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Em Pernambuco, as audiências de custódia são ‘para inglês ver’?

O artigo aborda a implementação das audiências de custódia em Pernambuco, analisando sua eficácia e simbolismo em contraste com a situação no Rio de Janeiro. Os autores criticam a abordagem do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que limita essas audiências à verificação de maus-tratos, deslegitimando funções fundamentais desse mecanismo, essencial para a proteção dos direitos humanos e a legalidade das prisões. O texto conclui que, no contexto atual, essas audiências tornam-se meramente formais, sem atender ao seu propósito de garantia de direitos.

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Na data de 12/12/2020, nos autos da Reclamação Constitucional nº 29.303, o ministro Edson Fachin determinou a realização de audiência de custódia para todas as modalidades de prisão [1]; a princípio, a decisão valia para o estado do Rio de Janeiro, mas depois a determinação foi estendida para o estado de Pernambuco, em razão do deferimento de pedido de extensão feito pela Defensoria Pública na referida decisão liminar proferida.

O agir adotado pelo Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco é constituído de vários simbolismos. Ainda que de forma singela, essa complexidade será objeto de algumas considerações nas linhas que se seguem.

Juntamente com São Paulo, a cultura jurídica brasileira tem em Pernambuco — inicialmente em Olinda e depois em Recife — o seu berço, pois foram nesses locais que em um distante (1827) dia 11 de agosto instalaram-se os cursos jurídicos em solo pátrio. As elites não mais necessitavam enviar seus filhos para o Velho Continente, principalmente para Coimbra, para a formação dos futuros personagens políticos e dos quadros da burocracia. A relevância da Escola do Direito de Recife veio a ser objeto das seguintes considerações de Guilherme Assis de Almeida e Paula Bajer Fernandes Martins da Costa:

“Em Recife, porém, passa-se a fazer teoria. É lá que se cria, na Faculdade de Direito, movimento para afastar o Direito da religião e da metafísica. Sílvio Romero foi um dos que colaboraram para a crença de que o Direito é ciência, tendo integrado a famosa Escola do Recife, criada por Tobias Barreto. A Escola foi estimulada por ideias positivistas. Clóvis Beviláqua, autor definitivo do Código Civil, estatuto que significou a efetiva emancipação jurídica brasileira, também integrou a Escola de Recife” [2].

Dessa forma, a alteração do ato infralegal naquela histórica localidade é relevante, significativa, portadora de um simbolismo enorme em um cenário de batalha para a implementação das audiências de custódia no Brasil.

Há, inclusive, de se apontar para o fato de que o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o órgão responsável pela existência da Reclamação Constitucional nº 29.303, até o presente momento, não ter adotado qualquer alteração em seus atos normativos relativos ao tema audiência de custódia. Ao que parece, sob o olhar displicente de instituições públicas com assento constitucional, o Poder Judiciário fluminense acredita que o far niente implicará no esquecimento do contínuo descumprimento ao que veio a ser decidido pelo STF na MC da ADPF nº 347.

Ao se retomar os olhares para o labor efetivado pelo TJ-PE, não se pode restringir a análise a um tom de louvor ou de elogios, pois existem aspectos que demonstram um tímido avanço da Justiça estadual pernambucana diante das audiências de custódia.

Impende destacar a relevância da audiência de custódia para a prevenção e repressão à tortura. Esse dado é inegável e necessita ser articulado com o próprio processo histórico brasileiro. A tortura no Brasil não se iniciou com a ditadura civil-militar (1964-1985). Trata-se de fenômeno antigo, tal como indicado por Vanessa Chiari Gonçalves:

“(…) muito antes de os regimes militares serem instaurados no Brasil, a tortura de acusados, especialmente de delitos contra o patrimônio, já era prática corrente no âmbito das delegacias de polícia civil, o que afasta a hipótese de militarização ou contaminação dessas mesmas polícias pelos métodos violentos próprios de um estado de exceção ou de um regime autoritário declarado” [3].

Até mesmo sob um olhar de um brasilianista — R. S. Rose — a questão da tortura é abordada como anterior ao regime de força instituído no dia 1º de abril de 1964 e de como esse ato abjeto se relaciona com o desprezo dirigido a quem é objeto da persecução penal:

“Não se pode ignorar que os maus-tratos aos encarcerados têm uma história particular no Brasil. O país tem sido sempre um lugar onde a polícia não retira simplesmente os suspeitos das ruas para esperar o processo judicial. O ‘processo’ no Brasil tem significado, há muito tempo, o uso da força; a polícia amolece os suspeitos, usa quaisquer meios a seu dispor para obter informações, ou simplesmente inflige dor e sofrimento em um ritual machista e mórbido” [4].

Ao cumprir o decidido pelo STF, a Justiça estadual pernambucana manifesta o seu claro repúdio à tortura. Porém, isso não a exime da censura. A insuficiência, e eis o ponto da crítica assumida nesta reflexão, da atuação do TJ-PE reside no artigo 1º, §5º, Provimento nº 003/2016, na redação dada pelo Provimento nº 001/2021:

“As audiências de custódia, nos casos de prisões temporárias, preventivas, definitivas e nas recapturas, bem como na prisão civil, não têm por escopo aferir a presença dos requisitos da custódia cautelar ou mesmo substituí-la por outras medidas, sendo esta análise privativa do juízo da causa ou da execução, conforme o caso”.

Nesse momento, não se pode olvidar a própria história da audiência de custódia no ordenamento pátrio, isto é, esse instituto previsto em tratados internacionais (artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos e no art. 9.3 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, ambos ratificados pelo Brasil em 1992), somente veio a ser implementado em 2015, após o fracasso da reforma das medidas cautelares previstas no CPP e o crescimento exponencial da população carcerária. A impossibilidade de análise sobre o cabimento das cautelares, tal como vedado pelo TJ-PE, implicaria em uma pantomima judicial, a questão toda é que essa demonstração artística implica na restrição da liberdade ambulatória de alguém.

A Resolução nº 213 do Conselho Nacional de Justiça, mais especificamente no seu artigo 13, aponta para o juízo responsável pela realização das audiências de custódia nos casos em que o título prisional não é o flagrante. Essa lógica se mostra sábia, pois implica em maior responsabilização daquele que determina o encarceramento de uma pessoa. Se o estado de inocência é de difícil assimilação, quem sabe a imposição de dificuldades no cotidiano impeça a banalização do cárcere processual.

A fuga do modelo estabelecido pelo CNJ pode ser justificada por questões administrativas. Porém, isso não poderia legitimar, tal como realizado pelo TJ-PE, no esvaziamento de funções importantes da audiência de custódia.

Ainda no âmbito da competência, é de suma relevância que essa solução concebida pelo TJ-PE — e que não configuraria qualquer surpresa se outros Tribunais de Justiça a estabelecerem também — tem sua origem no verdadeiro limbo decisório que se encontra o juiz de garantias [5]. Eis o preço cobrado pelo obnubilado cenário em que ninguém sabe quando as ações diretas de inconstitucionalidade sobre o tema serão, enfim, pautadas.

Ora, limitar as custódias relativas às prisões preventivas, temporárias e definitivas apenas à verificação de maus tratos/tortura, como o fez o já referido Provimento nº 001/2021, significa relegar ao ostracismo uma outra missão do instituto, também muito importante: verificação da legalidade/necessidade da prisão. Mandados de prisão não recolhidos, mandados de prisão sem contemporaneidade, prisão de pessoas homônimas, mandados cumpridos durante o período noturno, pena indultada são apenas alguns exemplos de situações que não serão tuteladas pela normatização pernambucana.

Em razão da limitação espacial, mas nem por isso se despreza a temática, não será debatido nesse texto a questão da realização da audiência de custódia virtual estando o autuado nas dependências de uma delegacia de polícia. Sem sombra de dúvida, trata-se de uma teratologia que merece o repúdio de toda a comunidade jurídica.

Em uma realidade que sequer a realização de exame de corpo de delito prévio à realização da audiência de custódia é observada, o que, aliás, justificou o ajuizamento da Reclamação Constitucional n 43.833 [6], a limitação da audiência de custódia fixada pelo TJ-PE nos casos em que o aprisionamento se deu por força de mandados de prisão consegue até mesmo não atingir a única função que o ato serviria.

Com o intuito de responder o questionamento contido no título deste texto, é necessário afirmar que, no atual cenário pernambucano, as audiências de custódia são “para inglês ver”. A uma, porque, em se tratando de prisões preventivas, temporárias e definitivas, o Provimento nº 001/202 do Conselho da Magistratura do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco é explicito em afirmar que a legalidade/necessidade da prisão não será analisada pela autoridade judicial. A duas, porque menospreza a própria história do instituto no Brasil, isto é, mecanismo idôneo a impedir a política do grande encarceramento e que, por via de consequência, viola as normas convencionais que versam sobre direitos humanos.

Outrora, o abjeto comércio de escravos era tido como ilícito, pois o Império brasileiro havia subscrito acordo com a Inglaterra que vedava essa prática. A realidade apontava para o descumprimento do celebrado e diversos foram os africanos que se tornaram cativos para a economia agrária e para os afazeres domésticos das elites.

Não importa se Império ou República, não se pode mais tolerar comportamentos estatais que simplesmente neguem as convenções e tratados assumidos pelo país, sob pena de responsabilização nas cortes internacionais.

Cabe à defesa criminal — pública e privada — não se contentar com avanços parciais e tímidos, pois, ao se afastar da radicalização, estará legitimando a política do superencarceramento e violação sistemática dos direitos humanos.

[1] NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. Reclamação nº 29.303 e audiências de custódia: todos os presos importam! Revista Consultor Jurídico, 8 de dezembro de 2020. Disponível em: http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/informativoSTF/anexo/LEITURAS_EM_PAUTA/LeiturasemPauta_3_RCL29303.pdf. Acesso em: 14/02/20121.

[2] ALMEIDA, Guilherme Assis & COSTA, Paula Bajer Fernandes Martins. Sílvio Romero e o Direito. In: BITTAR, Eduardo C. B. (organizador). História do direito brasileiro. Leituras da ordem jurídica nacional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2010. p. 36.

[3] GONÇALVES, Vanessa Chiari. Tortura e cultura policial no Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2014. p. 119.

[4] ROSE, R. S. O homem mais perigoso do país: biografia de Filinto Müller. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 107.

[5] ROCHA, Jorge Bheron; NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. O que o poeta de Xerém diria sobre o juiz de garantias? In Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/o-que-o-poeta-de-xerem-diria-sobre-o-juiz-de-garantias >. Acesso em 14/02/20121

[6] ROCHA, Jorge Bheron; NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves. ECCE HOMO: Reclação 43.833 e a integridade física e moral dos presos. In Empório do Direito. Disponível em < https://emporiododireito.com.br/leitura/ecce-homo-reclamacao-43-833-e-a-integridade-fisica-e-moral-dos-presos>. Acesso em 14/02/20121

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