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O MP pode omitir prova desfavorável? Doping processual?

O artigo aborda a problemática da omissão de provas desfavoráveis pelo Ministério Público, defendendo que tal conduta configura uma obstrução à Justiça. Os autores, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa, ressaltam a importância de assegurar que todos os elementos relevantes para a defesa sejam incluídos nas investigações, propondo que o MP atue com imparcialidade e legalidade, evitando manipulações que comprometam a justiça processual. Eles introduzem o conceito de “doping processual” para criticar práticas desonestas que podem corroer a integridade do sistema judicial.

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Poderíamos para usar a vaga e imprecisa regra da obstrução à Justiça da Lei 12.850/13, para sugerir que o agente da Lei (membro do Ministério Público ou Delegado) que, dolosamente ou culposamente, “impede ou, de qualquer forma, embaraça a investigação de infração penal que envolva” pessoas humanas, no fundo, é um charlatão.

Em diversos campos há evidências de que se tenha manipulado interceptações telefônicas, não juntado indicadores favoráveis à defesa ou mesmo cindindo investigações para que a defesa não possa ter acesso a todos os dados. O processo penal estratégico cada vez mais é uma realidade. Mas diferente do defensor, cuja defesa se dá em face de um acusado, o Estado, por seus agentes, em qualquer que seja a investigação, não pode agir ilegalmente. Embora se tenha ampliado os tipos penais de abuso de autoridade recentemente, a prática do jeitinho investigatório e acusatório pode acontecer.

Justamente por isso surgiu a proposta de Anastacia-Streck, com a inserção de parágrafos no artigo 156, do Código de Processo Penal:

“§1º Cabe ao Ministério Público, a fim de estabelecer a verdade dos fatos, alargar o inquérito ou procedimento investigativo a todos os fatos e provas pertinentes para a determinação da responsabilidade criminal, em conformidade com este Código e a Constituição Federal, e, para esse efeito, investigar, de igual modo, na busca da verdade processual, as circunstâncias que interessam quer à acusação, quer à defesa. §2º O descumprimento do § 1º implica a nulidade absoluta do processo”.

A proposta é correta, necessária e salutar.

Entretanto, para sua defesa, a discussão não deve invocar a (im)possível imparcialidade do Ministério Público, com tentativas de justificar o injustificável, ou seja, de que se pode acreditar em Ministério Público imparcial. Sustentamos em nossos livros (Direito Processual Penal e Guia do Processo Penal conforme a Teoria dos Jogos, Aury e Alexandre, respectivamente, em edição 2020), o erro cognitivo de se acreditar que no embate narrativo e dialético o Ministério Público deva substituir a função do julgador.

A imparcialidade é do julgador e não das partes, sem que parcialidade signifique, por óbvio, jogar sujo. Todas as partes devem se comportar de modo probo e honesto, dentro dos limites da ética, ampliando-se as punições para o caso de agentes da lei violadores da regra.

Como já dissemos em outra oportunidade, o Ministério Público é uma parte artificialmente construída para ser o contraditor natural do sujeito passivo (afastada assim a contradição semântica de “parte-imparcial”, além de sua ilogicidade), na transição do sistema inquisitório para o acusatório, compreende-se como é importante que tenhamos partes claramente demarcadas para a construção da imparcialidade (também com lugar do juiz) do julgador.

Ou seja, o Ministério Público é fundamental para que se tenha um processo acusatório, com a retirada de poderes do juiz (poderes de iniciativa e gestão da prova) e a demarcação de parte ativa, parte passiva e julgador-não-parte (imparcial). Só assim se dá eficácia a outro princípio básico da jurisdição: ne procedat iudex ex officio.

Os que afirmam a possível imparcialidade confundem duas noções caras para nós: influenciar e manipular. Isso porque o contraditório significativo precisa ser revisitado, uma vez que não significa apenas ouvir as alegações dos jogadores, mas a efetiva participação, com paridade de armas e direito de influenciar na decisão, sem a existência de privilégios e surpresas, estabelecendo-se comunicação entre os jogadores, mediada pelo Estado julgador imparcial.

O dever de agir de todos contra o uso de prova ilícita/ilegítima, por exemplo, em nada se vincula ao dever da parte de articular narrativamente a respectiva influência para o fim de ver acolhida suas teses. Diferentemente é o fato de fraudar o processo com elementos viciados. A confusão decorre do fato de se misturar os momentos de a) requerimento da prova; b) deferimento; c) produção, e d) valoração. É que nos três primeiros momentos se deve agir conforme as regras de produção, momento em que se inserem os novos parágrafos da proposta de Lei, enquanto no último, a saber, na valoração, a capacidade argumentativa de influência da parte Ministério Público será fundamental.

Logo, não é preciso ou adequado invocar a imparcialidade do MP para sustentar algo tão óbvio: o MP, enquanto órgão estatal, é obrigado a observar os Princípios da Legalidade e da Impessoalidade. Portanto, é elementar que, como agente público, verdadeira parte-pública, jamais poderá licitamente omitir, embaraçar, manipular, a prova favorável à defesa.

E isso, diga-se de passagem, esse dever de investigar e trazer todos os elementos obtidos, sejam no interesse da acusação (que tem a carga probatória) ou da defesa (elementos de descargo), não é novo e tampouco uma criação tupiniquim, como muito bem demonstrou Lenio Streck em vários escritos e especialmente em certeiro artigo publicado no Estadão.

Basta uma rápida leitura no artigo 160 do CPP alemão ou no art. 358 do CPP italiano, cuja redação é bastante clara neste sentido, para compreender a proposta:

1. Il pubblico ministero compie ogni attività necessaria ai fini indicati nell’articolo 326 e svolge altresì accertamenti su fatti e circostanze a favore della persona sottoposta alle indagin.

Também é preciso rechaçar — como bem faz Lenio Streck — as tentativas infundadas de diminuir a importância da proposta, ou de distorção temática e manipulação de conceitos. Nessa perspectiva, seria preciso uma leitura bastante obtusa para afirmar que se está propondo a criação de um “promotor de defesa”. Nada mais equivocado. A proposta é de reforço da figura do “promotor de justiça”, que atue dentro da estrita legalidade e que não subtraia provas de descargo que venham ao seu conhecimento, pois isso significaria ilegalidade e injustiça, incompatíveis com seu lugar constitucionalmente demarcado.

Alexandre em seu Guia, fala da noção de doping processual, pelo qual o processo deve acontecer com boa-fé, valendo-se analogicamente do Estatuto do Torcedor (Lei 12.299/10, artigo 41-E), segundo o qual: “Fraudar, por qualquer meio, ou contribuir para que se fraude, de qualquer forma, o resultado da competição esportiva”. Talvez se possa aproveitar essa disposição para mostrar que o devido processo legal substancial deve ser levado a sério porque a fraude na competição opera efeito no resultado.

Divide-se em autodoping que se vincula às escolhas táticas dos jogadores processuais, isto é, a escolha por não apresentar uma prova, deixar de formular alguma pergunta, agir de forma sugestionável nos questionamentos etc.

Já o heterodoping, todavia, significa a inclusão de aspectos externos, como a corrupção, a coação de testemunhas, omissões de provas, utilização de provas ilícitas, de sistemas não acessíveis ao jogador adverso, enfim, para além das jogadas lícitas. No caso da acusação pública, via Ministério Público, diante dos princípios democráticos da atividade, não se pode aceitar o autodoping, como por exemplo, a exclusão de prova favorável à defesa, a manipulação da investigação, perguntas sugestionáveis, realização de reconhecimento sem linha de suspeitos, proporcionalidade em favor do Estado, utilização de argumentos para torcida midiática etc.

Assim é que, se no processo se precisa de juiz para garantir as normas do próprio jogo, a noção de doping pode ser útil para se pensar a superação da teoria das nulidades prevalecente, apontando que a fraude é o novo conceito, não mais em hipóteses expressas[1], mas para se entender o autodoping e o heterodoping, os quais, em situação de violação do devido processo legal substancial, podem gerar a violação do fair play (denúncias genéricas, utilização de declarações do inquérito policial e não renovadas, provas ilícitas, encontro fortuito, fishing expedition etc.). A utilização de prova ilícita, por exemplo, é uma forma de anabolizante probatório, em que são injetados métodos proibidos, para o fim de aumentar o rendimento processual.

Essa noção pode nos ser cara para entender que o desenrolar do jogo processual prevalece sobre o resultado. Mesmo com vitória processual, no fundo, o que há é fraude. Daí que se aponta a metáfora do doping como novo significante a ser, quem sabe, aprofundado e empregado na compreensão democrática de devido processo legal substancial, lido conforme a teoria dos jogos e do fair play, incluindo o venire contra factum proprium.

Precisamos superar os juristas fixados no complexo de Lance Armstrong, os quais podem até ganhar[2] e fazer boas ações (lembremo-nos da Fundação para tratamento do câncer), não fosse a vitória um engodo. Se ganham fraudando, cabe a lembrança de que, quem frauda, aceita que o outro também fraude e mais: joga sujo sempre, ainda que com boas intenções. Quem frauda não pode reclamar da fraude do oponente, porque lançou-se no campo da ilegalidade, por qualquer das razões (justas) que acredite. Por isso, nos lembra Agostinho Ramalho Marques Neto: “quem nos salva da bondade dos bons?

O doping manipula o dispositivo do processo penal, inserindo material ou método em desconformidade com as práticas democráticas, convertendo-se em uma condenação/absolvição dopada, suja, própria de charlatães. O charlatão não consegue jogar dentro das regras e aceita fraudar para ganhar. A atitude do trapaceiro viola para além de seu patrimônio pessoal e reputação, para transformar o dispositivo processual, cujas regras estão para além de sua disponibilidade. Vale recordar que o ciclista Lance Armstrong foi o herói nacional francês durante vários anos, ovacionado, capa de revistas, mas que ganhou o ostracismo de um falsário. Os títulos decorrentes das vitórias foram cassados, como também aconteceu com diversas operações miraculosas da Polícia Federal diante da descoberta de vícios procedimentais.

Alguém no futuro pode vazar uma manipulação e o efeito da proposta Anastacia-Streck é a de deixar claro que todo processo em que houver fraude é nulo. Nada mais, nada menos. O Ministério Público continua parcial, probo e agindo de boa-fé. Manipular prova é obstrução da Justiça.

[1] TUNALA, Larissa Gaspar. Comportamento processual contraditório: a proibição de venire contra factum proprium no direito processual civil brasileiro. Salvador: JusPodivm, 2015, p, 118-119: “Pode-se imaginar a dificuldade que teria o legislador ao tentar vislumbrar previamente todas as possíveis hipóteses de comportamentos processuais contrários à boa-fé. Qualquer tentativa de rol taxativo seria insuficiente para esgotar a criatividade das partes e seus procuradores em tentar driblar um resultado desfavorável no processo, sendo de fundamental importância a existência de uma cláusula aberta de pressão a condutas inadmissíveis. (…) É possível perceber o quanto se faz necessário que o conteúdo da boa-fé seja preenchido somente frente ao caso concreto, diante da relatividade que ele possui quando confrontado com diferentes contextos processuais”.

[2] Na Europa o ciclismo movimenta as massas e o Tour de France é acompanhado ao vivo pela mídia. De 1999 em diante sagrou-se campeão por sete vezes – por equipe e no individual. Estava lançada a sorte – e a marca – de um grande desportista, não fossem as vitórias maculadas pela utilização de EPO – eritropoietina – , droga que aumenta a produção de eritrócitos (glóbulos vermelhos do sangue) e melhora a eficiência aeróbica. Armstrong ganhou várias competições até 2012. E a casa caiu. Vale a pena assistir o filme ‘O programa’, de Stephen Frears, 2015.

Referências

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