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A justa causa no acordo de não persecução penal

O artigo aborda a introdução do acordo de não persecução penal pela Lei 13.964/2019, discutindo seus requisitos e a importância da análise da justa causa na fase preliminar do processo penal. Os autores, Nereu Giacomolli e Marcos Eberhardt, enfatizam que a verificação da justa causa é fundamental para evitar a perseguição criminosa sem fundamento, preservando os direitos do acusado e as garantias constitucionais. A argumentação aponta a necessidade de um espaço adequado para a discussão das condições do acordo, evitando a mera imposição de pena e promovendo um verdadeiro diálogo entre as partes.

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A Lei 13.964/2019 introduziu no artigo 28-A do Código de Processo Penal mais uma modalidade de resolução consensual do caso criminal, o acordo de não persecução penal, sendo seus requisitos: 1) que infração penal não tenha sido cometida com violência ou grave ameaça; 2) que a pena mínima cominada abstratamente para aquela infração esteja em patamar inferior a quatro anos; 3) que exista confissão formal e circunstanciada da prática de infração penal; e 4) que as condições futuramente negociadas sejam necessárias e suficientes para reprovação e prevenção do crime. Além disso, na celebração do negócio jurídico, poderão ser exigidas, cumulativa e alternativamente, as seguintes condições: 1) reparação do dano ou restituição da coisa à vítima, saldo impossibilidade de fazê-lo; 2) renúncia a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; 3) prestação de serviço por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços; 4) pagamento de prestação pecuniária; ou 5) cumprimento, por prazo determinado, de outra condição indicada pelo Ministério Público.

A questão é que já na fase preliminar do processo penal é possível identificar a presença ou não de fatores com entidade suficiente e válida a dar início ou prosseguimento da persecutio criminis. Quando for possível verificar a presença de elementos vedatórios do oferecimento de uma pretensão acusatória ou do nascimento de um processo condenatório desprovido de conteúdo, ausente estará a justa causa à instauração ou continuação da fase preliminar do processo penal (ausência de um fundamento razoável à persecução criminal, notitia criminis genéricas, fatos atípicos, fatos prescritos, ausência de condição à persecução criminal — representação, v.g.). Fundamenta-se a verificação da justa causa, mesmo na fase preparatória do processo penal, na preservação dos valores fundamentais, consubstanciados em princípios e garantias, assegurados na Constituição Federal (constitucionalidade) e nos diplomas internacionais protetivos dos Direitos Humanos (convencionalidade). O atuar para o nada jurídico (ausência de justa causa) é incorporar o simbolismo da persecutio criminis, o paradigma do Estado policialesco e punitivista, em afronta à ordem democrática do Estado de Direito.

Mesmo que o CPP, aparentemente, apresente a confissão formal e circunstanciada como uma exigência prévia ao ANPP, nos mesmos moldes do plea bargaining [1], não estamos, no entanto, diante de um requisito [2], mas, sim, de uma cláusula padronizada do acordo, na qual o autor do fato admite expressamente que no dia “y” praticou o crime previsto no artigo “x” do Código Penal. Trata-se, portanto, de ato posterior ao oferecimento do ANPP, fazendo parte do conjunto de tratativas, não importando o conteúdo da versão defensiva pessoal ou técnica eventualmente constante no caderno inquisitorial [3]. Portanto, no tema que agora nos interessa, é preciso dizer que o exame da justa causa é anterior e independente da confissão do investigado. De outro lado, a confissão, caso previamente presente nos autos da investigação, poderá integrar a análise da justa causa desde que alinhada a outros indícios capazes de formar, em conjunto, a opinio delicti.

De uma maneira ou de outra, o exame da justa causa é etapa obrigatória ao oferecimento do acordo e isso é inegociável. Já passamos por isso antes. Hoje, 26 anos depois, a trajetória da transação penal no sistema jurídico penal brasileiro demonstrou, mais uma vez, que as mudanças normativas não operam, por si só, a necessária metamorfose cultural que, naquela época, deveria ter acompanhado a implementação desse microssistema [4] pela Lei dos Juizados Especiais. Não houve maturidade suficiente nem antes e nem depois. Desde então, o que menos se discutiu foi a problemática do caso criminal, ficando em cena apenas o diálogo sobre a pena a ser aplicada no acordo criminal, na transação penal. Até mesmo em relação à proposta de aplicação imediata de pena, o espaço de negociação sempre foi muito restrito [5] — para se dizer o mínimo. No mais das vezes, a proposta já estava nos autos, com parâmetros pré-determinados. Tratava-se e trata-se de uma proposta-formulário, utilizada rotineiramente em audiências que ainda hoje acontecem em brevíssimo intervalo de tempo. Foi nessa dinâmica, vivenciada em boa parte nas salas de audiência dos Juizados Especiais Criminais do Brasil, que a essência do acordo se diluiu. O caso criminal foi esquecido [6] e a transação penal não passou de mais uma oportunidade de imposição de pena [7]. A fase preliminar do procedimento sumaríssimo apenas excepcionalmente operou um controle de justa causa em relação ao conteúdo do respectivo termo circunstanciado ou relato constante da ocorrência policial [8]. O contraditório ao relato da vítima sempre foi postergado ao momento judicial, sob o argumento de que “não fazia parte daquela fase discutir o fato”. Essa perspectiva sempre desencorajou o autor do fato a enfrentar a fase judicial, estimulando-o, ao contrário, a aceitar a proposta de transação penal como se fosse uma vantagem consubstanciada, apenas por hora, numa reprimenda mais branda, como se nada mais pudesse ser feito naquela fase do procedimento [9].

Espera-se que o mesmo não ocorra com o ANPP. Faz-se mister um espaço de discussão da proposta e que as discussões e tratativas dialogadas terminem em condições que efetivamente possam ser cumpridas e tenham relação com a extensão do fato delituoso, considerando os limites ao excesso de acusação. Antes disso, porém, é sempre obrigatório o exame da justa causa pelo órgão acusador.

Muito embora recentemente o STJ tenha decidido monocraticamente que prevalece a boa-fé objetiva na celebração do acordo, sugerindo que eventuais ilegalidades como a atipicidade não merecem trânsito na via estreita do HC [10], o ato de acordar pressupõe boa-fé também na proposta, ou seja, no conteúdo mínimo de acusação exigido para que o investigado abra mão do devido processo legal. O exame de justa causa passa, evidentemente, pela postura do órgão acusador. Se assim não for, caberá ao juiz [11], no exame de legalidade do ANPP (artigo 28-A, §4º, CPP), recusar a homologação da proposta (artigo 28-A, §7º, CPP) e conceder Habeas Corpus de ofício nos termos do artigo 654, §2º, do CPP, pois diante de situação de constrangimento ilegal.

[1] Segundo VASCONCELLOS: “O guilty plea representa o reconhecimento da culpabilidade com relação aos fatos imputados, aceitando a imposição imediata de uma pena, renunciado a direitos fundamentais e não impondo a carga probatória ao acusador”. (VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Barganha e Justiça Criminal Negocial: análise das tendências de expansão dos espaços de consenso no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2015. p. 63.)

[2] Nesse sentido, cabe colacionar a decisão exarada recentemente nos autos da Ação Penal nº 5012070-97.2019.404.7000 que tem tramite na 14ª Vara Federal de Curitiba/PR: “Tratando-se de negócio jurídico entre partes que antagonizam, é de sua essência que cada parte abra mão de uma parcela de sua posição processual em prol de uma solução mais célere e mais benéfica, se comparada com uma eventual futura sucumbência. Nessa linha, a confissão do indiciado (neste caso do acusado), antes de ser requisito prévio ao acordo, é parte integrante dele. Ou seja, sua confissão é parte daquilo que o indiciado deverá estar disposto a entregar para ter direito aos benefícios propostos. Por certo, caso o MPF manifeste interesse em celebrar o acordo e expuser suas condições, o acusado sopesará com seu defensor sobre a conveniência de confessar o crime como uma das condições para celebrá-lo.”

[3] Nesse sentido, observe-se a orientação do roteiro para o ANPP do Ministério Público do Estado de São Paulo: “(…) a confissão somente será imprescindível no momento em que proposto o acordo, caso o investigado, acompanhado de seu defensor, demonstre a intenção de fazê-la, para o fim de ser beneficiado com o instituto despenalizador. Inclusive, de preferência, a confissão formal e circunstanciada da prática da infração penal deverá ser registrada em termo próprio Ministério Público do Estado de São Paulo”. Roteiro para o acordo de não persecução penal e a Lei 13.964/2019. Disponível em: . Acesso em: 17 out. 2021.

[4] V. GIACOMOLLI, Nereu José. Legalidade, Oportunidade e Consenso no Processo Penal na Perspectiva das Garantias Constitucionais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 312.

[5] Como bem elucida WUNDERLICH: “Muitas vezes a proposta de transação penal é formulada de forma idêntica para a resolução de todas as espécies de conflitos. Há casos da utilização de tabelas pré-fixadas para quantificar a transação penal, sendo a proposta realizada sem qualquer atenção à condição social e/ou econômica do autor do fato. (WUNDERLICH, Alexandre. Vítima no Processo Penal: impressões sobre o fracasso da lei no. 9.099/95. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo. Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.43-44.)

[6] Cf. CHIES, Luiz Antônio Bogo Chies. Por uma Utopia do Possível! Pretensas Contribuições a um Projeto de Reforma dos Juizados Especiais Criminais. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre/RS, v. 3, n.11, p. 82-96, 2003.

[7] CHIES, Luiz Antônio Bogo Chies. Por uma Utopia do Possível! Pretensas Contribuições a um Projeto de Reforma dos Juizados Especiais Criminais. Revista de Estudos Criminais, Porto Alegre/RS, v. 3, n.11, p. 82-96, 2003, p. 274.

[8] Conferir mais em: MIRANDA COUTINHO, Jacinto Nelson de. Manifesto contra os Juizados Especiais Criminais: uma leitura de certa ”efetivação” constitucional. In: WUNDERLICH, Alexandre; CARVALHO, Salo. Novos Diálogos sobre os Juizados Especiais Criminais. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. e ALMEIDA, Vera Ribeiro de. O consenso na justiça criminal do Rio de Janeiro: uma descrição etnográfica. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba, v. 16, n. 01, p. 107-130, jan.-jun., 2015.

[9] “A observação das práticas demonstrou que mesmo nas situações em que os acusados diziam ter prova em favor de sua inocência, foram induzidos a acreditar na fragilidade destas, diante da afirmação segundo a qual o promotor de justiça ”levaria em conta“ somente as declarações policiais. Essa afirmação representa a prevalência do conteúdo dos termos circunstanciados (documentos elaborados pelos agentes estatais), os quais se baseiam, quase exclusivamente, nas afirmações da vítima. Contribuiu também para a reduzida importância da fala do autor do fato criminoso a notícia de que o órgão de acusação ”não era mole“ – expressão mais tarde traduzida pela conciliadora com o sentido de que o referido promotor é uma ”pessoa séria“, ”experiente“, que ”não se deixava levar por qualquer alegação” e “sabia quando a parte estava mentindo“ – asseverada em tom aparentando aconselhamento, contudo, muito próximo da advertência, ou até mesmo da ameaça.” (ALMEIDA, Vera Ribeiro de. O consenso na justiça criminal do Rio de Janeiro: uma descrição etnográfica. Espaço Jurídico Journal of Law, Joaçaba, v. 16, n. 01, p. 107-130, jan.-jun., 2015. p.125).

[10] Trata-se de decisão monocrática proferida no HC nº 619751, que indeferiu liminarmente o pedido. Segundo a impetração, a defesa deduziu pedido de trancamento em razão de flagrante atipicidade de suposta infração penal de furto simples tentado em objeto avaliado em R$ 49,00 (quarenta e nove reais), em relação a qual foi celebrado ANPP. A decisão monocrática baseou-se na circunstância de que: “o acordo já foi aceito pela paciente, não parecendo razoável discutir, em ação autônoma, a existência de justa causa para oferecimento de denúncia, possível no caso, somente em caso de descumprimento do acordo firmado.” HC nº 619751, Min. Felix Fischer, DJe 15/12/2020.

[11] Como evidencia, Geraldo Prado, cabe ao juiz o exame da justa causa para evitar abusos processuais: “A atuação judicial é fundamental para filtrar as acusações e impedir os abusos, tolhendo a iniciativa do Ministério Público naqueles casos em que não há justa causa para a ação penal.” PRADO, Geraldo. A Transação Penal quinze anos depois. p.08.

Referências

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