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Gina Muniz: Habeas Corpus: de garantia a instrumento punitivista

O artigo aborda a crítica à decisão de um juiz que, ao considerar uma prisão em flagrante ilegal, determinou a prisão preventiva do acusado em um pedido de Habeas Corpus. A autora destaca a subversão do Habeas Corpus, um remédio constitucional essencial para a proteção da liberdade, transformando-o em um instrumento da justiça penal punitivista. O texto enfatiza a importância do respeito às garantias individuais e o perigo de decisões que comprometem a imparcialidade judicial e o modelo acusatório estabelecido pela Constituição.

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Recentemente, uma decisão de um juiz plantonista do Tribunal de Justiça da Bahia foi alvo de severa crítica dos penalistas. Explica-se: a Defensoria Pública ingressou com Habeas Corpus pleiteando o relaxamento de uma prisão em flagrante ilegal. A nulidade processual foi reconhecida pelo magistrado, mas, ao invés da expedição do alvará de soltura, o julgador decretou de ofício a prisão preventiva. Trata-se de uma decisão teratológica.

No Brasil, entretanto, assistimos nos últimos tempos a uma tentativa de dizimar o instituto do Habeas Corpus. Citamos, para embasar essa afirmação, a resistência à figura do Habeas Corpus coletivo [1], bem como a adoção do instituto civilístico da suspensão da liminar em sede de ação de Habeas Corpus [2]. Agora, e eis o ponto fulcral do presente artigo, a subversão da essência do remédio constitucional da liberdade, com a determinação de prisão do paciente.

Como, em ação autônoma de impugnação cujo objeto é a liberdade do acusado, a prestação jurisdicional pode ser concretizada com a decretação de uma prisão? Estaria o juiz decidindo fora dos limites do pedido, em total afronta ao princípio da correlação e, inclusive, proferindo uma malfadada “decisão supresa”. O magistrado que pretende (inconstitucionamente) agir de ofício deve apresentar previamente seus fundamentos jurídicos para que as partes possam apresentar seus contra-argumentos, consoante o brocardo latino “audiatur et altera parte”. Outrossim, essa atuação de ofício afronta ainda o sistema acusatório.

A famigerada decisão judicial de conversão de ofício da prisão em flagrante em prisão preventiva é um ranço inquisitório que precisa ser extirpado da práxis penal. A nossa Constituição Federal fez opção por um modelo acusatório de processo penal. Essa escolha foi ratificada pela Lei nº 13.964/19 (pacote “anticrime”), que, entre as mudanças introduzidas no CPP, vedou expressamente a decretação de ofício da prisão preventiva, bem como das medidas cautelares diversas da prisão.

A proibição expressa de que o juiz não pode decretar de ofício prisão preventiva em qualquer fase da persecução penal serviu de fundamento para que o STJ firmasse entendimento pela vedação da conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva (STJ, RHC nº 131.263/GO, relator ministro Sebastião Reis Júnior, 3ª Seção, julgado em 24/2/2021, DJe 15/4/2021 [3]). Posicionamento contrário não encontra guarida no sistema acusatório porque substancialmente inexiste diferença entre a prisão preventiva precedida de liberdade ou decorrente de conversão da prisão em flagrante

A imparcialidade do julgador — princípio supremo do processo penal — resta maculada quando o magistrado decreta de ofício uma prisão preventiva. A teoria da dissonância cognitiva [4] explica que, quando um juiz impõe de ofício uma segregação cautelar, sua postura ativa contamina, muitas vezes involuntariamente, suas posteriores decisões no curso do processo. No caso da decisão referida neste artigo, a parcialidade é gritante, pois um juiz que decreta uma prisão em sede de Habeas Corpus age com nítida tendência acusatória.

A fundamentação utilizada pelo juiz para decretar uma prisão em sede de Habeas Corpus foi a garantia da ordem pública. Questiona-se o que vem a ser, com precisão, ordem pública. Trata-se de um conceito vago e genérico, que permite que os aplicadores do Direito o preencham de forma variada, quando sabemos que o processo penal sujeita-se ao princípio da legalidade e taxatividade. Para agravar ainda mais a situação, os juízes, em sua maioria, utilizam uma mera lógica subsuntiva para decretarem prisões preventivas: limitam-se a enumerar que o caso concreto configura ameaça à ordem pública, como se o texto prescindisse de uma concretização normativa, olvidam a fundamentação das suas decisões e a apresentação de embasamentos empíricos.

Com efeito, na dialética que se estabelece entre prisão provisória e liberdade individual, vale ressaltar as palavras de Juarez Tavares: “A garantia e o exercício da liberdade individual não necessitam de qualquer legitimação, em face de sua evidência” [5]. Em que pese essa constatação teórica, vislumbra-se que na prática forense, a exemplo do aconteceu no caso ora comentado, é aplicada prisão preventiva com cariz de pena antecipada para suprir a insuficiência estatal no seu papel de garantir a segurança pública da sociedade e combater a criminalidade.

É importante, contudo, frisarmos que, independentemente da fundamentação utilizada, o magistrado não poderia ter decretado a prisão do paciente. Esse é o busílis! O Habeas Corpus existe para tutelar o direito fundamental à liberdade. Prisão em flagrante reconhecidamente ilegal reclama uma única solução jurídica: o relaxamento da prisão. O juiz não pode, em nenhuma fase da persecução penal, independentemente do crime cometido — a despeito da gravidade abstrata ou em concreto do delito —, decretar prisão de ofício.

Admitir intoleráveis restrições ao Habeas Corpus ou a outros direitos e garantias fundamentais conquistados em lutas seculares, sob o pretexto de combater a violência e/ou evitar a impunidade, é atentatório ao Estado democrático de Direito. “É um erro grosseiro acreditar que o chamado discurso das garantias é um luxo ao qual se pode renunciar nos tempos de crise” [6].

A função de um processo penal assentado no valor da pessoa e de sua liberdade, mesmo que vigore um verdadeiro negacionismo em torno dessa questão, é conter — e não expandir — o poder punitivo estatal. Somente nos regimes autoritários prefere-se punir a proteger inocentes. Lamentável que a crise paradigmática do processo penal consiga transmudar um remédio constitucional de cunho garantista em instrumento da sanha punitivista.

[1] Sobre a matéria, vide NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. A quem interessa vedar o HC coletivo. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2020-nov-16/opiniao-quem-interessa-vedar-habeas-corpus-coletivo, acesso em: 29/1/2022.

[2] Acerca da temática, vide NEWTON, Eduardo Januário; MUNIZ, Gina Ribeiro Gonçalves; ROCHA, Jorge Bheron. Suspensão da liminar em HC no caso da Boate Kiss é terraplanismo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/opiniao-suspensao-liminar-hc-boate-kiss, acesso em: 29/01/2022.

[3] Colacionamos decisões da 2ª Turma do STF também no sentido de vedação da conversão de ofício da prisão em flagrante em preventiva: HC 186.421/SC e HC 188.888/MG, ambos de relatoria do ministro Celso de Mello.

[4] LOPES JR, Aury. Direito Processual Penal. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 71-74

[5] TAVARES, Juarez. Teoria do Injusto Penal. 3ª ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 162.

[6] ZAFFARONI, Eugenio Raúl. O inimigo no direito penal. Tradução de Sérgio Lamarão. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2011, p.187

Referências

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