Artigos Conjur – O necessário diálogo entre a psicologia e o direito processual penal

Artigos Conjur
Artigos Conjur || O necessário diálogo entre …Início / Conteúdos / Artigos / Conjur
Artigo || Artigos dos experts no Conjur

O necessário diálogo entre a psicologia e o direito processual penal

O artigo aborda a interação entre a psicologia e o direito processual penal, enfatizando a importância de compreender os limites da memória humana nas provas dependentes dela, como depoimentos e reconhecimentos. Os autores discutem como as evidências baseadas na memória não são repetíveis, mostrando que novos dados podem distorcer lembranças originais, e destacam a necessidade de procedimentos rigorosos e uso de tecnologia para minimizar erros judiciais. A reflexão proposta busca enriquecer a prática jurídica com insights da psicologia, visando garantir um processo penal mais justo e fundamentado.

Artigo no Conjur

Nesse viés, o sistema jurídico brasileiro costuma identificar nas provas dependentes da memória (ex.: depoimentos testemunhais e reconhecimentos pessoais) um meio instrutório do caso penal passível, ou melhor, carente de (re)produção em juízo. Aliás, segundo clássico entendimento dogmático, a sua natureza probatória dependeria justamente da formação na etapa processual (e não apenas investigativa preliminar) mediante contraditório pleno. Em síntese, a repetição do ato seria para muitos indispensável à constituição regular desse meio de prova.

Ocorre, no entanto, que essa demanda jurídico-processual de validade probatória, com nítida preocupação democrática, fundada no princípio do devido processo legal, pode encontrar algumas arestas em face dos pressupostos científicos da psicologia do testemunho. Isso porque a ideia de repetibilidade das fontes de provas pessoais, usualmente admitida no campo jurídico, inclusive para fins de classificação probatória, não leva em consideração o modo de funcionamento da memória humana.

A memória consiste em um processo cognitivo cuja função não é registrar tudo, mas possibilitar o aprendizado de informações. Em se tratando de testemunhas, isso significa que depois da ocorrência de um evento (e.g., um fato criminoso) novas informações obtidas podem ser incorporadas à memória original[3]. Em um experimento[4] que ilustra tais afirmações, testemunhas foram expostas a um homem, sem tatuagem, assaltando um carro, e após isso conversavam sobre o crime. Os pesquisadores combinaram secretamente com um participante para que este falasse que recordava que o assaltante tinha uma tatuagem no pescoço. Uma semana depois do crime, as testemunhas eram solicitadas a reconhecer o autor do delito com base em 8 (oito) fotografias de pessoas semelhantes, sendo uma delas o verdadeiro autor, e outra um inocente com tatuagem no pescoço. A maioria dos participantes reconheceu o suspeito inocente com a tatuagem, indicando que a informação incorreta sugerida após o evento (tatuagem no pescoço) fora armazenada juntamente à memória dos fatos.

No que tange ao modo de funcionamento da memória humana, deve-se entender o reconhecimento de pessoas como prova irrepetível. As pesquisas demonstram, v.g., que o rosto de alguém, uma vez reconhecido, acaba vinculado à memória do evento, de modo que, em sendo a testemunha ou vítima convidada a um segundo ato de reconhecimento, já não terá mais por base os fatos vividos no momento do crime, mas sim o resultado de todos os reconhecimentos anteriormente efetuados[5].

Para além da inserção de novas informações que são codificadas juntamente com a memória original, a memória humana também está sujeita ao esquecimento com o decorrer do tempo. Assim, mesmo que a essência da informação codificada permaneça, detalhes que podem ser relevantes ao caso tendem a ser esquecidos. Frise-se: a memória de um evento não é um registro que se mantém intacto, bem como não é repetível[6].

A desconfiança para com a memória de vítimas e testemunhas é um assunto antigo, mas que pode ser melhor trabalhado a partir de novos pressupostos no campo do raciocínio probatório. Se, por um lado, não é possível mudar o funcionamento da memória nem desejável ignorar o reconhecimento de pessoas como meio de prova do caso penal; por outro lado, é possível investir na mudança de procedimentos informativos do sistema de justiça criminal, sempre buscando a implementação de novos protocolos técnicos que diminuam a chance de erros (ou condenações injustas).

Nessa linha, indispensável pensar em uma melhor disciplina processual penal às provas dependentes da memória, bem como nas capacitações técnicas das agências policiais e dos mecanismos de preservação da cadeia de custódia.

Não custa lembrar, v.g., que em países como a Inglaterra e os Estados Unidos da América muitas dessas provas são gravadas em formato de áudio e vídeo, podendo ser acessadas na etapa processual[7]. O que, embora não isento de críticas, permite um registro mais fidedigno dos elementos informativos colhidos, bem como do método de formação da prova e do tipo de protocolo adotado pelos órgãos investigativos.

Vale destacar que algumas agências policiais brasileiras também começaram a trabalhar com o sistema audiovisual em seus procedimentos ordinários de investigação criminal (e não apenas nos autos de prisão em flagrante). Trata-se de um importante passo no movimento de superação da forma escrita do inquérito policial. Isso sem mencionar o uso de câmeras individuais nas atividades de policiamento ostensivo, bastante úteis, dentre outros momentos, nas hipóteses de prisão captura em flagrante delito.

Todos esses recursos tecnológicos, se adequadamente empregados no sistema de justiça criminal, podem auxiliar a devida instrução do caso penal. Isso não significa, contudo, a transmutação automática e generalizada de atos de investigação em atos de prova numa espécie de burla ao contraditório pleno e ampla defesa. A grande preocupação reside justamente com o aprimoramento processual penal por meio de uma disciplina probatória mais rigorosa, preocupada com a diminuição de erros judiciários por falsas memórias.

Logo, indispensável refletir sobre as contribuições científicas oriundas da psicologia no campo das provas dependentes da memória. Duas situações parecem absolutamente relevantes nessa seara. O reconhecimento de pessoas como prova irrepetível e a necessidade de métodos adequados às entrevistas criminais. Isso porque, embora as oitivas de testemunhas, suspeitos ou vítimas sejam passíveis de repetição, desde que conduzidas através de técnicas regulares, uma única entrevista realizada de maneira imprópria também pode levar a inserção de falsas memórias.

[1] A questão probatória mostra-se como das “mais importantes da ciência do processo, na medida em que a correta verificação dos fatos em que se assentam as pretensões das partes é pressuposto fundamental para a prolação da decisão justa” (GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flavio Luiz e MORAES, Maurício Zanoide. Estudos em homenagem à Professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ, 2005, p. 303). A respeito da centralidade do tema da prova no processo penal, em especial num modelo acusatório: CONSO, GIOVANNI; GREVI, VITTORIO. Compendio di Procedura Penale: appendice di aggiornamento. Padova: Cedam, 2001, p. 276 / TONINI, Paolo. Lineamenti di Diritto Processuale Penale. 12 ed. Milano: Giuffrè Editore, 2014, p. 115.

[2] BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. Processo Penal. 6 ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018, p. 385.

[3] FRENDA, Steven J.; NICHOLS, Rebecca M.; LOFTUS, Elizabeth F. Current issues and advances in misinformation research. Current Directions in Psychological Science, v. 20, n. 1, p. 20-23, 2011.

[4] EISEN, Mitchell L. et al. “I Think He Had A Tattoo On His Neck”: How Co-Witness Discussions About A Perpetrator’s Description Can Affect Eyewitness Identification Decisions. Journal of applied research in memory and cognition, v. 6, n. 3, p. 274-282, 2017.

[5] STEBLAY, Nancy K.; DYSART, Jennifer E. Repeated eyewitness identification procedures with the same suspect. Journal of Applied Research in Memory and Cognition, v. 5, n. 3, p. 284-289, 2016.

[6] CECCONELLO, William Weber; DE AVILA, Gustavo Noronha; STEIN, Lilian Milnitsky. A (ir)repetibilidade da prova penal dependente da memória: uma discussão com base na psicologia do testemunho. Revista Brasileira de Políticas Públicas, v. 8, n. 2, p. 1057-1073, 2018.

[7] MILNE, Becky; SHAW, Gary; BULL, Ray. Investigative interviewing: The role of research. Applying Psychology to Criminal Justice, p. 65-80, 2007.

Referências

Relacionados || Outros conteúdos desse assunto
    Mais artigos || Outros conteúdos desse tipo
      Leonardo Marcondes Machado || Mais conteúdos do expert
        Acesso Completo! || Tenha acesso aos conteúdos e ferramentas exclusivas

        Comunidade Criminal Player

        Elabore sua melhor defesa com apoio dos maiores nomes do Direito Criminal!

        Junte-se aos mais de 1.000 membros da maior comunidade digital de advocacia criminal no Brasil. Experimente o ecossistema que já transforma a prática de advogados em todo o país, com mais de 5.000 conteúdos estratégicos e ferramentas avançadas de IA.

        Converse com IAs treinadas nos acervos de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões, Cristiano Maronna e outros gigantes da área. Explore jurisprudência do STJ com busca inteligente, análise de ANPP, depoimentos e muito mais. Tudo com base em fontes reais e verificadas.

        Ferramentas Criminal Player

        Ferramentas de IA para estratégias defensivas avançadas

        • IAs dos Experts: Consulte as estratégias de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa, Rodrigo Faucz, Gabriel Bulhões e outros grandes nomes por meio de IAs treinadas em seus acervos
        • IAs de Jurisprudência: Busque precedentes com IAs semânticas em uma base exclusiva com mais de 200 mil acórdãos do STJ, filtrados por ministro relator ou tema
        • Ferramentas para criminalistas: Use IA para aplicar IRAC em decisões, interpretar depoimentos com CBCA e avaliar ANPP com precisão e rapidez
        Ferramentas Criminal Player

        Por que essas ferramentas da Criminal Player são diferentes?

        • GPT-4 com curadoria jurídica: Utilizamos IA de última geração, ajustada para respostas precisas, estratégicas e alinhadas à prática penal
        • Fontes verificadas e linkadas: Sempre que um precedente é citado, mostramos o link direto para a decisão original no site do tribunal. Transparência total, sem risco de alucinações
        • Base de conhecimento fechada: A IA responde apenas com conteúdos selecionados da Criminal Player, garantindo fidelidade à metodologia dos nossos especialistas
        • Respostas com visão estratégica: As interações são treinadas para seguir o raciocínio dos experts e adaptar-se à realidade do caso
        • Fácil de usar, rápido de aplicar: Acesso prático, linguagem clara e sem necessidade de dominar técnicas complexas de IA
        Comunidade Criminal Player

        Mais de 5.000 conteúdos para transformar sua atuação!

        • Curso Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico: Com Alexandre Morais da Rosa e essencial para quem busca estratégia aplicada no processo penal
        • Curso Defesa em Alta Performance: Conteúdo do projeto Defesa Solidária, agora exclusivo na Criminal Player
        • Aulas ao vivo e gravadas toda semana: Com os maiores nomes do Direito Criminal e Processo Penal
        • Acervo com 130+ Experts: Aulas, artigos, vídeos, indicações de livros e materiais para todas as fases da defesa
        • IA de Conteúdos: Acesso a todo o acervo e sugestão de conteúdos relevantes para a sua necessidade
        Comunidade Criminal Player

        A força da maior comunidade digital para criminalistas

        • Ambiente de apoio real: Conecte-se com colegas em fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos, compartilhar estratégias e trocar experiências em tempo real
        • Eventos presenciais exclusivos: Participe de imersões, congressos e experiências ao lado de Aury Lopes Jr, Alexandre Morais da Rosa e outros grandes nomes do Direito
        • Benefícios para membros: Assinantes têm acesso antecipado, descontos e vantagens exclusivas nos eventos da comunidade

        Assine e tenha acesso completo!

        • 75+ ferramentas de IA para estratégias jurídicas com base em experts e jurisprudência real
        • Busca inteligente em precedentes e legislações, com links diretos para as fontes oficiais
        • Curso de Alexandre Morais da Rosa sobre Teoria dos Jogos e Processo Penal Estratégico
        • Curso Defesa em Alta Performance com Jader Marques, Kakay, Min. Rogério Schietti, Faucz e outros
        • 5.000+ conteúdos exclusivos com aulas ao vivo, aulas gravadas, grupos de estudo e muito mais
        • Fóruns e grupos no WhatsApp para discutir casos e trocar experiências com outros criminalistas
        • Condições especiais em eventos presenciais, imersões e congressos com grandes nomes do Direito
        Assinatura Criminal Player MensalAssinatura Criminal Player SemestralAssinatura Criminal Player Anual

        Para mais detalhes sobre os planos, fale com nosso atendimento.

        Quero testar antes

        Faça seu cadastro como visitante e teste GRÁTIS por 7 dias

        • Ferramentas de IA com experts e jurisprudência do STJ
        • Aulas ao vivo com grandes nomes do Direito Criminal
        • Acesso aos conteúdos abertos da comunidade

        Já sou visitante

        Se você já é visitante e quer experimentar GRÁTIS por 7 dias as ferramentas, solicite seu acesso.