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Julgamentos midiáticos pelo júri: a Double Jurisdiction

O artigo aborda os impactos dos julgamentos midiáticos, exemplificado pelo caso O.J. Simpson, no processo judicial, analisando como a construção de narrativas e personagens influencia a percepção da justiça. Discute-se a transformação do júri em uma arena pública onde a opinião popular e a mídia desempenham papéis críticos, resultando em uma “double jurisdiction” que pode distorcer a imparcialidade dos veredictos. Dessa forma, ressalta-se a necessidade de uma reflexão crítica sobre como crimes são apresentados e percebidos no contexto social e judicial.

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Julgamentos populares altamente midiáticos podem criar uma perspectiva de justiça diferente daquela esperada pela teoria jurídica tradicional, de modo que o fator social envolvido e a opinião pública podem transformar a sentença em um mecanismo de justiça social. Para apresentar uma história consistente e convincente, os defensores de ambos os lados contam com a criação de personagens jurídicos, uma entidade que carrega direitos e deveres da agenda jurídica [1] e substitui um indivíduo complexo e multifacetado por um personagem, uma figura do julgamento.

O caso O.J. Simpson, julgado em 1994 na Califórnia, é um exemplo perfeito da criação de personagens específicos que são usados para se adequar ao discurso e à narrativa das partes, o que cria duas versões extremamente diferentes do mesmo réu, uma como vítima inocente e outra como um monstro cruel. Os principais fatos apresentados pela promotoria [2] foram semelhantes às centenas de feminicídios que rotineiramente transbordam dos tribunais criminais, em que uma mulher é encontrada brutalmente assassinada vítima de violência doméstica pelo companheiro (no caso, ele foi formalmente acusado depois que os investigadores encontraram uma luva manchada de sangue em sua propriedade).

No entanto, o suspeito também era uma celebridade, um ator e um amado jogador de futebol americano, portanto, sua imagem pública não pôde ser distinguida das próprias acusações. Como explica Cotterill [3], para conquistar os jurados, a promotoria teve que desconstruir a imagem positiva de Simpson e depois reconstruí-lo como um duplo assassino [4].

No entanto, apesar das consequências reais advindas de uma decisão do júri baseada na seleção da história mais convincente apresentada, o resultado pode ser ainda mais desastroso quando o crime cometido chama a atenção do público e da mídia, devido à a criação de um julgamento-espetáculo e, consequentemente, uma double jurisprudence. Portanto, situações que causam revolta e comoção pública, quando levadas a julgamento, transformam a realidade dos fatos e provas em uma narrativa pública que internaliza o contexto social e a opinião pública do que um caso anônimo.

Paralelamente, no caso O.J. Simpson, a mídia teve tanta presença no tribunal que se tornou uma novela ao vivo, com o uso intenso de técnicas linguísticas que poderiam causar uma reação emocional no público. Nas palavras da própria promotora do caso, Marcia Clark: “Quando o julgamento começou, todas as redes estavam recebendo essas cartas de ódio porque as novelas das pessoas estavam sendo interrompidas para o julgamento de Simpson. Mas então o que aconteceu foi que as pessoas que gostavam de novelas ficaram viciadas no julgamento de Simpson. E eles ficaram muito chateados quando o julgamento de Simpson acabou, e as pessoas vinham até mim na rua e diziam: ‘Deus, eu amei seu show’” [8].

É naturalmente esperado que qualquer conduta ilegal violenta tenha o poder de chamar a atenção do público, o que é ainda mais provável quando se trata de homicídios. No entanto, com repercussões, as narrativas e os personagens mostrados pelos advogados ganham vida própria. A consequência é que a imparcialidade do tribunal pode ser inclinada para satisfazer um pedido público de justiça e reparação [9].

Em julgamentos de júri altamente comentados e transmitidos, a persuasão do público é tão importante quanto o júri, e por isso a apresentação de provas e a linguagem utilizada se tornam tão valiosas quanto as provas e o próprio testemunho. A função da linguagem ultrapassa a descrição dos fatos, convertendo-se ela própria parte do julgamento como forma de prova fática para o público. Como resultado, o lado vencedor seria aquele que conseguisse convencer o público da existência de uma reasonable doubt através de uma melhor apresentação forense.

Se objetivamos alcançar algo mais próximo da justiça por meio do direito devemos questionar como crimes e julgamentos são retratados e tratados pelo público e como essa visão entra no tribunal. Através das lentes de uma câmera e do discurso de um repórter é fácil e conveniente nos distanciarmos das pessoas em um tribunal, principalmente quando elas são objetificadas e categorizadas como “criminosos”, “monstros”, “inocentes” e “vítimas”, não como indivíduos.

Não há dúvida de que os indivíduos condenados por crimes, desde que respeitado o devido processo legal e as garantias constitucionais do sistema de justiça, devem enfrentar as consequências legais, apesar das repercussões do julgamento. Independentemente de suas falhas, os tribunais ainda podem trazer alívio e conclusão para as vítimas e suas famílias. No entanto, a justiça só pode ser alcançada quando os personagens envolvidos são julgados nos exatos contornos dos fatos cometidos, não por quem são ou pela imagem (des)construída.

[1] “At the same time, these people actually become ‘characters’ in narrated stories, legal personae who speak to us through reported speech. In this process, they are stripped of some of the characteristics that they themselves might deem important to their personalities and selves and are objectified in a process that highlights features important to their construction as actors in a legal drama, as characters in legal stories.” MERTZ, Elizabeth. On Becoming a Legal Person: Identity and the Social Context of Legal Epistemology. In The Language of Law School. New York: Oxford University Press. 2007

[2] TOOBIN, Jeffrey. An Incendiary Defense. The New York Times, 1995. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/1994/07/25/an-incendiary-defense.

[3] COTTERILL, Janet. Language and Power in Court. Gordonsville: Palgrave Macmillan Limited. 1 ed. 2003.

[4] Esta desconstrução, normalmente realizada junto com os meios de comunicação, é o modus operandi da acusação em alguns casos midiáticos.

[5] ZORTHIAN, Julia. How the O.J. Simpson Verdict Changed the Way We All Watch TV. TIME, 2015. Disponível em: https://time.com/4059067/oj-simpson-verdict/

[6] “Vinte e um réus foram julgados entre 1945 e 1946 perante o Tribunal Militar Internacional, um tribunal que havia sido criado especificamente para a tarefa de julgar crimes de guerra. Entre eles estavam funcionários do partido nazista, oficiais militares de alto escalão, funcionários públicos, diplomatas e industriais – e todos serviram ao regime nazista.” HELLER, John. The Nuremberg Military Tribunals and the Origins of International Criminal Law. Oxford, Reino Unido: Oxford University Press, 2011.

[7] AZUERO-QUIJANO, Alejandra. Making the “World Spectacle Trial: Design as Forensic Practice at the Nuremberg Trials”. MIT Press Direct: Grey Room (82) 2021.

[8] ANOLIK, Lili. How O. J. Simpson Killed Popular Culture. Vanity Fair, 2014. Disponível em: https://www.vanityfair.com/style/society/2014/06/oj-simpson-trial-reality-tv-pop-culture

[9] Já discutimos algumas práticas, tendo o julgamento de O. J. Simpson como exemplo, no “Manual do Tribunal do Júri”: “O grande interesse da mídia a respeito de um determinado julgamento é sempre um complicador, pois, dependendo da forma como o assunto é explorado, o sensacionalismo pode impactar sobremaneira a imparcialidade do Conselho de Sentença e, a depender da notoriedade do caso, o desaforamento pode ser insuficiente para solucionar a questão”. PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. p. 321.

Referências

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