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O Judiciário sou Eu — o juiz Rei Sol e seu escraviários

O artigo aborda de forma crítica o funcionamento do sistema judiciário, utilizando a metáfora do “juiz Rei Sol” para ilustrar a desconexão entre magistrados e a realidade dos processos que julgam. O autor, Salah Hassan Khaled Júnior, expõe a desumanização dos atores envolvidos, destacando a despersonalização do trabalho jurídico e a cultura autoritária que perpetua a violência simbólica, revelando como essa dinâmica afeta tanto os escraviários quanto a própria justiça. A análise sugere a urgente necessidade de transformação no Judiciário, questionando o que realmente significa ser juiz em um sistema que desconsidera a dignidade humana.

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Para os propósitos deste texto, peço ao leitor que exercite seu poder de imaginação. Hoje vou abusar um pouco da sua boa vontade.

Imagine um juiz que desenvolveu um procedimento ritualizado para jamais ter contato físico com o processo. Não com um processo específico, mas com qualquer processo. Imagine um juiz que introduziu um modelo fordista de linha de montagem e que delega aos seus escraviários parcelas do processo de produção, particularmente aquelas com as quais ele não deseja ter qualquer tipo de relação. Finalmente, imagine um juiz que rodeado de serviçais senta-se com toda pompa e circunstância em seu trono — o que ele faz apenas algumas vezes por semana — e é assessorado diretamente por dois rapazes, cuja função no ritual é singela: um é encarregado de trazer e retirar os processos, enquanto outro é responsável por virar as páginas. O juiz participa do processo de produção apenas com “a caneta”, ou seja, com o instrumento que permite a manifestação do sagrado no profano e assegura a realização da “justiça”, sem que com isso de modo algum precise se contaminar com os dramas alheios. Afinal, já basta que ele tenha que regularmente ouvir aquelas histórias enfadonhas e aqueles dramas pessoais mundanos quando tem que se submeter ao martírio que é a convivência e o contato direto com a plebe.

A linha de montagem segue seu curso durante cerca de uma hora, o que é suficiente para dar cabo de boa parte da produção semanal. Metas são atingidas. Estantes esvaziadas. Dramas decididos e a justiça efetivamente dispensada, de forma implacável e industrial.

O ritual é inteiramente degradante para os estagiários. Obviamente não se identificam com o resultado de seu trabalho: a extração vergonhosa de suas forças faz do “serviço” uma prática atentatória de sua dignidade. Não é por acaso que semanas bastam para que muitos “peçam para sair”, o que naturalmente não impede que o procedimento continue se repetindo, indefinidamente. É um verdadeiro moinho de trituração de corpos e destruição de sonhos, que toca cada acadêmico do Direito que tem o infortúnio de cair nessa “vara” de forma distinta.

Alguns sucumbem ao processo de docilização dos corpos e introjetam o papel de submissão que lhes cabe. Outros não conseguem esconder seu desprezo pela forma com que as coisas são conduzidas e rapidamente são substituídos: peças falhas na linha de montagem, engrenagens com dentes que se gastam rapidamente ou que não respondem ao processo de lubrificação e se recusam a seguir o ritmo do carrossel.

Para o Rei Sol, e possível que professores subversivos tenham alguma relação com isso. Ele suspeita que esses malfeitores implantam ideias heréticas na cabeça dos jovens estudantes, que por isso mesmo desrespeitam a autoridade e não dão o devido valor a quem realmente conhece o Direito: afinal, ele sabe da prática, enquanto a teoria nada de valioso ensina.

Não que para todos os escraviários a violência simbólica conforme particularmente um calvário: não são poucos os casos de “lacaios” que se apaixonam pelo estuprador e sonham com a eventual condução ao seu lugar. São oprimidos que almejam a posição do opressor e que se conduzidos aos píncaros da glória, continuarão a reproduzir o ciclo de violência.

O processo seletivo de ingresso na magistratura muitas vezes é inclusive direcionado para garantir que isso ocorra: que os eleitos compactuem com o velho modo autoritário de pensar. Quando é assim, o Judiciário se torna presa fácil dos novos velhos e a oxigenação nunca acontece: o ciclo de violência se repete indefinidamente, garantindo sempre a continuidade da mesmidade das coisas. O controle do ingresso é tão brutal que muitas vezes é preciso fingir ser algo que não é para entrar. Quem não finge é barrado no baile implacavelmente. E quando entram disfarçados, não raro tem que suportar o fardo da diferença e o estigma que é imposto pelos reprodutores ideológicos do habitus sedimentado. São taxados de juízes demasiado humanos, juízes que prendem pouco e soltam demais, juízes que “não colocam no lugar seus serviçais”. Não é fácil resistir ao processo de etiquetamento dos moralizadores de plantão.

Não é preciso dizer quem são ou foram esses grandes juízes. Todos sabemos quem são eles. Verdadeiros oásis de humanidade em um deserto repleto de empresários morais que julgam os outros a partir de padrões de moralidade que eles mesmos são incapazes de seguir.

O judiciário está repleto dessas tristes caricaturas de gente, que para o infortúnio de todos nós, estão travestidos de juízes. Aliás, parece que o Judiciário está fadado a isso. Fósseis conservadores se aposentam e novos autoritarismos florescem, reafirmando antigas violências: os anos passam e os servidores públicos continuam se apropriando de espaços públicos, como se deles fossem. Sim, não são nada mais que isso: servidores públicos. O resto é delírio de grandeza imposto por quem exerce o poder. Por quem conduz a “vara” com firmeza e faz desses espaços lugares de sujeição e frustração. São pessoas que perpetuam a triste cultura ibérica do bacharelismo e expressam o mais absoluto desprezo pelo trabalho, por eles considerado como coisa reservada para a ralé. São incapazes de sentir empatia e nunca realmente se deslocam de seu lugar de autoridade para vislumbrar a agonia do lugar do outro.

Dizem que alguns juízes pensam que são deuses, enquanto outros têm absoluta certeza de que são. E ai de quem disser que não, como descobriu recentemente uma agente de trânsito do Rio de Janeiro, condenada a pagar uma indenização de R$ 5 mil exatamente por dizer a um juiz que ele não era Deus. Na sentença o juiz — que obviamente se identificou com seu colega — disse que a agente havia menosprezado a função que o magistrado representa na sociedade.

Curiosamente, as “divindades” jamais metem a mão na massa diretamente. São deuses ausentes, que falam através dos homens e que se utilizam deles como meio para manifestação de suas vontades. Arremedos de ser humano que personificam e presentificam o Judiciário como se proprietários dele fossem. Seres inumanos, incapacitados para o que de mais nobre tem o humano: o encontro com o outro. Julgam pessoas como quem faz uma planilha de pagamento no Excel: para eles, meros mortais não são nada mais que números. Processos conformam metas que devem ser preenchidas: simples estatísticas para obtenção de privilégios funcionais e carícias obtidas do Pai Tribunal. O moinho segue seu curso, apenas mais um dia de trabalho. Dos outros, é claro.

Assim se passam as coisas nestes pequenos recantos que reproduzem a rotina de um nobre no apogeu do esplendor absolutista francês. Falo aqui em Rei Sol, mas poderia muito bem ser um faraó: trata-se de alguém que está para além da vida mortal e que enfrenta as tarefas da vida mundana auxiliado por um exército de lacaios. Afinal, o que seria dos deuses se os mortais não os adorassem?

Mas não pense que no cortejo conduzido por quem exerce o poder autoritário os escraviários são os únicos corpos gastos. Não é por acaso que os assessores cc’s proliferam país afora. Eles sabem as regras do jogo. Sabem que(m) devem adular e como agradar. Como sorridentes cordeiros sacrificados no altar da justiça são reconduzidos continuamente e se eternizam indefinidamente no Judiciário. Juízes se aposentam e tratam de indicá-los para seus novos velhos colegas.

Afinal, assessores concursados seriam a pior praga imaginável: corpos indóceis que não se submeteriam e introduziram o ruído da rebeldia nos recantos autoritários de açoitamento do outro que ironicamente chamamos de varas. Gente que não se curvaria aos arautos da barbárie que conduzem de forma sádica as Câmaras de gás que funcionam de Norte a Sul do país, inclusive nas mais altas instâncias jurídicas. Definitivamente há algo de podre no reino da Dinamarca. Ou na França Absolutista. Ou no Antigo Egito. A quem interessa a manutenção dessa realidade que só serve para atender aos caprichos dos nobres absolutistas que prosperam de forma incontrolada neste país? Ah, mas que tristes trópicos em que vivemos…

Felizmente novos tempos estão surgindo. O império do ctrl+c e ctrl+v estará garantido em definitivo quando entrarmos por completo na era do Absolutismo Digital. Louvai o processo eletrônico e tremei diante de minha assinatura digital, ovelha de Deus. Em breve tudo será delegado e não será mais necessário qualquer contato com o profano. Deuses digitais e currais judiciais informatizados. O futuro é promissor.

Disse no início que seria preciso imaginação. Confesso que não fui inteiramente honesto. O juiz Rei Sol não é gozação. Não é ironia e muito menos humor negro. Não é o insight da semana para lançar luzes sobre a barbárie das nossas práticas judiciárias. Não é uma figura exagerada discursivamente para desvelar a extensão da insanidade que atinge muitos magistrados.

A história é verídica. O relato foi obtido a partir de uma “fonte primária”, que para desespero deste estarrecido ouvinte, jorrou de modo cristalino: um ex-escraviário alforriado e desiludido, que pesarosamente afirmou que não desejava mais ser juiz, quando o que precisamos é que justamente pessoas como ele se tornem juízes. Pessoas indignadas com a injustiça e com a falta de sensibilidade alheia. Até quando?

Referências

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