Artigos Conjur – Opinião: a volta do processo penal fast food e da condenação 4.0

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Opinião: a volta do processo penal fast food e da condenação 4.0

O artigo aborda de forma crítica a rápida tramitação de processos penais e a concessão de condenações imediatas, problematizando a relação com o princípio da legalidade e os direitos fundamentais dos réus. Os autores, Eduardo Januário Newton e Jorge Bheron Rocha, questionam a adequação de uma justiça que prioriza a velocidade em detrimento de garantias processuais, evidenciando os riscos de uma prática que pode se tornar comum no sistema penal brasileiro. Eles enfatizam que a verdadeira inovação deve respeitar a lei e os direitos dos indivíduos, ao invés de promover decisões apressadas.

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No curso das comemorações do 50º aniversário da ida do homem à Lua e das promessas de uma nova empreitada espacial que se voltará para Marte, a comunidade jurídica se viu às voltas com a notícia do processo penal a jato e uma condenação à velocidade da luz.

Segundo divulgado na página eletrônica do Tribunal de Justiça de Goiás —clique aqui, em 15 de julho de 2019, duas pessoas levadas à apresentação perante a autoridade judicial, tal como determina as normas convencionais que regem a audiência de custódia, saíram do prédio forense com uma condenação por tráfico privilegiado e uma desclassificação.

A hipervelocidade processual, em um primeiro momento, pode até encantar um incauto, com o discurso sedutor de combate à impunidade, economia processual, economia aos cofres púbicos e, ainda, vantagens ao condenado; porém, o objetivo deste texto é se posicionar criticamente face a essa verdadeira teratologia jurídica.

O pequeno detalhe esquecido nesta história é o princípio da legalidade. A partir de uma simples leitura do artigo 8º, § 1º,da Resolução 213/2015 do Conselho Nacional de Justiça — que disciplina as audiências de custódia a partir de decisão sede de controle abstrato de constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal, — verifica-se os limites dos pedidos que podem ser apresentados pelo Ministério Público e pela defesa, em que não consta a possibilidade de qualquer uma das partes postular pelo julgamento do caso. Ora, se o magistrado não pode atuar de ofício, não existe permissivo legal para a atuação judicial nos moldes do noticiado pelo tribunal goiano. Aliás, a resistência na efetivação das audiências de custódia em todo o país e, pior, na própria obediência ao disciplinamento elaborado pelo CNJ, demonstra a corrosão do respeito às fórmulas legais.

É oportuno frisar que esse verdadeiro desapego ao princípio da legalidade, uma conquista da modernidade que é ignorada em solo brasileiro e permite que algumas leis sejam somente “para inglês ver”, já foi denunciada exaustivamente no plano doutrinário e não deve ser menosprezada: “no Brasil, defender a legalidade constitucional, hoje, é uma atitude revolucionária” [1].

Aliás, a relativização das normas processuais é uma predileção de alguns juízes, na forma “usual” da instrumentalidade das formas e da convalidação de eventuais nulidades sob o argumento de que não se demonstrou a ocorrência de prejuízo às partes [2]. Agora a relativização ocorre por meio de “acordo” entre as partes, claro, não é bom esquecer que o defensor precisa colaborar com o juízo.

Esse verdadeiro drible à legalidade adquire ares mais preocupantes quando se constata a verdadeira existência de um “salvo conduto” conferido por alguns magistrados para esse comportamento decisório e que se encontra externado em enunciado 29 do Fórum Nacional de Juízes Criminais:

“A audiência de custódia poderá concentrar os atos de oferecimento e recebimento da denúncia, citação, resposta à acusação, suspensão condicional do processo e instrução e julgamento.”

A existência desse enunciado, por si só, é simbólica, pois demonstra a incapacidade de determinado grupo de agentes políticos do Estado a respeitar a legalidade. A sua legitimidade é similar de moção aprovada por um eventual Fórum Nacional dos Guardas de Trânsito que decidisse pela abolição da obrigatoriedade do cinto de segurança, isto é, zero. Aliás, este enunciado é conhecido como “Judge Dredd” ou Fator Stallone!

Por qual razão os juízos pessoais de um conjunto de juízes reunidos em fórum para elaborar enunciados pode valer mais do que a Constituição e o Código de Processo Penal? Ou até mesmo valer mais do que o CNJ? Mudou a relação entre os Poderes? Agora é “todo o poder emana de fóruns de enunciados?”

As nossas reflexivas críticas não cessam aqui. O caráter instantâneo na prestação da tutela jurisdicional é, sem sombra de dúvida, permeado por uma lógica econômica. A mais que célere decisão judicial proferida em Goiânia, para alguns, se justificaria na economia que causou aos combalidos cofres públicos. Mas, em se tratando de liberdade ambulatória, é possível realizar qualquer associação com os custos, ainda mais para a limitação de garantias fundamentais? Somente quem conscientemente, ou não, defende a possibilidade do arruinamento do direito é que concordaria com a atuação do discurso econômico, uma grave espécie de predador, ou, ainda, uma espécie contemporânea de ordálias ou “prova do demônio”, em que o réu está submetido às probabilidades (aqui). E, veja-se, o problema pode nem ser, na especificidade, o caso de Goiânia. O problema é a possibilidade disso virar prática geral no âmbito da justiça criminal.

Ainda no âmbito dessa crítica ao encantamento promovido pelo discurso de economia de custos, resta perquirir qual seria o valor da declaração do Supremo Tribunal Federal sobre a falência estrutural do sistema prisional. Reconhecer o Estado de Coisas Inconstitucional seria algo somente simbólico?

A decisão que ora examinamos representa ainda o arcaísmo que marca toda a fase probatória do processo penal brasileiro. Por maiores que sejam os avanços tecnológicos observados no nosso cotidiano, a apuração da responsabilidade criminal continua a se contentar com (um)a precária prova testemunhal — que, no caso em tela, sequer existiu, já que não foi produzida sob o crivo do contraditório. A psicologia já avançou na demonstração do fenômeno das falsas memórias e, ainda assim, a grande aposta processual persiste nesse tipo de prova mesmo com os incontáveis casos de erros judiciais e que se voltam principalmente para os extratos sociais que somente conhecem o Estado Policial. São “tempos difíceis de descumprimento de leis, códigos e da Constituição e do marasmo da dogmática jurídica que se insiste, regra geral, em repetir catilinárias que tecem loas às velhas posturas protagonistas” (aqui).

E já que se abordou a questão da seletividade, não se pode menosprezar o fato de que o artigo 8º, § 5º, Resolução 213, Conselho Nacional de Justiça permite o arquivamento do inquérito policial, o que, no entanto, jamais tivemos conhecimento de aplicação por qualquer magistrado, a começar por quem optou pela decisão proferida na hipervelocidade. É que a postura “proativa” ou se “inovação” da ordem jurídica, se dá, à quase unanimidade, contra o indiciado, por exemplo, com a decisão do juiz pela prisão preventiva de ofício, mesmo diante da manifestação do Ministério Público pela liberdade provisória, com a argumentação de que “conversão” é diferente de “decretação”. Imagine-se como uma pessoa presa vá fazer essa diferença.

Enfim, a decisão judicial proferida pelo Juízo da 10ª Vara Criminal da comarca de Goiânia é inquietante. A crítica que apresentamos foi a forma escolhida para marcarmos posição contrária a essa forma de prestação jurisdicional mais que veloz. Ainda que se questione o “tempo da justiça”, a lei disciplina que é injusta uma imposição antecipada da pena, devendo-se aguardar o desenvolvimento do devido processo legal e o (velho) trânsito em julgado; ou aplicação tardia da pena, razão de existir da prescrição.

A atração pela velocidade deve se dirigir às novas jornadas espaciais, pois no processo penal o que vale é a legalidade e o irrestrito respeito aos direitos e garantias fundamentais. De novo: liberdade não rima com velocidade e atropelos legais-constitucionais.

Numa palavra final: impressiona o modo como é feita a defesa nesse tipo de caso. Isso dá tese de doutorado.

1 ROCHA, J. BHERON ; ARBS, P. S. ; DIOGENES, Raphaela Araújo. A colaboração premiada como negócio jurídico processual deve respeitar as regras do estado democrático de direito. 2017.

2 STRECK, Lenio. Para Bolsonaro e alto clero jurídico, há direito demais no Brasil! Disponível em: https://www.conjur.com.br/2019-jul-23/bolsonaro-alto-clero-juridico-direitos-demais-brasil

Referências

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