Propostas para a Reforma Processual Penal no Brasil. CEJA: Santiago, 2017. pp. 237-250. Obra disponível em: https://bit.ly/3evcInw.
[3] Por exemplo, “Tribunal do Júri: deliberação entre os jurados aumenta a qualidade das decisões” e “A unanimidade e a deliberação no júri”.
[4] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz. “O Tribunal do Júri na Constituição”. In Direito Constitucional Brasileiro: Teoria da Constituição e Direitos Fundamentais. Coord. Clemerson Merlis Clève. Coordenacao. 2ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 598.
Referências
Comunidade Criminal Player
Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!
Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.
Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas
- IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
- IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
- Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez

Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?
- GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
- Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
- Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
- Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
- Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA

Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!
- Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
- Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
- Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
- Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
- IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade

A força da maior comunidade digital para criminalistas
- Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
- Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
- Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade
Assine e tenha acesso completo!
- 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
- Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
- Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
- Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
- 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
- Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
- Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.
Quero testar antes
Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias
- Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
- Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
- Acesso aos conteúdos abertos da comunidade
Já sou visitante
Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.