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O processo de construção histórica da Double Jeopardy Clause

O artigo aborda a evolução histórica da cláusula de não dupla acusação, conhecida como Double Jeopardy Clause, destacando sua origem desde a Grécia Antiga e sua incorporação nos sistemas de direito romano e canônico, até sua formalização na common law e na Constituição dos EUA. Os autores discutem a importância dessa cláusula na proteção dos indivíduos contra a opressão do Estado, enfatizando que um acusado não deve ser julgado mais de uma vez pelo mesmo crime, a fim de garantir a justiça e evitar abusos do sistema judicial. Além disso, são analisados precedentes judiciais que moldaram a aplicação do princípio ao longo dos séculos.

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“The statute of 3 H. 7 is severe in overthrowing a fundamental point of law, in subjecting a man that is acquitted, to another tryal, which is putting his life twice in danger for the same crime; therefore the purview of 3 H. 7 ought to be taken strictly, and the exception favourably.” (Lord Holt, Court of King’s Bench, Armstrong v Lisle, 1697) [1].

A partir do século XIX, nas democracias liberais, ganha força um modelo de persecução penal ancorado na presença de uma acusação pública e, com ele, surgem regramentos que passam a disciplinar com maior intensidade os atos de investigação, instrução e punição, estabelecendo importantes regras sobre o encargo acusatório e probatório que estruturam a premissa de que ninguém pode sofrer múltiplas acusações e punições atreladas ao mesmo fato delituoso, se aqueles encargos não são alcançados pela acusação.

Em 335 a.C, na Atenas de Demóstenes (384 a.C – 322 a.C.), as leis igualmente proibiam que uma pessoa fosse julgada uma segunda vez pela mesma ofensa. Idêntico raciocínio pode ser extraído do Digesto do Justiniano (533, a.C.) que, incorporando a regra maxim nemo debet bis puniri pro uno delicto, pode ter sido uma das fontes que introduziu a regra no common law. Com a queda do império romano (476 d. C.), o direito canônico analogicamente proibiu o duplo julgamento pela mesma ofensa, espraiando o princípio no sistema legal continental e migrando posteriormente para o modelo inglês:

A regra, objetivando vetar um segundo julgamento, tinha igualmente uma função estratégica e política, pois impossibilitava que um clérigo já julgado por um tribunal eclesiástico pudesse ter a sua conduta novamente apreciada por um tribunal laico, garantindo assim uma forma de supremacia na administração da justiça pela igreja. A performance das cortes eclesiásticas em solo inglês foi uma forma de moeda de troca exigida pelo Papa Alexander II para apoiar William I (the Conqueror) quando da conquista da Inglaterra. Com isso, a igreja passou a projetar inúmeros cânones e clamar pela supremacia jurisdicional na ilha, especialmente quando Thomas Beket se torna arcebispo de Canterbury [4].

O século XII foi grandemente marcado pelo conflito envolvendo reis e a igreja, os quais lutavam pelo exercício da jurisdição e, com ela, pela dinâmica do poder e autoridade. Inúmeros incidentes explicitam a disputa entre os “dois mundos”, destacando-se os conflitos quanto ao direito de efetivar coroações; de poder se divorciar sem ser excomungado; e, especialmente, de recorrer ao poder papal como um segundo grau de jurisdição. “Praticamente todos os reis da Europa foram ou seriam ameaçados com interdito (uma sentença que proíbe a maioria dos cultos e sacramentos da igreja em todo um reino) ou excomunhão pessoal” [5]. Nesse contexto, era natural que ambos os lados lutassem pela autoridade de dar a última palavra nos litígios terrenos.

Considerando o ambiente belicoso que envolvia a disputa pelo poder, a Double Jeopardy Clause apenas passa a ganhar força no final do período medieval e se estabelece em definitivo na common law a partir do século XVII. A criação de uma barreira contra um segundo julgamento foi grandemente impulsionada, entre outros, por dois grandes fatores: (1) a ausência de regras que garantissem um fair trial, vez que era negado ao acusado, por exemplo, ser assistido por um defensor; ter conhecimento da acusação anteriormente ao julgamento; indicar testemunhas em seu favor, etc; (2) pela gravidade das penas impostas durante o período medieval e ao exponencial aumento de leis que instituíam a pena de morte para uma série de crimes:

Finalmente, em 1660, no caso R v Read, a Court of King’s Bench afirmou que a acusação não possui o direito de iniciar um novo julgamento quando o acusado restasse absolvido, eis que tal garantia estaria atrelada apenas ao acusado e para os casos de condenação. Porém, em 1664, no precedente R v James Turner and William Turner, a corte disciplinou que tal barreira não impediria a acusação de ofertar uma denúncia por crime diverso, por exemplo, caso um acusado restasse absolvido por roubo, a acusação ainda poderia processá-lo por furto. A diferenciação entre a teoria dos “mesmos elementos” em contraposição à teoria da “mesma conduta” (mais abrangente) seria objeto de acirrada discussão nos anos subsequentes.

Em 1721, William Hawkins pontuou (A Treatise of the Pleas of the Crown 442) que: “’está decidido, que uma corte não pode anular um veredito que absolve um acusado de uma acusação propriamente criminal, como parece que poderia ser feito quanto a um veredito que o condena em desconformidade com as provas e instruções do juiz’” [6]. No sistema de justiça inglês, havia uma grande preocupação com a atuação desmedida da acusação, especialmente quando ainda não existia a figura do acusador público, fato que acirrava ainda mais a disputa dos casos criminais que tangenciavam a pura vingança privada.

A vedação ao double jeopardy alcançou rapidamente as colônias norte-americanas, fazendo-se constar em várias leis. Na Body of Liberties de Massachusetts (1641): “No man shall be twise sentenced by Civill Justice for one and the same Crime, offence, or Trespasse” (C1 42); “Everie Action betweene partie and partie, and proceedings against delinquents in Criminall causes shall be briefly and destinctly entered on the Rolles of every Court by the Recorder thereof. That such actions be not afterwards brought againe to the vexation of any man” (C1 64). A Constituição de New Hampshire (1784) foi o primeiro bill of rights a adotar expressamente a codificação do princípio: “Article 1. No subject shall be liable to be tried, after na acquittal, for the same crime or offence”. Uma proteção ainda mais abrangente é encontrada na Constitution of the Commonwealth of Pennsylvania (1790): “Article IX. No person shall, for the same offence, be twice put in jeopardy of life or limb”. Atualmente a cláusula que proíbe o double jeopardy está consagrada na quinta emenda à Constituição dos Estados Unidos e possui a seguinte redação: “Nor shall any person be subject for the same offence to be twice put in jeopardy of life or limb” [7].

O tema fomenta uma diuturna discussão nas cortes e um dos seus precedentes mais significativo é estampado no caso United States v. DiFrancesco. O fundamento intrínseco da garantia está em proteger o acusado da opressão da persecução, assestou Justice Blackmun [8]. A superioridade de forças acusatórias e do Estado diante da defesa e o caráter politizado da estruturação do Ministério Público no sistema norte-americano são possíveis justificativas a embasar e vedar a interposição de recurso pela acusação [9].

No sistema de justiça americano a defesa precisar dispor de elevados recursos para fazer frente ao gabinete ministerial. Com isso, forçá-la a lutar um second round, especialmente quando não mais dispõe receitas, pode implicar na necessidade de partir para outra estratégia, como o plead guilty (uma forma de obrigação de confissão da prática delituosa). Outrossim, no segundo julgamento, a defesa inicia em clara desvantagem, uma vez que a sua tese já alcançou o pleno domínio da acusação e os jurados podem partir da premissa de que a mesma versão não deve ser aceita uma segunda vez.

Nesse sentido, no importante precedente Green v. United States, ressaltando a importância do caráter definitivo dos julgamentos, Justice Black destacou:

“A proibição constitucional contra o ‘double jeopardy’ foi projetada para proteger o indivíduo de ser submetido aos perigos do julgamento e de uma possível condenação mais de uma vez por um suposto delito. (…). A ideia subjacente, aquela que está profundamente enraizada ao menos no sistema Anglo-Americano de justiça, é a de que ao Estado, com todos os seus recursos e poder, não pode ser admitido a interpor repetidas demandas para condenar um indivíduo por uma alegada ofensa, desse modo sujeitando-o ao constrangimento, custos e sofrimento e compelindo-o a viver em um contínuo estado de ansiedade e insegurança, assim como realçando a possibilidade de que, mesmo inocente, possa ser considerado culpado” [10].

Conforme ressalta Blackmun, a importância de que os julgamentos tenham fim é de tamanha significância que seria preferível manter uma absolvição mesmo quando embasada em um fundamento flagrantemente errôneo, especialmente quando a decisão é emanada do Tribunal do Júri: “Onde o veredicto é do júri, existe sempre a possibilidade de que a absolvição reflita a prerrogativa dos jurados de absolver contra as provas” [11].

Considerando o tema que será abordado em breve pelo STF no ARE 1.225.185, precisa-se refletir sobre a garantia do double jeopardy com responsabilidade. Já destacamos nessa coluna algumas das questões a serem enfrentadas (aqui e aqui), entretanto, reafirmamos a necessidade de que a interpretação sempre respeite as garantias constitucionais e convencionais. O sistema acusatório precisa não apenas ser protegido, como também ampliado de modo a refletir um modelo verdadeiramente democrático.

[1] A decisão proferida por em 1697, por Lord Holt, na Court of King’s Bench, faz referência a uma lei promulgada por Henrique VII, em 1487, a qual permitia o duplo-processo (pelo rei, via indictment e também pelos parentes da vítima, por meio do appeal of felony) quando o acusado fosse previamente absolvido da acusação de homicídio. O presente precedente evidencia a tendência da jurisprudência na construção do princípio que veda um novo julgamento após a anterior absolvição.

[2] Segundo Coffey, “(…), pode-se especular que a Lei 5 foi uma das primeiras disposições legais registradas reconhecendo a injustiça de julgamentos e punições repetidos após julgamentos conclusivos e (presumivelmente) influenciou o reconhecimento e o desenvolvimento do princípio nas tradições jurídicas ocidentais”. (COFFEY, By Ger. A History or the Common Law Double Jeopardy Principle: From Classical Antiquity to Modern Era. In. Athens Journal of Law 2022, 8: 1-12).

[3] Idem.

[4] PLUCKNETT, Theodore F. T. A concise history of the Common Law. Estados Unidos: Liberty Fund, 2013, pos. 1561).

[5] JONES, Dan. The Plantagenets: The Warrior Kings and Queens who made England. Estados Unidos: Penguin Books, 2012, p. 60.

[6] LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée L.; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Wolters Kluwer Law & Business, 2009, p. 443.

[7] “Life” ou “limb” foram empregados de maneira metafórica e devem ganhar a leitura de “sanções criminais”. (AMAR, AKhil Reed. Double Jeopardy Law Made Simple. 106 Yale L.J. 1807 (1996-1997). Disponível em: https://bit.ly/3B68VbQ, com acesso em 25/08/2022.

[8] 449 U.S. 117, 101, S.Ct. 426, 66 L.Ed.2d 328 (1980).

[9] SIGLER, Jay A. Double Jeopardy: The Development of a Legal and Social Policy (1969). Apud. LANGBEIN, John H.; LERNER, Renée L.; SMITH, Bruce P. History of the Common Law. The Development of Anglo-American Legal Institutions. Estados Unidos: Wolters Kluwer Law & Business, 2009, p. 444.

[10] LAFAVE, Wyne R; ISRAEL, Jerold H.; KING, Nancy. Criminal Procedure, 3ª ed., Estados Unidos, West Group, 2000, p. 1162.

[11] Idem.

Referências

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