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Revista pessoal: freio de arrumação e o Estado de Direito

O artigo aborda a problemática da revista pessoal no Brasil, destacando a aplicação do conceito de “fundada suspeita” à luz do Estado Democrático de Direito. Os autores, Bruno Braga Cavalcante e Gina Ribeiro Gonçalves Muniz, analisam como a falta de critérios objetivos tem levado a abusos policiais, afetando desproporcionalmente pessoas negras e vulneráveis. O texto discute decisões recentes do STJ que buscam delimitar a legalidade das abordagens policiais, reafirmando a necessidade de assegurar direitos fundamentais e combater práticas de discriminação.

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“João, negro e com 24 anos, é morador de uma invasão na cidade de Manaus, considerada área vermelha pelas forças de repressão. Na madrugada de sábado, foi abordado pela polícia em frente à sua casa porque, na ótica dos agentes estatais, teria aparentado nervosismo ao avistar a viatura, ocasião em que teria acelerado o passo e corrido em direção à sua residência, local onde foi revistado e encontrado consigo trouxas de maconhas. Ato contínuo, foi conduzido à delegacia de policia e autuado em flagrante por tráfico de substância entorpecente.”

Nosso Código de Processo Penal, apesar de datado de 1941, sob os auspícios da ditadura Vargas, estabelece requisitos mínimos para que os direitos fundamentais à privacidade e liberdade possam ser legalmente restringidos por uma busca pessoal.

Na dicção do artigo 244 do CPP, a revista pessoal prescinde de mandado judicial “no caso de prisão ou quando houver fundada suspeita de que a pessoa esteja na posse de arma proibida ou de objetos ou papéis que constituam corpo de delito, ou quando a medida for determinada no curso de busca domiciliar”.

Diante da vagueza da expressão “fundada suspeita”, mentes autoritárias interpretam a norma jurídica em manifesta desconformidade com a teleologia dos direitos e garantias processuais fundamentais. Na práxis penal, interpretações subjetivas ditam a necessidade da abordagem policial, às vezes até de uma forma contraditória, a exemplo de se considerar comportamento suspeito o nervosismo e também a extrema tranquilidade (entendida como frieza), estar sozinho em local ermo ou em meio a uma multidão.

Sobre a abrangência conceitual de fundada suspeita, leciona Lopes Junior: “uma cláusula genérica, de conteúdo vago, impreciso e indeterminado, que remete à ampla e plena subjetividade (e arbitrariedade) do policial. […]. Assim, por mais que se tente definir a ‘fundada suspeita’, nada mais se faz que pura ilação teórica, pois os policiais continuarão abordando quem e quando eles quiserem” [1].

A bem da verdade, no Brasil, suspeita é a pessoa que se enquadra no estereótipo de criminoso, e não sua atitude, como se vigorasse o direito penal do autor em detrimento ao direito penal do fato. Por conseguinte, esse malogrado excesso de subjetivismo no entendimento do que seria fundada suspeita é especialmente pernicioso aos mais vulneráveis, historicamente público alvo predileto do sistema penal.

Segundo dados do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, do Rio de Janeiro, coletados em 2022, 63% das pessoas abordadas em busca pessoal pela polícia naquela cidade são de pele negra, e 79% das pessoas que tiveram abordagem policial domiciliar também eram negras. As buscas pessoais motivadas pela denominada atitude suspeita representam quase a totalidade desse tipo de conduta policial-estatal [2].

Essa discricionariedade estatal — pessoas ricas e brancas circulando livremente na sociedade ao passo que os pobres e negros sendo constantemente abordados sob o pretexto de atividade rotineira da polícia — não encontra guarida em um Estado Democrático de Direito, cuja função punitiva é legitimada por ideais de liberdade e igualdade. A convivência harmônica entre democracia e ius puniendi tem como pressuposto fundamental o respeito ao princípio da dignidade da pessoa humana, sob pena de legitimação de práticas de racismo estrutural e mesmo aporofobia.

Há muito tempo, a melhor doutrina critica a completa ausência de requisitos objetivos mínimos para legitimar as abordagens policiais, especialmente dirigidas aos grupos socioeconomicamente mais vulneráveis, estigmatizados como potenciais delinquentes.

Pondera-se ser antidemocrático, além de ilegal, a aceitação passiva de toda e qualquer argumentação genérica e desprovida de comprovação como fundamento bastante para buscas pessoais. Nesse sentindo, vale-se das lições de Alexandre Morais da Rosa: “é inválida qualquer abordagem policial com suporte em ‘intuições’, ainda que comprovadas depois, porque a ação pressupõe ‘causa democrática e objetiva’. A ‘fundada suspeita’ decorre de ação ou omissão do abordado, (..) e não simplesmente porque o agente público ‘intuiu’ ou porque o lugar é perigoso, pelos trajes do submetido, cor, a saber, por estigmas e avaliações subjetivas” [3].

A exigência legal de fundada suspeita não se satisfaz com a mera desconfiança embasada no tirocínio policial, sendo imperioso que a busca pessoal seja lastreada em circunstâncias objetivas que apontem elevada probabilidade de que o agente esteja na posse de objetos ilícitos. Do contrário, a revista pessoal serve de gazua para a famigerada pescaria probatória (fishing expedition).

Percorrendo a jurisprudência do STF, encontra-se um primoroso e antigo decisório — HC 81.305/GO, 1ª Turma, relatoria: ministro Ilmar Galvão, julgado em 13/11/2001 — no qual se reconheceu que a fundada suspeita para lastrear busca pessoal não pode se basear em ilações subjetivas do agente estatal e não verificáveis concretamente, sob pena de se incorrer em abusos ao direito de ir e vir do cidadão – tendo em vista que a “fundada suspeita”, prevista no artigo 244 do CPP, “não pode fundar-se em parâmetros unicamente subjetivos, exigindo elementos concretos que indiquem a necessidade da revista, em face do constrangimento que causa”, acarretando o não preenchimento dos requisitos em “risco de referendo a condutas arbitrárias ofensivas a direitos e garantias individuais e caracterizadoras de abuso de poder”.

O julgado acima, contudo, não representava o entendimento jurisprudencial vigente em nossos tribunais superiores até pouco tempo atrás. Durante um longo lapso temporal, o Judiciário brasileiro foi complacente com revistas pessoais realizadas ao arrepio de direitos fundamentais assegurados constitucionalmente, como a liberdade e a privacidade. Felizmente, hoje já se encontram importantes decisões do Tribunal da Cidadania — conforme será demonstrado abaixo — nas quais há uma criteriosa análise da fundada suspeita autorizadora do famoso “baculejo”.

Nesta senda, nos autos do emblemático RHC 158.580/BA, julgado em 19/4/2022, a 6ª Turma do STJ asseverou que denúncia anônima, intuição policial ou abordagens de rotina não configuram fundada suspeita autorizada da busca pessoal. Colaciona-se excerto do voto do relator, ministro Schietti Cruz: “Ante a ausência de descrição concreta e precisa, pautada em elementos objetivos, a classificação subjetiva de determinada atitude ou aparência como suspeita, ou de certa reação ou expressão corporal como nervosa, não preenche o standard probatório de ‘fundada suspeita’ exigido pelo artigo 244 do CPP”.

Esse entendimento já foi acolhido em outras decisões do STJ [4], a exemplo do REsp 1.961.459/SP (6ª Turma, rel. min. Laurita Vaz, julgado em 5/4/2022): “A percepção de nervosismo do averiguado por parte de agentes públicos é dotada de excesso de subjetivismo e, por isso, não é suficiente para caracterizar a fundada suspeita para fins de busca pessoal”,

Outrossim, a 5ª Turma do STJ, nos autos do AgRg no AgRg no HC 706.522/SP (rel. min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 22/2/2022), asseverou que a denúncia anônima, bem como o aparente nervosismo do suspeito diante da presença de policias, não justificam, por si só, a busca pessoal.

As decisões acima referidas, embora evidenciem uma salutar inflexão sobre a legalidade das revistas pessoais, ainda não refletem um entendimento uníssono sobre a temática.

A práxis defensorial com milhares de casos similares ao apontado no início deste artigo demonstra que, no afã de se combater a criminalidade, muitos policiais — e até mesmo alguns magistrados e promotores de justiça — acreditam que o requisito prévio da fundada suspeita para a realização da busca pessoal pode ser mitigado se da abordagem ilegal resultar provas (igualmente ilegais) da existência de um crime. Trata-se de uma visão pífia do processo penal, pois relega ao ostracismo que a salvaguarda de direitos e garantias fundamentais é o núcleo fundante de um Estado Democrático de Direito.

A revista pessoal realizada em desacordo com o artigo 244 do CPP é ilegal, e, por conseguinte, também a prova dela derivada. A justa causa para a aborgadem tem que necessariamente anteceder a diligência. O eventual encontro posterior de objetos ilícitos não é fundamento idôneo para convalidar a violação de direitos fundamentais, como a liberdade, intimidade e privacidade.

A abordagem policial realizada fora dos quadrantes legais, para além da ilicitude da prova, pode ensejar a responsabilização administrativa e penal do agente. Mas essa possibilidade não intimida as práticas violadoras de direitos, uma vez que vigora no Brasil um estado de negação com relação aos abusos policiais, e uma tradicional leniência da Justiça com as revistas ilegais.

Dessarte, as decisões acima citadas desempenham também a importante missão de impor às instâncias formais de controle uma viragem de mentalidade, de modo a estabelecer um padrão de comportamento que equacione o poder punitivo estatal aos direitos e garantias das pessoas.

Não se combate crimes cometendo crimes. A persecução penal deve observar ritos e garantias individuais e coletivas, passíveis de rígido controle do próprio Estado (Executivo e Sistema de Justiça), sob pena de recair a mão forte do poder punitivo ainda mais sobre os esgualepados, os desgraçados, os depauperados, em uma prática de racismo estrutural e aporofobia.

Sempre que se defende o respeito de um direito ou garantia fundamental, os incautos entendem que se está soerguendo a bandeira da impunidade. Impõe-se, pois, alguns esclarecimentos para, desde já, debelar essa falaciosa correlação. Não se defende a impossibilidade de revistas pessoais, mas tão somente uma ponderação entre a necessidade investigativa e o direito à intimidade e liberdade do cidadão. O que se rechaça é tão somente uma autorização prévia e geral para a abordagem das pessoas — presumidamente inocentes, diga-se de passagem — sem que exista uma fundada suspeita de cunho objetivo e verificável concretamente.

Em arremate, a fundada suspeita tem que ser objetivamente posta e não subjetivamente pressuposta pelos agentes policiais, sob pena da restrição legal ao direito de livre locomoção se transmudar em violação desse direito fundamental. Esse é o busílis!

As recentes decisões do STJ, elencadas no corpo do presente texto, no sentido de condicionar a legalidade da revista pessoal à existência prévia de critérios objetivos de fundada suspeita, mostram que o Tribunal da Cidadania está direcionando a jurisdição ao seu legítimo fim em um Estado Democrático de Direito: assegurar, de forma contramajoritária, os direitos fundamentais, a despeito das distorcidas repercussões que essa escolha garantista venha a ecoar na opinião pública.

[1] LOPES JUNIOR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2014, p. 739

[2] Disponível em: https://cesecseguranca.com.br/reportagens/pesquisa-mostra-que-63-das-abordagens-policiais-feitas-no-rio-tem-como-alvo-pessoas-negras/, acesso em 15/6/2022.

[3] ROSA, Alexandre Morais da. Guia do Processo Penal conforme a teoria dos jogos. 6ª ed. Florianópolis: Emais, 2021, p.625

[4] Colaciona-se outras decisões nesse sentido: RHC nº 142.588/PR rel. ministro Olindo Menezes, 6ª, T., DJe 31/5/2021; HC nº 659.689/DF, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª, T., DJe 18/6/2021; (HC nº 638.591/SP, rel. ministro Sebastião Reis Júnior, 6ª T., DJe 7/5/2021.

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