Artigos Empório do Direito – Estado e justiça: a lição do zapatistas

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Estado e justiça: a lição do zapatistas

O artigo aborda a análise crítica do papel do Estado e da justiça na América Latina, enfatizando a luta dos zapatistas como um exemplo de resistência e busca por autonomia em face das injustiças sociais. Márcio Soares Berclaz argumenta que, apesar da necessidade de uma reforma no sistema de justiça, a verdadeira transformação deve vir de formas de juridicidade que operam fora do controle estatal. O zapatismo é destacado não apenas como um movimento por direitos indígenas, mas como um apelo à justiça e resistência contra a opressão do capital e a falência do Estado em cumprir seu papel.

Artigo no Empório do Direito

Por Márcio Soares Berclaz – 11/07/2016

“Vamos, camaradas. Desde já é mehor decidir virar a página. É preciso sair da grande noite em que fomos mergulhados. O novo dia que já se levanta deve encontrar-nos firmes, prudentes e resolutos”

Franz Fanon

Por mais que a justiça, na perspectiva institucional da sua construção, deva se tornar verdadeiramente democratizada e, nesta condição, portanto, sujeita, em especial na sua gestão administrativa, ao controle popular, tal necessária e hipotética transformação, ainda que venha a ser consolidada como avanço que já tarda, por si só, não basta e nunca será suficiente para dar conta de uma situação de gritantes injustiças que assolam nosso subcontinente latino-americano cujas veias, para lembrar Eduardo Galeano, seguem abertas.

Infelizmente há razões suficientes para crer que o direito, antes de ser espaço da transformação, constitui-se em instrumento para fazer valer e prevalecer a manutenção das coisas tais como desgraçadamente estão.

A América Latina como pedaço de parte do “sul” do mundo bem demonstra esse estado de coisas. O direito, definitivamente, não tem servido para transformação da realidade. A aplicação desse mesmo direito, por exemplo, na lógica insana da “guerra às drogas”, somente tem produzido mais vítimas, inclusive da violência policial proporcionada pelo Estado (a esse propósito, leia-se recente relatório recente da Human Rights Watch: https://www.hrw.org/pt-br/report/2016/07/07/291589).

Para além de uma reforma radical do sistema de justiça, só mesmo a aposta na força das juridicidades pluralistas, situadas, portanto, fora da órbita do Estado, pode contribuir para mudança gradual desta situação.

É nesse contexto que o movimento zapatista merece toda atenção. O zapatismo é uma aposta fora das possibilidades do Estado iniciada em 01 de janeiro de 1994 no pobre Estado de Chiapas no México (país de mais de 10 milhões de indígenas de aproximadamente 56 etnias).

O que é o zapatismo? Mais do que um movimento agrário revolucionário que faz homenagem a Emiliano Zapata como personagem da Revolução Mexicana ao cobrar direitos indígenas, o zapatismo é um levante que grita contra as injustiças e que cobra do Estado o cumprimento do seu papel, nem que seja para reconhecer sua incapacidade de fazê-lo.

Assim, de um movimento originariamente concebido como defesa de direitos indígenas, o zapatismo hoje concentra sua preocupação com os excluídos do mundo dentro de uma proposta de rebeldia, autonomia, justiça e democracia.

“Já basta” de um Estado subjugado ao capital financeiro internacional que, em diversos momentos, mostra-se incapaz de cumprir com suas mais minimas e razoáveis funções; um Estado que, nas suas máscaras implícitas e no seu agir divorciado de compromissos constitucionais que beiram a ficção, cotidianamente esconde o rosto, dá de costas e também de ombros à sua missão de promover direitos humanos.

O Exército Zapatista de Libertação Nacional é o exemplo de como um grupo situado dentro de uma determinada e periférica região (San Cristobal de las Casas, Ocosingo…) pode estabelecer voz e ruído permanente para reivindicar legítimo direito à terra e mais autonomia frente a um Estado incapaz de cumprir com o seu papel.

Como aceitar que uma das regiões mais pobres desde sempre no México, território dos povos maias, na borda com a Guatemala, em meio a montanhas e florestas da Selva Lacandona, conforme já bem denunciava Bartolomé de las Casas desde o colonialismo violento espanhol, assim como fez o bispo Samuel Ruiz García, quando da visita do Papa Francisco meses há alguns meses atrás continue exatamente do mesmo modo muitas décadas depois?

Como querer abrir fronteiras para o livre comércio quando a miséria e exploração estão estabelecidas como chagas o plano interno sem cuidado efetivo?

Todas as causas que motivaram a insurgência do zapatismo continuam presentes e atuais, tanto que é por isso que o movimento persiste. Se o Estado fez algumas concessões (no caso do Estado Mexicano a Reforma Contitucional de 2001 é um exemplo disso), evidente que essas nem de longe foram suficientes.

Se as promessas do Estado não alcançam resultados, isso faz com que seja cada mais maior a desconfiança com a política. Sendo certo de que a “potentia”, o poder em si, como ensina Dussel na sua “Política de Libertação”, é sempre do povo, o que fazer quando os que “mandam”, assim não o fazem obedecendo propriamente às necessidades do povo, mas servindo ao mercado financeiro?

Se há injustiça agrária, violação de normas ambientais, falta de paz, falta de educação, de moradia, de cuidados com a saúde do povo, o que afinal está fazendo o Estado? Há muito de “humano” que está sendo alheio ao Estado e seu papel.

Isso teria algo que ver com a justiça, não?

Se a justiça até hoje não cumpriu com o seu papel, é sinal de que suas demandas muitas vezes estão divorciadas da realidade. Isso quer dizer de que a preocupação com uma democracia cheia, de alta intensidade (como propõe Boaventura), também passa distante do debate sobre a democraticidade das instituições do sistema de justiça. No caso brasileiro, leia-se: Judiciário, Ministério Público e Defensoria Pública; a essas instituições cabe o desafio de serem mais abertas e democráticas, foco de preocupação muito mais transformador do que os puro e simples corporativismos.

Se as injustiças continuam vivas, vivos também devem estar os movimentos sociais e os levantes de cidadania e insurgência para mostrar que a falta de respeito aos direitos fundamentais e ao incremento da justiça pelo Estado, para além da sua reforma, reconstrução e atualização permanente, legitima a busca de soluções plurais e alternativas.

As máscaras dos zapatistas não são nada frente a ficção do papel constitucional do Estado e sua subserviência ao capital. As Declarações da Selva Lacandona poderiam integrar a pauta não só do Executivo, mas das autoridades e dos gestores ocupados do sistema de justiça. Mais do que uma “outra forma de fazer política”, atenta aos oprimidos, a partir de baixo e por baixo, também há de se pensar em outro modo de se fazer “justiça”.

Mais do que uma simples histórica local, há de se explorar o potencial de transcendência da insurgência zapatista. O que o exemplo original e autêntico dos zapatistas do México (segunda maior economia da América Latina) pode ensinar ao Brasil e aos demais povos da América Latina? É preciso ou não um direito que nasça do povo, como é a proposta de Jesús Antonio de La Torre Rangel? Quais serão as estratégias necessárias para atingimento desse objetivo?

A luta por justiça do materialismo historico e da “da vida real” (Hinkelammert) deve ser feita não apenas por dentro, mas também por fora do Estado. A partir daí há de se ter pautas e “campanhas” que devem ser inventadas, descobertas e travadas a partir daí pelos “homens novos” (Fanon) ou pelos intelectuais orgânicos (Gramsci)? Ou isso, ou a busca pela justiça é um fetiche restrito a mercadoria, dinheiro e capital sem compromisso com direitos humanos, ou seja, em verdade, a legitimação da injustiça. No último caso, nada pode ser pior.

Notas e Referências:

DE LA TORRE RANGEL, Jesús Antonio. Verbete “Zapatismo”. Enciclopédia Latino-americana dos Direitos humanos (SIDEKUM, Antonio; WOLKMER, Antonio Carlos; RADAELLI, Samuel Manica). Blumenau-SC: Edifurb/Nova Harmonia, 2016, p. 751/754.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora/MG: Editora UFJF, 2005.

HINKELAMMERT, Franz. As armas ideológicas da morte. São Paulo: Edições Paulinas, 1983.

O Estado, de Zapatista National Liberation Army, the rebel group that became prominent in the southern Mexican state Chiapas in early 1994 and has been pushing for land and more autonomy for indigenous Indians. San Cristobal de las Casas

Márcio Soares Berclaz é Doutorando em Direitos das Relações Sociais (UFPR), Mestre em Direito do Estado (UFPR), sócio-fundador do Grupo Nacional de Membros do Ministério Público (www.gnmp.com.br), membro do Ministério Público Democrático, membro da Associação Brasileira de Magistrados, Promotores de Justiça e Defensores Públicos da Infância e Juventude – ABMP, membro da Associação Nacional dos Membros do Ministério Público em saúde pública – AMPASA, membro do Instituto de Pesquisa, Direitos e Movimentos Sociais – IPDMS, autor do Blog Recortes Críticos (www.recortescriticos.blogspot.com) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Paraná.

Imagem Ilustrativa do Post: Zapatista Mural // Foto de: lauranazimiec // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/lauranazimiec/5980260440

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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