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Mantra do crime permanente para legitimar ilegalidades nos flagrantes

O artigo aborda a problemática da interpretação e aplicação das leis relacionadas a crimes permanentes e a legitimidade das operações policiais em flagrante. O autor, Alexandre Morais da Rosa, critica a violação dos direitos fundamentais, enfatizando que não se pode justificar a invasão de domicílios sem autorização legítima e sem base real, alertando sobre as consequências da chamada “arbitrariedade policial”. O texto destaca a importância de respeitar as normas processuais para garantir a legalidade e a proteção dos cidadãos contra abusos do poder.

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Isso porque nos crimes permanentes há confusão lógica na interpretação prevalente. De fato, o art. 303 do CPP autoriza a prisão em flagrante nos crimes permanentes enquanto não cessada a permanência. Entretanto, a permanência deve ser anterior à violação de direitos. Dito diretamente: deve ser posta e não pressuposta/imaginada. Não basta, por exemplo, que o agente estatal afirme ter recebido uma ligação anônima, sem que indique quem fez a denúncia, nem mesmo o número de telefone, dizendo que havia chegado droga, na casa “x”, bem como que “acharam” que havia droga porque era um traficante conhecido, muito menos que pelo comportamento do agente “parecia” que havia droga. É preciso que o flagrante esteja visualizado ex ante. Inexiste flagrante permanente imaginado[3]. Assim é que a atuação policial será abusiva e inconstitucional, por violação do domicílio do agente, quando movida pelo imaginário, mesmo confirmado posteriormente. A materialidade estará contaminada pelos frutos da árvore envenenada[4].

Embora seja uma prática rotineira a violação da casa de pessoas pobres, porque a polícia não entra assim em moradores das classes ditas altas (veja o video abaixo), não se pode continuar tolerando a arbitrariedade.

Desde há muito se sabe — e os policiais não podem desconhecer a lei — que não se pode entrar na casa de ninguém (CPP, art. 293), pobre ou rico – sem mandado judicial, salvo na hipótese de flagrante próprio. Nem se diga que depois se verificou o flagrante porque quando ele se deu já havia contaminação pela entrada inconstitucional no domicílio. Castanho de Carvalho aponta:

“Em conclusão, só é possível o ingresso em domicílio alheio nas circunstâncias seguintes: à noite ou de dia, sem mandado judicial, em caso de flagrante próprio (CPP, art. 302, I e II), desastre ou prestação de socorro; e durante o dia, com mandado judicial, em todas as outras hipóteses de flagrante (CPP, art. 302, III e IV). Reconheço que a falta de estrutura do sistema investigatório brasileiro, tornando inviável o contato próximo e a tempo com a autoridade judiciária, possa fazer com que o entendimento exposto se transforme em mais um entrave burocrático à persecução penal. Não é essa a intenção, mas não se pode aceitar que a doutrina fique à mercê da boa-vontade dos governantes para dotarem a polícia dos recursos técnicos e humanos necessários para o desempenho da função.”[5]

Cabe destacar julgado relatado pelo desembargador Geraldo Prado, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (Apelação Criminal 2009.050.07372, verdadeira aula de como se deve proceder na garantia de Direitos Fundamentais:

“PROVA ILÍCITA. INVIOLABILIDADE DO DOMICÍLIO, INTIMIDADE, VIDA PRIVADA E DIREITO AO SILÊNCIO. CONSEQUENTE ABSOLVIÇÃO. Apelantes condenadas pela prática dos crimes definidos nos artigos 171, § 2.º, inciso V, na forma do artigo 14, inciso II, 299 e 340, todos do Código Penal. Prova ilícita. Ingresso indevido no quarto de hospedagem das acusadas. Inviolabilidade de domicílio, da intimidade e da vida privada (artigo 5.º, incisos X e XI, da Constituição da República). Rés que não foram informadas de seu direito ao silêncio (artigo 5.º, inciso LXIII, da Constituição da República). Apreensão dos bens falsamente furtados, portanto, ilícita. Prova oral que, decorrente exclusivamente dessa apreensão, também se revela ilícita. Desaparecimento da materialidade do crime. Absolvição.”

Consta do voto:

“O ingresso não pode decorrer de um estado de ânimo do agente estatal no exercício do poder de polícia. Ao revés, é necessário que fique demonstrada a fundada – e não simplesmente íntima – suspeita de que um crime esteja sendo praticado no interior da casa em que se pretende ingressar e que o ingresso tenha justamente o propósito de evitar que esse crime se consume. Se assim não fosse, seria permitido ingressar nas casas alheias, de forma aleatória, até encontrar substrato fático, consistente em flagrante delito, capaz de ensejar a formal instauração de procedimento investigatório criminal. Mais que isso, seria incentivar que a autoridade policial assim fizesse e, com a intenção de se livrar de uma eventual imputação de abuso de autoridade, encontrasse à força o estado de flagrância no domicílio indevidamente violado.”

Assim é que não se podem tolerar violações de Direitos Fundamentais em nome do resultado, pois pelo mesmo argumento seria legítima a tortura, a qual, no fundo não é tão diferente da ação iniciada exclusivamente por denúncia anônima, à margem da legalidade, e com franca violação dos Direitos Fundamentais.

E quando o conduzido (já preso) autoriza ou seus familiares autorizam? Claro que o argumento seguinte é: mas o proprietário autorizou a entrada. Será que alguém acredita, mesmo, que o conduzido autorizou? Não há verossimilhança, ainda mais com o constante acolhimento jurisdicional dessa prática, mormente em se tratando de crime permanente, como de tráfico. A prevalecer essa lógica, a garantia do cidadão resta fenecida[6].

A Corte Suprema Espanhola possui julgado que pode nos servir de inspiração, como já indicou Diogo Fernandes. No julgamento do recurso 11277/2012 (STS 4761/2013), relatado pelo ministro Juan Gomez de La Torre, restou consignado que a proteção constitucional ao domicílio e concretiza pela própria proteção à inviolabilidade enquanto âmbito de privacidade, pela qual o sujeito é isento e imune a qualquer tipo de invasão de outras pessoas ou autoridades públicas e, decorrência da primeira, a impossibilidade de se adentrar salvo nos casos de flagrante, concordância expressa do titular ou decisão judicial (STC 22/1984), as quais possuem caráter taxativo (SSTC 136/2000).

Especificamente sobre o consentimento do interessado a Suprema Corte Espanhola emitiu diversos julgados (SSTS 1803/2002, 261/2006, 951/2007) reafirmando a necessidade do preenchimento de requisitos para que a manifestação da vontade seja considera válida, desprovida de pressão psicológica que impeça de exercer seus direitos constitucionais. Em decorrência dos diversos julgados (SSTS 1803/2002, 261/2006 e 922/2010), os requisitos, tendo em vista a normativa brasileira, são os seguintes:

a) Outorga por pessoa capaz, maior de idade e no exercício de seus direitos.

b) Outorga consciente e livre, a qual requer: b1) que não esteja invalidade por erro, violência ou intimidação de qualquer modo; b2) que não seja condicionada a alguma circunstância periférica, como promessas de qualquer atuação policial; b3) que se o consentimento for de pessoa que estiver presa/conduzida, não pode validamente prestar o consentimento se não tiver antes a assistência de um defensor, do que constará da diligência policial (STS 2-12-1998). Isso porque se a assistência de defensor é necessária para que o conduzido preste declarações, dado o prejuízo aos seus direitos, o consentimento também o será, dada a “intimidação ambiental” ou “a coação que a presença dos agentes da atividade representa.” (STS. 831/2000).

c) Pode ser prestada oral ou por escrito, porém sempre vertida documentalmente.

d) Deve ser outorgada expressamente, não servindo o silêncio como consentimento tácito, em face do princípio in dubio pro liberdade (SS. 7.3 y 18.12.97 e S. 23.1.98).

e) Deve ser outorgado pelo titular do domicílio. A relação jurídica entre o titular do direito e sua salvaguarda deve prevalecer, não sendo necessária a propriedade. Em caso de múltiplos titulares algum deles pode conferir desde que não tenha interesses contrapostos, nem esteja no âmbito da pressão psicológica (STS. 779/2006).

f) O consentimento deve ser outorgado para um caso concreto, sem que seja usado para fins distintos, ou seja, vigora a especialidade da busca. (STS, sentença de 6 de junho de 2001).

Respeito às regras do jogo processual. Nem mais, nem menos. Por tais razões, diante das condições em que a materialidade continua sendo apreendida neste país, em franca violação dos direitos fundamentais, a prova deve ser declarada ilícita, especialmente nos casos de ilegal denúncia anônima, bem assim quando a atuação dos agentes do Estado acontece sem mandado judicial, salvo no caso de fragrante posto, implicando, pois, na ilegalidade da apreensão e, por via de consequência, da ausência de materialidade na maioria dos casos em que se tiver coragem. Também é ilegal, após a prisão em flagrante, conduzir-se o sujeito até sua residência, sem manifestação do defensor, dada a intimidação ambiental e constrangimento que a prisão proporciona. Não se pode acovardar em nome do resultado, uma das faces do populismo penal e do mantra do crime permanente. A função do Judiciário é de garantia das regras do jogo, saindo do transe que o mantra proporciona[7].

Referências

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