Callegari: Atividades cotidianas e lavagem de dinheiro
O artigo aborda a complexidade da imputação nos crimes de lavagem de dinheiro, considerando atividades cotidianas que, embora possam parecer relacionadas, não necessariamente configuram participação criminal. O texto discute a falta de consenso na doutrina sobre como desvincular atos neutros de crimes, defendendo que profissionais que operam dentro de suas funções normais não devem ser penalizados apenas por interações que podem, indiretamente, beneficiar atividades delitivas. Por fim, enfatiza a necessidade de uma compreensão rigorosa das teorias de imputação objetiva para uma correta aplicação da lei penal.
Artigo no Conjur
O problema atual de imputação nos delitos de lavagem de dinheiro tem se relacionado às pessoas que desenvolvem trabalhos que, em tese, favorecem a atividade do lavador, ao passo que se distanciam dela em face da atividade exercida. Essas atividades normalmente são denominadas pela doutrina de cotidianas, condutas standard ou atos neutros, isto é, que são desenvolvidos dentro do marco normal da vida do sujeito e, por isso, não estão vinculados à atividade fim (ato criminoso).
É certo que tampouco há um acordo doutrinário sobre o tema, pois não há conclusões sedimentadas dentro da teoria do delito acerca da localização dessas atividades. Dito de outro modo, não se desenvolveu de maneira sistemática a localização e a compreensão da exclusão desses atos realizados por profissionais que podem de alguma maneira “favorecer” o delito de lavagem de dinheiro.
As teses até agora desenvolvidas encontram-se dentro da tipicidade (adequação social), em uma visão clássica, ou dentro da teoria da imputação objetiva (risco permitido ou proibição de regresso). Também já nos manifestamos afirmando a existência de uma restrição própria dentro dos conceitos dogmáticos do concurso de pessoas [1]. Todas essas teses podem ser utilizadas sem maiores dificuldades para a exclusão de favorecimentos de atividades que, em tese, desembocam na lavagem de capitais.
Embora doutrinariamente pareça de fácil compreensão, o que se tem verificado é uma posição contrária, ou seja, a admissão de acusações em detrimento de pessoas que de alguma forma se vincularam com lavador de dinheiro nas atividades quotidianas de trabalho (atos neutros ou condutas standard). O mero conhecimento ou prestação de atividade laboral para o lavador de dinheiro tem servido como sustentação jurídica para a imputação criminal a título de participação daquele que realiza uma atividade neutra.
Ocorre que a simples prestação de serviço de um profissional que “favoreça” o lavador não pode ainda ser vista como participação criminal, principalmente nos casos em que dita prestação se encontre dentro dos casos de risco permitido (atividades regulamentadas), ou seja, não façam parte daquelas atividades listadas como juridicamente proibidas.
Como exemplo desses casos, há denúncias criminais no Brasil abarcando a atividade de corretores de imóveis, agentes de bolsa de valores, vendedores de automóveis e, em alguns casos (decisões na Alemanha e na Espanha), incluindo a atividade de advogados como possíveis envolvidos nas atividades de lavagem de dinheiro. As decisões desconsideram as atividades neutras — ao menos em nossa jurisprudência —, fato que não ocorre nas decisões do exterior, que já reconheceram a impossibilidade de vinculação de determinadas atividades profissionais com o lavador de capitais.
Para limitar a responsabilidade criminal de profissionais que exercem suas atividades dentro de seu marco de trabalho, começaremos pela instituição da proibição de regresso, desenvolvida por Jakbos como limite da participação criminal [2]. A proibição de regresso ocupa o primeiro nível da teoria da imputação objetiva, correspondendo-lhe a função de fixar qual comportamento se manteve dentro do rol (papel) e qual comportamento infringiu a norma.
Há uma frase de Jakobs que, já de início, limita a responsabilidade criminal: “Nem tudo é assunto de todos”. Com essa afirmação, Jakobs pretende enquadrar de forma sistemática a teoria da participação na imputação objetiva, apresentando a teoria da participação como o reverso da participação punível [3].
Assim, para Jakobs, a proibição de regresso refere-se àqueles casos em que um comportamento que favorece a prática de um delito por parte de outro sujeito não pertence, em seu significado objetivo, a esse delito, quer dizer, que pode ser “distanciado” dele. Ocorre quando o sujeito que realiza a atividade facilitadora do comportamento delitivo não aceita como algo comum o delito cometido [4], ou, dito de outro modo, quem se comporta de um modo socialmente adequado não responde pelo giro nocivo que o outro dá a um acontecimento [5].
Como o trabalho não se dedica exclusivamente a essa instituição dogmática, deixaremos aqui pontuado que, dentro do marco da teoria da imputação objetiva, é possível trabalhar com a exclusão da responsabilidade criminal das atividades quotidianas de profissionais que desenvolvem as suas atividades, ainda que de certo modo possam “favorecer” uma atividade delitiva [6].
A título de exemplo: o corretor de imóveis que participa de uma transação imobiliária não tem que se preocupar se o comprador registrará dita propriedade ou a utilizará em outro negócio. Não faz parte do seu papel esse controle, e se o comprador tem como objetivo mascarar valores obtidos de forma ilícita (lavagem de dinheiro), tal comportamento não pode abarcar o do corretor de imóveis. Não faz parte do papel do corretor o controle do que será feito com os bens adquiridos, existe uma limitação da participação criminal.
De outro lado, também se pode trabalhar com a teoria das atividades neutras ou standard, que ocorrem quando a conduta do agente se insere na realização daquelas atividades que, em princípio, são oferecidas a qualquer cliente que as solicite, denominando-se negócios ou condutas padrão [7].
Assim, um comportamento quotidiano não é punível como participação, ainda quando supunha uma contribuição fática à realização de um determinado delito, quando for possível afirmar que dito comportamento fica plenamente coberto pelo rol social lícito em que se insere, é dizer, que supõe um simples ato neutro ínsito em dito rol [8]. Esse papel está dentro das atividades profissionais desenvolvidas quotidianamente e não pode ser visto como favorecimento à atividade criminal.
O analista penal não entrará sequer na valoração acerca do “conhecimento” daquele que realiza a atividade de estar intervindo — instrumentalizado — em um ilícito alheio, ou se dito “conhecimento” não houve, mas deveria ter ocorrido — com uma mínima diligência — etc., porque nesses casos, uma vez mais, não existe tipicidade objetiva por ausência de risco juridicamente desaprovado, de tal modo que não é necessário analisar uma pretendida tipicidade do comportamento [9].
Também deve ser analisado que tipo de conexão há entre a atividade neutra e o lavador de capitais. De acordo com isso, a conexão da ação inicialmente neutra com a realização de um delito realizado por outro é requisito necessário, em que pese seja insuficiente para afirmar a tipicidade da conduta. É pressuposto da tipicidade, mas não é elemento que decide a relevância penal da conduta. Somente a concorrência de especiais circunstâncias que permitam concluir pela existência de forma clara e unívoca de uma especial relação de sentido delitivo entre a conduta inicialmente neutra e o delito pode modificar o caráter neutro da conduta e convertê-la em típica [10].
De acordo com o exposto, não é qualquer “colaboração” de uma atividade profissional que “favoreça” a atividade de lavagem de dinheiro que pode ser justificada como típica. O dolo ou o mero conhecimento não são suficientes para determinar a relevância penal da conduta, mesmo quando os conhecimentos especiais do autor devam ser considerados para a determinação da tipicidade da concreta conduta analisada [11].
Como afirmamos no início deste trabalho, dentro do marco da tipicidade objetiva é que se resolve o problema das atividades neutras ou quotidianas com relação ao delito de lavagem de dinheiro. A questão da neutralidade das condutas e sua relevância penal devem ser resolvidas no primeiro nível da teoria da imputação objetiva, ou seja, na imputação do comportamento.
Utilizando-se corretamente desses critérios da teoria da imputação objetiva, limita-se de forma correta determinados comportamentos que aparentam um caráter delitivo, porém, que se restringem às prestações quotidianas de atividades profissionais.
Não se pode alargar a tipicidade prevista na lei de lavagem, e o mero conhecimento não justifica a tipicidade de atividades neutras. A devida compreensão desses institutos facilita o recorte da participação criminal e a justa adequação das condutas ao caso concreto.
[1] CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Manole, 2004, pp. 118 e ss.
[2] JAKOBS, Gunther. Fundamentos do Direito Penal. Tradução André Luis Callegari. São Paulo: RT, 2000, p. 72 e ss.
[3] PEÑARADA RAMOS, Enrique; SUÁREZ GONZÁLES, Carlos; CANCIO MELIÁ, Manuel. Um Novo Sistema do Direito Penal. Considerações sobre a teoria de Gunther Jakobs. Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. São Paulo: Manole, 2003, p. 90.
[4] Idem, p. 91.
[5] JAKOBS, Gunther. Estudios de Derecho Penal. Traducción de Enrique Peñarada Ramos, Carlos J. Suárez González, Manuel Cancio Meliá. Madrid: Civitas, 1997, p. 218.
[6] Com mais detalhes, CARO JOHN, José Antonio. La imputación objetiva en la participación delictiva. Lima: Grijley, 2003, pp. 73 e ss.; JAKOBS, Gunther. A Imputação Objetiva no Direito Penal. 3ª. Ed., tradução de André Luís Callegari. São Paulo: RT, 2010, pp. 55 e ss.; FEIJÓO SÁNCHEZ, Bernardo. Límites de la participación criminal. Existe una “prohibición de regreso” como limite general del tipo en derecho penal? Granada: Comares, 1999, pp. 17 e ss.; CALLEGARI, André Luís. Teoria Geral do Delito e da Imputação Objetiva. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2009, pp. 77 e ss.
[7] CALLEGARI, André Luís. Lavagem de Dinheiro. São Paulo: Manole, 2004, p 118 e ss. Com detalhes, RAGUÉS I VALLÉS, Ramon. Blanqueo de capitales y negócios standard. Revista Ibero-americana de Ciencias Penais, Porto Alegre, ano 3, n° 7, p. 163-164, set/dez 2002; LANDA GOROSTIZA, Jon-Mirena. La complicidad delictiva en la actividad laboral “cotidiana”. Granada, Espanha: Comares Editorial, 2002, pp. 219-220.
[8] GÓMEZ-TRELLES, Javier Sánchez-Vera. Lavado de activos: critérios de imputación por la actuación de profesionales (notários, empleados de actividades financieras, etc.). em El sistema penal normativista. Bogotá: Universidad Externado de Colombia, 2008, p. 547.
[9] Idem, p. 548.
[10] PÉREZ MANZANO, Mercedes. Neutralidad delictiva y blanqueo de capitals: el ejercicio de la abocacía y la tipiciad del delito de blanqueo de capitales. Política criminal y blanqueo de capitales. Marcial Pons: Madrid, 2009, p. 174.
[11] Idem, p. 173.
Referências
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