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O homem vitruviano e o processo penal: A anatomia da justiça acusatória

O artigo aborda a interpretação do “Homem Vitruviano” de Leonardo da Vinci como uma metáfora para a justiça no processo penal, ressaltando a importância do equilíbrio entre as garantias legais e a busca pela justiça. Os autores, Philipe Benoni Melo e Silva, expõem como a simetria e a proporção do desenho refletem a necessidade de um sistema acusatório devidamente estruturado, criticando desvio de funções no âmbito jurídico que comprometem a imparcialidade e a integridade do processo. Assim, propõem uma reflexão sobre a legitimação da justiça penal diante de um corpo processual disfuncional.

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Introdução

Leonardo da Vinci foi um dos artistas mais completos da história da humanidade. Sua influência não se limitou às artes visuais: adentrou na medicina, redesenhou a anatomia, desafiou os cânones da engenharia e antecipou, com séculos de antecedência, dilemas que ainda hoje espantam os especialistas. Mas caberia uma provocação: teria Da Vinci, também, influenciado o Direito?

A pergunta, à primeira vista, pode parecer exagerada. Mas ao analisarmos a obra “O Homem Vitruviano” – talvez a mais icônica de suas obras -, percebemos que nela se esconde muito mais do que um estudo de proporções. Há ali uma teoria do equilíbrio. Um manifesto visual sobre centro, simetria e harmonia entre o ideal e o concreto. E não seria exatamente essa a essência de um processo penal justo?

O presente artigo propõe uma interpretação do Homem Vitruviano sob a ótica do Direito Processual Penal – especialmente no contexto do sistema acusatório. Mais do que metáfora, trata-se de um esforço hermenêutico para demonstrar como a forma geométrica do desenho pode iluminar os contornos institucionais do processo penal: o círculo como expressão da justiça; o quadrado como símbolo da legalidade; e o corpo humano como metáfora da estrutura equilibrada das garantias fundamentais.

Em junho de 2025, ao julgar o RE 1.555.431/RS, o ministro Cristiano Zanin, do STF, concluiu que não haveria nulidade no fato de o juiz conduzir a audiência de instrução e julgamento na ausência do Ministério Público – ainda que, nesse contexto, tenha assumido a função instrutória-probatória típica da acusação. O problema, no entanto, é estrutural: quando o processo penal se afasta de sua anatomia acusatória, ele se transmuta em uma deformidade institucional – tão grotesca quanto um corpo com membros deslocados, desproporcionais e sem função constitucional legítima.

Este texto pretende expor essa disfunção e propor uma reflexão sobre o verdadeiro centro de gravidade da justiça penal: não a punição a qualquer custo, mas a harmonia institucional que evidencia, mais uma vez, que forma é garantia.

O círculo da justiça e o quadrado do rito

O Homem Vitruviano, desenhado por Leonardo da Vinci por volta de 1490, é baseado nos estudos do arquiteto romano Vitrúvio e representa a busca pelo equilíbrio perfeito entre o corpo humano, a geometria e o universo. Ao inscrever a figura humana dentro de um círculo e de um quadrado, a obra simboliza a harmonia entre razão e natureza, corpo e proporção1.

Na obra, o desenho de um homem repousa entre duas formas geométricas: o círculo e o quadrado. O círculo – podemos ter como a representação do eterno, do ideal, do divino – simbolizando o valor inalcançável da justiça substancial. Já o quadrado – com seus ângulos fixos e sua lógica cartesiana – representaria o espaço do rito, da norma, da forma legal.

Essa dicotomia é também a alma do processo penal: um instrumento formal (quadrado) que tem razão de ser quando aponta para a justiça (círculo). Um processo que, em nome de ideais “justos”, atropela as formas legais é uma utopia violenta. A virtude está no encontro das duas figuras – e, no processo penal, esse encontro se chama devido processo legal, com todas as suas coordenadas: contraditório, ampla defesa, presunção de inocência, sistema acusatório e imparcialidade judicial.

Na obra de Da Vinci, há dois centros: o umbigo, ponto focal do círculo, e a genitália, ponto central do quadrado. É a partir desses eixos que se constrói o equilíbrio do corpo. No processo penal, o centro é único: o juiz imparcial. Tudo gira ao seu redor – e não a partir dele. Quando o juiz assume papel de parte, desloca-se o centro de gravidade do processo. O corpo Vitruviano não é apenas simétrico: é proporcional. Cada membro possui uma medida que guarda correspondência com o todo. No processo penal, essa proporcionalidade se chama sistema acusatório e paridade de armas. A assimetria entre acusação e defesa é o que mais denuncia o adoecimento da justiça penal brasileira.

O processo penal só será um corpo saudável quando o braço da defesa tiver a mesma força do braço da acusação. Até lá, seguiremos condenando com músculos deformados e olhos vendados por conveniência ou “ausência de prejuízo”.

Leonardo Da Vinci traçou o corpo humano não por partes, mas como um sistema interligado. Um pé tem relação com a perna; a mão, com o antebraço; os olhos, com o crânio. No processo penal, no entanto, insiste-se em análises isoladas: “a prova é frágil, mas há indícios”; “não houve contraditório, mas a versão é crível”; “a cadeia de custódia foi violada, mas não se comprovou o prejuízo….”. Essa lógica de enxergar apenas pedaços do corpo é o que permite sentenças que ignoram garantias, decisões monocráticas que atropelam o rito e investigações que nascem com o veredito pronto. Uma sentença condenatória que ignora a ausência de provas técnicas é tão aberrante quanto um desenho anatômico em que a cabeça ocupa metade do tronco.

Hermenêutica penal e estética da decisão: Entre o texto e a existência

Há uma tentação persistente – e profundamente equivocada – de reduzir o processo penal a uma técnica de imputação e resposta. Como se fosse possível resolver dramas humanos com fórmulas de silogismo e palavras de ordem como “efetividade” ou “celeridade”. Mas o processo penal é, antes de tudo, garantia expressa pela linguagem. E toda linguagem exige interpretação. Daí a importância de se compreender que cada decisão judicial é, necessariamente, uma escolha hermenêutica – e, como tal, deve ser justificada na arena pública do discurso racional da Constituição.

Ainda que aqui se utilize a licença de comparar o processo penal a uma obra de arte, é preciso reconhecer que o processo, em si, não é arte. Porém, não é raro encontrar sentenças que, antes mesmo de se pronunciar sobre fatos e provas, desfilam citações de poemas, de Arendt, Nietzsche, Foucault, Zaffaroni e Carnelutti – como se o juiz estivesse escrevendo um editorial de jornal ou uma crônica sociológica. A autoridade do cargo cede espaço ao protagonismo literário.

Essa estética decisória é perigosa porque funciona como uma blindagem simbólica do conteúdo arbitrário. Julga-se com base em convicções íntimas, mas revestidas de erudição.

E aqui reside o risco hermenêutico escancarado no recente RE 1.555.431/RS, julgado pelo STF. No caso, o Supremo relativizou a ausência do Ministério Público em audiência de instrução e julgamento, legitimando a condução da prova pelo próprio juiz, mesmo diante de clara ofensa ao sistema acusatório.

O argumento central? A suposta inexistência de prejuízo concreto à defesa.

A falácia é considerar que o modelo acusatório depende de demonstração de dano individual – como se a própria estrutura da audiência não fosse, por si, expressão institucional de garantias. Trata-se de uma inversão perversa: exige-se da parte lesada que prove o abalo da arquitetura que o Estado deveria manter inviolável. O juiz que instrui o feito sem o MP compromete o centro de gravidade do processo, deslocando o eixo da imparcialidade para o terreno do inquisitório. Um processo assim não está apenas fora de simetria: está fora do desenho constitucional.

Ao negar a nulidade, o STF silencia sobre o mais grave: a ausência do MP não gera apenas prejuízo processual – gera mutação de forma – apenas perpetua um teatro disfuncional, onde o juiz investiga, atua, pergunta, decide e sentencia, enquanto a defesa assiste – e o Ministério Público sequer comparece.

Conclusão – O corpo da justiça e a anatomia da legitimidade

Quando Leonardo da Vinci desenhou o Homem Vitruviano, ele não pretendia apenas registrar a simetria do corpo humano – ele desenhou um ideal de proporção, uma metáfora de equilíbrio entre o mundo natural e o mundo das ideias. O corpo, para Da Vinci, é mais do que soma de partes: é estrutura, coerência, centro, função. É isso, exatamente isso, que se perdeu no processo penal brasileiro.

O que se vê hoje é um corpo processual deformado: com pernas da acusação hipertrofiadas, braços da defesa atrofiados e um cérebro judiciário que, muitas vezes, atua como membro da promotoria. A harmonia entre círculo (justiça) e quadrado (rito) foi rompida. O umbigo – o centro decisório – foi deslocado. E nesse novo desenho institucional, o réu deixou de ser sujeito de direitos e voltou a ser objeto de suspeita.

Em “Uma questão de princípio”, Dworkin propõe que podemos “melhorar nossa compreensão do Direito comparando a interpretação jurídica com a interpretação em outros campos do conhecimento, especialmente a literatura”2, e, dessa forma, sendo o Direito mais bem compreendido, propiciará um entendimento melhor do que é a interpretação em geral.

A hermenêutica jurídica, especialmente a constitucional, nos obriga a abandonar a ilusão da neutralidade e assumir a responsabilidade interpretativa. Uma sentença penal não deve ser obra de arte para agradar a sociedade. A pergunta que se deve fazer é: a decisão proferida fortalece o modelo constitucional ou o enfraquece?

Portanto, se o processo penal é um corpo, ele só será legítimo se for funcionalmente simétrico. Se sua estética for expressão da Constituição. Se sua linguagem for expressão de garantias. Se sua forma encontrar propósito em seu conteúdo. E se a decisão final for, de fato, fruto de uma anatomia acusatória equilibrada, e não de uma coreografia institucional montada para punir.

Tal como o Homem Vitruviano, o processo penal ideal exige mais do que aparência, proporção, eixo e finalidade. Exige obediência às regras do jogo. Caso contrário, o que se ergue não é um tribunal – é uma galeria de horrores bem formatada, onde a injustiça veste toga e a exceção vira regra.

______________

1 Disponível em: https://brazilartes.com/homem-vitruviano-de-leonardo-da-vinci-significados-e-analise-da-obra/#:~:text=O%20%27Homem%20Vitruviano%27%20%C3%A9%20uma%20das%20obras,das%20interse%C3%A7%C3%B5es%20entre%20matem%C3%A1tica%2C%20anatomia%20e%20arquitetura. Último acesso em 08 de julho de 2025.

2 DWORKIN, Ronald. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 217

Referências

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