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Injustiça epistêmica no processo penal brasileiro (parte 2)

O artigo aborda a análise da injustiça epistêmica no processo penal brasileiro, com foco em julgados do Superior Tribunal de Justiça (STJ) que refletem sobre a distribuição desigual de credibilidade entre as partes envolvidas. Os autores exploram precedentes que destacam a supervalorização do testemunho policial em detrimento da versão do acusado, especialmente quando este é de grupo social marginalizado. A discussão se concentra em como essa dinâmica configura injustiças epistêmicas e sugere que decisões judiciais devem ser mais racionais e justas, respeitando a agência epistêmica dos acusados.

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Na semana passada, abordamos a partir de exemplos as ocorrências recorrentes de injustiça epistêmica no processo penal brasileiro. No presente artigo, com base em alguns precedentes do Superior Tribunal de Justiça, analisaremos ferramentas epistêmicas que podem contribuir para a formulação de decisões mais racionais e justas.

A injustiça epistêmica entrou oficialmente em pauta no STJ por ocasião do julgamento do AREsp 1.940.381/AL [1]. Neste primeiro precedente, os ministros reconheceram a chamada injustiça epistêmica testemunhal diante da distribuição equivocada de credibilidade. A procedência da representação, posteriormente revertida em absolvição, embasava-se exclusivamente nos testemunhos indiretos de um bombeiro e de um policial militar, ao passo que a versão apresentada pelo representado – um jovem negro, em situação de rua – de que agira em legítima defesa da namorada havia sido ignorada pelas instâncias formais de controle, dando ensejo, inclusive, ao reconhecimento pelo Tribunal da Cidadania da teoria da perda de uma chance probatória.

Situações como a acima narrada descortinam como as assimetrias sociais reverberam em assimetrias jurídicas, sendo comum que a hipótese fática que acusa o jovem negro periférico seja automaticamente tida como mais confiável, sem que, entretanto, exista razões para isso.

No segundo precedente acerca da temática – AREsp 1.936.393/RJ [2] –, o relator do acordão, ministro Ribeiro Dantas, jogou luzes sobre o “excesso de credibilidade prejudicial” que o Judiciário confere às palavras dos policiais, e propôs a tese segundo a qual “a palavra do agente policial quanto aos fatos que afirma ter testemunhado o acusado praticar não é suficiente para a demonstração de nenhum elemento do crime em uma sentença condenatória. É necessária, para tanto, sua corroboração mediante a apresentação de gravação dos mesmos fatos em áudio e vídeo”.

A tese acima referida restou vencida pela dissidência lançada pelo ministro Joel Ilan Paciornik (seguido pelos ministros Jesuíno Rissato e Jorge Mussi), no sentido de que a palavra do policial é, em tese, idônea para embasar um decreto condenatório.

Não obstante a divergência acima referida, o julgamento resultou na absolvição do recorrente, e, em um movimento disruptivo à supervalorização da palavra dos policiais, restou assentado que “o testemunho [policial] prestado em juízo deve ser valorado, assim como acontece com a prova testemunhal em geral, conforme critérios de coerência interna, coerência externa e sintonia com as demais provas dos autos”. Essa diretriz epistêmica vem sendo adotada também pela 6ª Turma do STJ [3].

Convém ressaltar que o objetivo não é anular toda e qualquer versão apresentada pelos policiais, pois, se assim o fosse, restaria caracterizado um déficit de credibilidade prejudicial. O depoimento policial deve ser racionalmente valorado tal como o das demais testemunhas, observando se atende aos critérios de consistência, verossimilhança, plausibilidade e completude da narrativa, além de ser compatível com o restante do acervo probatório dos autos.

Na visão do ministro Ribeiro Dantas, a recepção acrítica das versões policiais pelos agentes encarregados da persecução penal configura, além da injustiça epistêmica testemunhal, também a injustiça epistêmica hermenêutica, porquanto inexiste no dicionário das agências encarregadas da persecução penal vocabulário apto a demonstrar qualquer forma de ceticismo com relação às declarações desses agentes públicos [4].

Outro precedente que merece destaque nessa saga do STJ em construir dinâmicas epistêmicas justas diz respeito ao REsp 2.037.491-SP [5], ocasião em que a 6ª Turma reconheceu a existência de diversas injustiças epistêmicas em desfavor do réu e fixou a seguinte tese: “o exercício do direito ao silêncio não pode servir de fundamento para descredibilizar o acusado nem para presumir a veracidade das versões sustentadas por policiais, sendo imprescindível a superação do standard probatório próprio do processo penal a respaldá-las”.

Esse julgamento diz respeito a um caso no qual o réu havia sido absolvido na primeira instância. No julgamento da apelação interposta pelo Ministério Público, o tribunal decidiu pela condenação do apelado, e o fez sob o fundamento de que a negativa do acusado por oportunidade do interrogatório judicial era mera tática para se esquivar da condenação, uma vez que tinha ficado em silêncio no interrogatório na delegacia de polícia. Na visão dos desembargadores julgadores, a autoria delitiva restara comprovada pela palavra dos policiais, inclusive no sentido de que houve confissão informal do acusado no momento da prisão.

A 6ª Turma, ao julgar o recurso especial ora comentado, absolveu o recorrente e reconheceu a configuração da injustiça epistêmica testemunhal diante da supervalorização das palavras dos policiais, bem como da injustiça epistêmica agencial, uma vez que o tribunal optou por conferir credibilidade à palavra do réu justamente no momento em que a sua agência estava mais reduzida – na suposta confissão informal relatada pelos policiais.

Cumpre ressaltar que a injustiça epistêmica agencial configurada pela valorização de suposta confissão informal em detrimento da retratação judicial era algo recorrente na práxis da justiça criminal brasileira. Optamos pelo uso do “era” porque diante dos parâmetros fixados pelo STJ nos autos do AREsp 2.123.334/MG [6], a confissão extrajudicial informal tornou-se inadmissível no processo penal brasileiro. Vejamos, in verbis, a tese fixada:

“A confissão extrajudicial somente será admissível no processo judicial se feita formalmente e de maneira documentada, dentro de um estabelecimento estatal público e oficial. Tais garantias não podem ser renunciadas pelo interrogado e, se alguma delas não for cumprida, a prova será inadmissível. A inadmissibilidade permanece mesmo que a acusação tente introduzir a confissão extrajudicial no processo por outros meios de prova (como, por exemplo, o testemunho do policial que a colheu)”.

A bem da verdade, a confissão extrajudicial verbal não é tecnicamente uma confissão. No momento da abordagem, o autuado está emocionalmente debilitado e desacompanhado de defensor. Essas circunstâncias somadas à pressão policial – muitas vezes, concretizadas por meio de violência física – para que colabore com as investigações anulam a voluntariedade do ato, que é requisito imprescindível da confissão.

A admissão dessa “confissão” informal no processo penal era a porta de entrada para a materialização de uma das formas de injustiça epistêmica agencial, porquanto, primeiro, suprime-se ou mitiga-se a agência do acusado, para depois se superdimensionar o valor dessa “confissão” no processo penal correspondente.

Do ponto de vista formal, o acusado poderia se retratar da confissão informal por oportunidade do seu interrogatório. Contudo, em regra, os julgadores, paradoxalmente, preferiam conferir credibilidade à suposta versão apresentada pelo acusado quando ele tinha menor agência, configurando, nas palavras de Medina, um desempoderamento epistêmico. Sobre a temática, Lackey [7] identifica uma correspondência entre o atual sistema de justiça criminal e as práticas desenvolvidas nas antigas Atenas e Roma:

“assim como os tribunais atenienses e romanos consideravam o testemunho de pessoas escravizadas como confiável quando obtido por meio de tortura – e, portanto, oferecido em condições desprovidas de agência epistêmica – também nossos tribunais privilegiam o testemunho de pessoas que confessam mesmo quando tais confissões são extraídas por meio de técnicas de interrogatório que comprometem ou minam a sua agência epistêmica”.

Vale ainda frisar que a parte final da tese acima mencionada veda que o órgão acusatório se valha de qualquer subterfúgio para introduzir no processo a prova inadmissível (entrevista verbal) sob as vestes de uma prova lícita (prova testemunhal, por exemplo). De fato, tornar-se-ia inócua a inadmissibilidade da confissão verbal caso o seu suposto conteúdo pudesse ingressar na esfera de conhecimento do julgador, podendo, por conseguinte, interferir no resultado do julgamento.

Embora o interrogatório seja o último ato da instrução, de forma que o réu pode, em sede de autodefesa, contradizer a versão dos agentes estatais, é cediço que, em tais situações, em uma típica configuração de injustiça epistêmica testemunhal, o magistrado tende a fazer uma distribuição equivocada de credibilidade, fazendo prevalecer a palavra do policial em detrimento da versão do acusado por meros preconceitos identitários.

Destarte, a inadmissibilidade da “confissão” extrajudicial no processo penal também configura uma importante ferramenta de combate às injustiças epistêmicas.

Em arremate, concluímos que os precedentes apontados no decorrer desse texto atestam o engajamento do Tribunal da Cidadania em corrigir as injustiças epistêmicas no processo brasileiro, valendo-se, para tanto, das reflexões teóricas acerca da matéria.

Indubitavelmente, esse entrosamento entre boas teorias e boas práticas qualifica a atividade jurisdicional, porquanto uma decisão judicial somente é legítima quando fruto de um debate democrático, no qual as versões das testemunhas e do acusado sejam alvos de uma valoração racional, sem que o julgador tenha predisposição para considerar um depoimento como verdadeiro ou falso, por meros preconceitos identitários ou pela condição da pessoa estar desprovida de sua agência epistêmica.

[1] STJ, AREsp 1.940.381/AL, Relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. em 14/12/2021.

[2] STJ, AREsp 1.936.393/RJ, relator Ministro Ribeiro Dantas, Quinta Turma, j. em 25/10/2022.

[3] Nesse sentido, vide: STJ, HC 742.112/SP, relator Min. Rogério Schietti Cruz, Dje 30/03/2023.

[4] DANTAS, Marcelo Navarro Ribeiro; MOTTA, Thiago de Lucena. Injustiça epistêmica agencial no processo penal e o problema das confissões extrajudiciais retratadas. In. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 9, n. 1, p. 129-166, jan.-abr. 2023, p.144.

[5] STJ, REsp 2.037.491-SP, rel. min. Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, por unanimidade, j. em 6/6/2023.

[6] STJ, AREsp 2123334/MG, Relator Ministro Ribeiro Dantas, 3ª Seção, j. em 20/06/2024.

[7] LACKEY, Jennifer. Injustiça testemunhal criminal. Tradução de Breno R. G. Santos e Janaina Matida. São Paulo: Marcial Pons, 2024. p. 32, 102 e 103.

Referências

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