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Opinião: Sobre a suspensão da liminar em HC no caso da Boate Kiss

O artigo aborda a crítica à decisão do Supremo Tribunal Federal que suspendeu a liminar concedida em Habeas Corpus no caso da Boate Kiss, destacando como essa ação reflete um “terraplanismo penal” que prioriza o populismo em detrimento da dogmática penal. Os autores argumentam que tal decisão compromete as garantias individuais do réu e a eficácia do Habeas Corpus, colocando em risco a justiça e a evolução científica do direito penal. Além disso, a análise ressalta a necessidade de respeitar as regras e princípios constitucionais na condução do processo penal.

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O escopo do presente artigo é analisar, em breves linhas, a incidência nefasta do terraplanismo na dogmática penal, única explicação plausível para a decisão monocrática do presidente do Supremo Tribunal, o ministro Luiz Fux, que determinou a suspensão dos efeitos de decisão liminar concedida pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em Habeas Corpus preventivo impetrado pela defesa de um dos réus condenados no citado julgamento, em cuja sentença o juiz presidente determinou o imediato cumprimento das penas impostas. Não se tem por objetivo analisar o mérito da decisão tomada pelos jurados no caso da Boate Kiss, embora se pontue a dificuldade jurídica em enquadrar a ação dos acusados na categoria do dolo eventual no lugar de se reconhecer a culpa consciente, não por parte dos jurados, mas por quem tinha a responsabilidade de manejar a acusação e também por quem deveria aplicar o filtro de admissibilidade da causa no júri. No caso dos atores jurídicos, tal escolha parece seguir muitas outras que visam aos fins do populismo penal em detrimento do plano científico dogmático penal E, assim, mais uma vez, lamentavelmente tem-se a espetacularização do processo penal [1].

Por um lado, a soberania dos veredictos não se traduz em intangibilidade das decisões dos jurados, pois o CPP (artigo 593, inciso III) regulamenta as hipóteses em que as partes podem recorrer das decisões plenárias, desconstituindo-as: 1) de forma a anulá-las e determinar que outro júri seja realizado em seu lugar; ou 2) de forma a substituí-las, caso em que o próprio tribunal profere uma decisão. O mesmo raciocínio se aplica ao manejo da revisão criminal, pois “a condenação penal definitiva imposta pelo Júri é passível, também ela, de desconstituição mediante revisão criminal, não lhe sendo oponível a cláusula constitucional da soberania do veredicto do Conselho de Sentença” (STF — HC 70193).

Por outro lado, forçoso é reconhecer que a soberania dos veredictos foi instituída como direito e garantia individual do cidadão, e não como ônus do acusado, e deve ser lida em conjunto com o princípio que assegura ao réu o status de “inocente” até o trânsito em julgado da sentença condenatória. Exatamente com base neste último princípio, o STF, no dia 17/11/2019, no julgamento das ADCs 43,44 e 54 (relator ministro Marco Aurélio), manifestou-se pela impossibilidade de execução provisória da pena. Todavia, ainda em dezembro de 2019, em gritante violação ao citado princípio constitucional e convencional, foi aprovado o pacote “anticrime” que autorizou, por intermédio da redação conferida ao artigo 492, inciso I, “e”, do CPP [2], o imediato cumprimento de pena, em caso de condenação igual ou superior a 15 anos de reclusão pelo Tribunal do Júri.

Foi justamente por imaginar a possibilidade de condenação superior a 15 anos no caso da Boate Kiss que o advogado de Elissandro Spohr ingressou com Habeas Corpus preventivo para garantir ao acusado a possibilidade de recorrer em liberdade. O HC foi deferido pelo desembargador José Manuel Martinez Lucas, integrante da 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do estado do Rio Grande do Sul, e o juiz-presidente do júri, após o decreto condenatório, estendeu os efeitos do remédio constitucional aos demais acusados.

Como no processo penal brasileiro mais vale a opinião pública do que as regras da nossa Magna Carta, o representante do Ministério Público — fiscal do cumprimento das leis constitucionais e, pelo visto, também das inconstitucionais — ingressou com um pedido (juridicamente impossível) de suspensão da liminar da decisão pelo desembargador do TJ-RS.

Sustenta-se que se trata de um pedido juridicamente impossível porque, como já se escreveu sobre o tema [3] o procedimento que autoriza a suspensão de medidas liminares encontra guarida apenas na esfera cível, consoante se extrai das normas previstas no artigo 12, §1º, Lei 7.347/85, artigo 4º, Lei 8.437/92, artigo 16, Lei 9.407/97 e artigo 15, Lei 12.016/09. Ademais, não se pode admitir analogia para criar hipótese para interpor recurso contra o acusado.

Sobre a impossibilidade de suspensão de liminar em sede de Habeas Corpus, vale trazer à baila precedente do Superior Tribunal de Justiça, nos autos do HC nº 568.752/RJ, decisão monocrática proferida pelo ministro Nefi Cordeiro em 26 de março de 2020.

Ademais, é mais legítimo ao órgão constitucionalmente encarregado da fiscalização do ordenamento jurídico que recorra dentro das hipóteses legalmente previstas — como aguardar o julgamento definitivo do HC pelo TJ-RS ou interpor um agravo regimental contra a decisão monocrática de concessão da liminar —, no lugar de buscar uma supressão de instância e a utilização de sucedâneo recursal — práticas que em seus pareceres corriqueiramente aponta como ilegais quando supostamente realizadas pela defesa.

O pedido de suspensão de liminar (SL 1.504) acima referido, contudo, foi deferido cautelarmente pelo ministro presidente do STF, com base no artigo 4° da Lei 8.437/1992, que, se de fato fosse lido e levado a sério, seria na verdade um óbice ao conhecimento da suspensão, pois teria de ser dirigida ao “presidente do tribunal, ao qual couber o conhecimento do respectivo recurso”? Qual recurso caberia contra a decisão liminar do desembargador relator de Habeas Corpus no Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul diretamente para o Supremo Tribunal Federal? Só se for em algum novíssimo artigo do regimento interno do STF? Ou no Código Fux de Processo Penal?

Colacionamos, por oportuno, raciocínio já desenvolvido em artigo referente à análise da SL 1.395: “Colocar a suspensão de liminar em Habeas Corpus como instrumento político-processual à disposição do Ministério Público faz pender ainda mais para o Estado-acusação o prato da já desequilibrada balança da Justiça” [4] .

Vale ainda frisar que admitir a utilização da suspensão de liminar em sede de Habeas Corpus torna questionável até mesmo a eficácia dessa ação constitucional garantidora do direito fundamental à liberdade e implica relegar ao ostracismo toda a principiologia do processo penal.

Aliás, a prosperar esse entendimento enviesado que permite a aplicação de instituto completamente estranho ao processo penal, há de se comemorar o fato que essa “brilhante” tese não surgiu no alvorecer do período republicano, pois, se isso tivesse acontecido, simplesmente não seria possível ter se desenvolvido a chamada doutrina brasileira do Habeas Corpus. Outrora, a criatividade serviu para prestigiar as liberdades fundamentais; hodiernamente, serve para saciar a irracional vontade de punir a qualquer custo. Mas não é só! Ainda bem que esse expediente não foi pensado no curso da ditadura civil-militar inaugurada no dia 1º de abril de 1964, pois, dessa forma, o Supremo Tribunal Federal, nos limites que lhe foram possíveis, pode tentar conter o arbítrio, mesmo que isso tenha representado a aposentadoria compulsória de três de seus integrantes.

Consideramos a condenação dos acusados no crime de homicídio doloso (forma consumada e tentada), bem como a execução provisória das penas uma vitória de Pirro, pois configuram, a bem da verdade, a substituição de uma dogmática jurídica por um populismo penal, o que configura um grave retrocesso em um Estado democrático de Direito.

Como leciona Zaffaroni: “É um erro grosseiro acreditar que o chamado discurso das garantias é um luxo ao qual se pode renunciar nos tempos de crise” [5], a ciência penal e suas categorias dogmáticas — sujeita a falhas e passível de evolução, é verdade, como ciência refutável — são uma vacina contra o terraplanismo penal, esse vírus anticientífico e negacionista. Nesse cenário tenebroso, nada mais apropriado afirmarmos que a defesa do Habeas Corpus configura atividade heroica. Resistamos!

[1] CASARA, Rubens RR: Processo Penal do Espetáculo: e outros ensaios/Rubens RR Casara.- 2ed. — Florianópolis: Tirant Lo Blanch, 2018. Também ROCHA, Jorge Bheron. ROCHA, J. BHERON. O Processo Penal do Espetáculo: Interceptações Telefônicas, Conduções Coercitivas e Impeachment. In: UCHOA, Marcelo Ribeiro; UCHOA, Inocêncio Rodrigues; GOMES, Antônio José de Sousa; ALVES, Letícia. (Org.). O Ceará e a Resistência ao Golpe de 2016. 1ed. Bauru: Canal 6, 2016, v. 1, p. 93

[2] NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. Réquiem ao Habeas Corpus no Brasil: o caso da Suspensão de Liminar nº 1.395. CONJUR. DISPONÍVEL EM . Acesso em 15.12.2021

[3] Artigo 492. Em seguida, o presidente proferirá sentença que: I — no caso de condenação: e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;(Redação dada pela Lei nº 13.964, de 2019)

[4] NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. Réquiem ao Habeas Corpus no Brasil: o caso da Suspensão da Liminar nº1.395. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-out-18/opiniao-requiem-habeas-corpus-brasil. Acesso em: 14/12/20121.

[5] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3.ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.187

Referências

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