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Acusados de homicídio também são presumidamente inocentes?!

O artigo aborda a relação entre a presunção de inocência e a prática de prisões preventivas em casos de homicídio, enfatizando que a lógica processual penal brasileira é frequentemente subvertida. Embora a Constituição garanta a liberdade do réu como regra, muitas vezes, réus acusados de crimes dolosos contra a vida são submissos à prisão preventiva como resposta ao clamor público, o que compromete seu direito a um julgamento imparcial. A discussão se intensifica com as recentes mudanças legislativas que favorecem a prisão automática após condenação em primeiro grau, levantando questões sobre a eficácia e a legitimidade dessas práticas no sistema de justiça.

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O princípio constitucional e convencional da presunção de inocência, viga mestra do processo penal em um Estado democrático de Direito e um próprio critério de civilidade, consubstancia a liberdade do réu como regra, e a prisão preventiva como exceção. Contudo, nos crimes dolosos contra a vida, especialmente nos casos envolvendo homicídios, essa lógica é completamente subvertida na práxis da justiça criminal.

A princípio, como decorrência da presunção de inocência, só se admite a prisão de uma pessoa depois do trânsito em julgado de uma sentença penal condenatória. Nessas situações, estamos diante da prisão-pena, cuja decisão judicial é baseada num juízo de culpabilidade, colhido após a instrução processual, no qual garante-se ao acusado a oportunidade de produzir provas, sob o crivo do contraditório e ampla defesa. Não obstante, para assegurar o pleno desenvolvimento da persecução penal, por vezes, revela-se necessário privar o acusado do seu direito à liberdade.

Existem duas correntes explicativas da dialética que se estabelece entre prisão provisória e liberdade individual, quais sejam: as substantivas e as processualistas [1]. As primeiras defendem que a prisão preventiva tem cariz de pena antecipada e subdividem-se em dois subgrupos: substantivas autoritárias e substantivas liberais. As segundas entendem a prisão preventiva na perspectiva de uma medida processual cautelar.

Os adeptos das teorias substantivas autoritárias privilegiam a ordem pública em detrimento da presunção de inocência. Defendem, pois, que este princípio tem que ser relativizado quando estiver em confronto com outros valores constitucional e socialmente relevantes. Por possuir a prisão preventiva verdadeira natureza de pena, será válida para fins de prevenção geral positiva (credibilidade no sistema de justiça), prevenção geral negativa (intimidação), prevenção especial negativa (neutralização) e prevenção especial positiva (ressocialização). Esta teoria não foi adotada no Brasil. Prova disso é que nosso CPP (artigo 313, §2º) veda expressamente a decretação de prisão preventiva com cariz de pena antecipada.

As teorias processualistas, por fim, emprestam às prisões preventivas natureza de medida cautelar, que podem ser impostas exclusivamente para assegurar fins endoprocessuais. Essa teoria possibilita uma convergência prática entre as diversas, e por vezes conflitantes, finalidades do processo penal, tais como a busca da verdade e a salvaguarda dos direitos fundamentais.

As medidas cautelares têm por objetivo assegurar o regular desenvolvimento do processo. Por serem restritivas de direitos fundamentais, só devem ser aplicadas no caso concreto, obedecidos os parâmetros legais, quando houver necessidade devidamente justificada.

A problemática, conforme anunciado no início deste artigo, é que, em crimes (abstratamente) graves como o homicídio, na contramão da principiologia adotada pelo processo penal brasileiro, vigora a teoria substantiva autoritária. A imensa maioria dos réus submetidos a júri são presos durante a persecução; não por necessidade do processo, mas sim para atender ao clamor público de combate à criminalidade, principalmente em casos midiáticos. Eis o problema! A necessidade de manutenção da ordem pública e convivência social pacifica não implicam, por si só, legitimidade do poder punitivo.

Como ponderam Thiago Minagé e Thaíse Mattar Assad, as prisões preventivas decretadas durante a apuração dos crimes dolosos contra a vida, “em sua grande maioria, são decisões pautadas na perspectiva de que o acusado deve permanecer preso, sob a ótima da pretensa ameaça à coletividade (ordem pública), apenas e tão somente por ter supostamente praticado o delito imputado” [2].

A banalização do uso das preventivas, para além de violar o princípio da presunção de inocência enquanto norma de tratamento, compromete o direito do réu a um julgamento imparcial. Os tribunais superiores têm entendimento consolidado de que o rol do artigo 478 do CPP é taxativo [3], de modo que nada impede que o órgão acusatório se valha do decreto prisional como argumento de autoridade para incutir nos jurados — desprovidos de conhecimentos técnicos para diferenciar entre o juízo de periculosidade processual e o juízo de culpabilidade acerca do fato — uma presunção de culpabilidade do réu.

Obviamente, existem situações em que a prisão preventiva se revela necessária durante a persecução penal. O que rechaçamos é automaticidade da medida em relação aos delitos de homicídio. As teses defensivas no procedimento do júri, muitas vezes, suplantam questões inerentes à autoria e materialidade. Teses de legítima defesa, inexigibilidade de conduta diversa podem conduzir, respectivamente, à exclusão da ilicitude ou culpabilidade do crime, ao passo que o reconhecimento de excessos pode implicar aplicação de regime semiaberto ou aberto.

Pontuamos também que, no júri, a defesa ampla se transmuda para plena, de maneira que os jurados, valendo-se de sua soberania, podem absolver o réu até mesmo por clemência. Revela-se, pois, destoante que um juiz togado — sem competência para o julgamento de mérito dos crimes dolosos contra a vida — banalize a decretação de prisões preventivas nos crimes de homicídio, ao passo que os verdadeiros juízes do fato podem, a despeito de prova de autoria e materialidade, absolver o acusado por questões metajurídicas.

Não se pode também descartar a possibilidade do acusado ser, em sessão plenária, declarado inocente com base na tese de negativa de autoria ou insuficiência probatória (o que gera a equiparação da inocência probatória com a material). É justamente essa a essência da presunção de inocência como norma de tratamento: só podem ser aplicadas em desfavor do réu as medidas cautelares que “ainda se mostrem comunitariamente suportáveis face à possibilidade de estarem a ser aplicadas a um inocente” [4].

Por fim, e não menos importante, ainda que o acusado seja condenado no plenário do júri, o status de inocente o persegue até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Infelizmente esse mandado constitucional foi desconsiderado pelo Congresso Nacional que, em nítido backlash legislativo, por ocasião do “pacote anticrime”, determinou a prisão automática do réu condenado pelo Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão (CPP, artigo 492, inc. I, “e”).

Na mesma esteira da doutrina majoritária, defendemos a (gritante) inconstitucionalidade do referido dispositivo legal pelos argumentos aqui sintetizados (veja o artigo publicado nesta coluna). Não obstante, a discussão acerca da matéria tomou contornos truculentos no STF (Tema 1.068 julgado nos autos RE 1.235.340).

No julgamento em plenário virtual, apenas três ministros (Gilmar Mendes, Rosa Weber e Ricardo Lewandowski) votaram pela inconstitucionalidade do artigo 492, inciso I, “e” do CPP. Em contrapartida, houve um voto (Edson Fachin) pela constitucionalidade do dispositivo legal, e o mais grave: de forma heterodoxa, cinco votos (ministros Luís Barroso, Dias Toffoli, Alexandre de Moraes, Carmen Lúcia e André Mendonça) em favor da prisão automática em decorrência de condenação pelo Tribunal do Júri independentemente da pena fixada. O ministro Gilmar Mendes fez pedido de destaque, e a matéria vai ser reanalisada pelo Plenário físico.

Diante do atual panorama, o prognóstico é que o STF, na qualidade de guardião da Constituição, formará maioria para decidir que a Carta Magna (garantista) deve se adequar à lei (autoritária), e não o contrário. O principal argumento para tanto — garantia constitucional da soberania dos veredictos — é falho, porquanto, conforme leciona Lenio Streck: “quanto à soberania dos veredictos do Júri, percebe-se que a sua fundamentabilidade não se relaciona com a imediata prisão, mas sim com a soberania para definir os fatos e a responsabilidade penal” [5].

Os “ventos” do STF sopraram efeito no STJ. Explica-se. Em um primeiro momento, o Tribunal da Cidadania sinalizou pela inconstitucionalidade do artigo 492, inciso I, “e” do CPP (HC 737.749/MG, relator ministro Rogério Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, julgado em 28/06/2022, Dje 30/06/2022), tendo por parâmetro a ratificação do princípio da presunção de inocência durante toda a persecução penal no bojo das ADCs 43, 44 e 54 (relator ministro Marco Aurélio).

Em contrapartida, os membros do Ministério Público impetraram reclamação constitucional no STF sob o fundamento de violação à Sumula Vinculante nº10 da Corte Constitucional [6]. Diante dessa situação, aliada ao julgamento (ainda não definitivo) do referido Tema 1.068, o STJ recuou, e, em recentes decisões (REsp 1.973.397, Quina Turma, julgado em 12/09/2023) o posicionamento é pela prisão automática do condenado a pena igual ou superior a quinze anos em sessão plenária, em respeito à validade e vigência do art. 492, inciso I, “e” do CPP.

Em arremate, podemos concluir que os acusados de crime de homicídio não são tratados como presumidamente inocentes no transcorrer na persecução penal. Comumente, a despeito de necessidade endoprocessual, são presos preventivamente já em audiência de custódia, e assim seguem até a sessão plenária.

Uma vez condenados em primeiro grau a pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, a prisão é imperativo legal (CPP, artigo 492, inciso I, “e”). Enquanto o STF não encerra o julgamento sobre a (in)constitucionalidade desse dispositivo, cabe à doutrina realizar um necessário “constrangimento epistemológico” [7] para (ao menos, tentar) impedir que, nos crimes de competência do tribunal do júri, o princípio da presunção de inocência seja encolhido do trânsito em julgado da sentença condenatória para a decisão condenatória de primeiro grau.

Por fim, fincamos que o uso demasiado de prisões preventivas, bem como a execução antecipada de pena nos crimes dolosos contra a vida, não são mecanismos hábeis para reduzir o número de homicídios no nosso país.

[1] Para um desenvolvimento aprofundado das correntes adiante sintetizadas, vide ZAFFARONI, Eugenio Rául; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Derecho Penal: parte general. Buenos Aires: Ediar, 2002, p. 168 e ss;

[2] MINAGÉ, Thiago M.; ASSAD, Thaíse Mattar. Prisão preventiva e o procedimento do júri após a Lei 13.964/2019. In: SAMPAIO, Denis (org.). Manual do Tribunal do Júri: a reserva democrática da justiça brasileira. 1. ed. Florianópolis: E-mais, 2021, p. 365

[3] Nesse sentido, dentre outros: STJ, AgRg no HC 763.981/MS, relator ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 06/03/2023, DJe 10/03/2023; STF, HC 226.259/PA, relator ministro Gilmar Mendes, decisão monocrática em 19/06/2023, DJe 20/06/2023; STF, RHC 213.075 AgR/SC, Primeira Turma, relator ministro Cármen Lúcia, DJe 25.5.2022.

[4] DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre os Sujeitos Processuais no Código de Processo Penal, In: Jornadas de Direito Processual Penal: O Novo Código de Processo Penal. Coimbra: Livraria Almedina, 1995, p.27.

[5] STRECK, Lenio Luiz. O STF, a prisão no júri e o voto equivocado do ministro Luís Roberto Barroso. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-jul-03/lenio-streck-stf-prisao-juri-voto-equivocado-ministro-barroso, acesso em 15/09/2023.

[6] Eis o conteúdo: “viola a cláusula de reserva de plenário a decisão de órgão fracionário de tribunal que, embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.

[7] Expressão cunhada por Lenio Luiz Streck.

Referências

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