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A parte geral orientadora do controle de constitucionalidade

O artigo aborda a relação entre a parte geral e a parte especial do Código Penal brasileiro, enfatizando a importância de uma interpretação alinhada com os princípios constitucionais. Discorre sobre as lacunas na aplicação prática dessas diretrizes e analisa casos recentes do STF que questionam a constitucionalidade de normas penais. A discussão aponta para a necessidade de uma abordagem científica que fortaleça a legalidade e a justiça no ordenamento penal.

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Introdução Existe em curso um movimento de renovação científica do estudo do Direito Penal no Brasil em geral, atentando a temas pontuais da parte geral e da parte especial do Código Penal. Mesmo assim, a qualidade das relações entre as partes geral e especial seguem recebendo pouca atenção científica e jurisprudencial [1].

A mitigação da relevância prática e dos efeitos jurídicos das diretrizes da parte geral na parte especial do Código Penal e na legislação penal extravagante têm sido observados cotidianamente. Muitas vezes, a interpretação do texto dos tipos incriminadores — por parte da bibliografia jurídica e da jurisprudência — desconsidera os cânones fundamentais do Direito Penal brasileiro. Tal fenômeno acontece provavelmente sem que exista intenção arbitrária de contrariedade à legalidade do Código Penal e da legislação extravagante.

O enfraquecimento do estudo científico do Direito Penal voltado à realização da Justiça deixa de indicar conceitos, critérios e princípios jurídicos que orientam todo o ordenamento penal, carecendo os poderes públicos de parâmetros científicos dos limites possíveis de interpretação dos tipos penais. Em última instância, a importância do estudo aprofundado da Constituição e da parte geral do Código Penal está na proteção da garantia da legalidade no Estado democrático de Direito (artigo 1º, da CF) com o objetivo de “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (artigo 3º, I, da CF).

As relações da parte geral com os tipos incriminadores A chamada parte geral é resultado do esforço reflexivo dos penalistas modernos no sentido de prever um conjunto sistemático de conceitos [2], regras e princípios a todos os crimes e penas previstos no ordenamento jurídico. A finalidade da parte geral é delimitar os limites e requisitos para a criminalização de condutas, estabelecer os elementos do crime e da responsabilidade penal, bem como orientar a interpretação dos tipos incriminadores e da aplicação das respectivas sanções (penas e medidas de segurança). No Brasil, a parte geral e a Constituição são as fontes legais das teorias jurídicas do delito (artigo 13 ao 25 do CP), da responsabilidade penal (artigo 26 ao 31 do CP), da sanção penal (artigo 32 ao 58 do CP) e da dosimetria da pena (artigo 59 ao 76 do CP).

A parte especial é o catálogo codificado dos crimes e das respectivas penas, não excluindo a possibilidade de existência de outros tipos incriminadores em legislações penais extravagantes ao Código Penal [3]. A diferenciação entre parte geral e parte especial tem fundamento sistemático sem que haja autonomização valorativa e dogmática radical entre as partes do mesmo ordenamento penal [4].

A relação da parte especial com a parte geral do Código Penal e a Constituição pode sempre ser avaliada pelo Tribunal Constitucional, assim como tem ocorrido no Brasil e nos países europeus. No Direito estrangeiro, destaque-se que a Itália — semelhante ao Brasil — possui um Código Penal de 1930, anterior à Constituição liberal-democrática de 1948 e do início do funcionamento do Tribunal Constitucional em 1956 [5]. Diante das tentativas frustradas de reforma global do Código Penal italiano — Comissione Pagliaro (1988), Grosso (1998), Nordio (2001) —, o Tribunal Constitucional tem atuado pontualmente sobre a não recepção de normas contrárias à Constituição desde a Sentença Constitucional n°1, em 1956, incluindo a eliminação absoluta de normas incriminadoras como os tipos de adultério, concubinato, vilipendio à religião do Estado [6].

Dois casos pendentes de julgamento e um recentemente julgado pelo STF Os dois exemplos pendentes de julgamento e o recentemente julgado pelo STF tratam do confronto do texto incriminador com a Constituição e com a parte geral do Código Penal.

1) Na ADPF n° 799 analisa-se a não recepção da Lei de Segurança Nacional pela Constituição, por confronto aos valores e princípios do artigos 1º e 5º, caput, da CF [7]. Destaque-se falta de taxatividade e segurança jurídica da lei penal (artigos 5º, XXXIX CF e 1º do CP) pela utilização de conceitos imprecisos [8], que, sob o pretexto vago de segurança nacional, confundem desarmonicamente a “honra dos agentes públicos” (para os quais já existem os crimes contra a honra do CP), as instituições do Estado de Direito (ainda sem proteção efetiva contra ataques que podem afetar o seu funcionamento) e a paz pública [9]. Há excesso de proteção da honra individual de agentes públicos, em desproporção à proteção da honra do cidadão, e há falta de repressão das condutas causadoras de ofensas às instituições democráticas e aos valores constitucionais da República Federativa do Brasil, em violação aos princípios da proporcionalidade (artigo 59 do CP), da causalidade (artigo 13 do CP) e da ofensividade (artigos 98, I da CF e 17 do CP).

2) No Recurso Extraordinário n° 635.659, avalia-se a constitucionalidade do artigo 28, da Lei n° 11.343/06 em relação ao princípio da ofensividade (artigos 98, I, da CF e 17 do CP) no sentido que: a) o resultado ofensivo causado (artigo 13 do CP) é contra bem jurídico de titularidade do autor da conduta e não de terceiro; e b) não há culpabilidade do autor da conduta por não ofender criminalmente bens de terceiros (artigos 29 e 59 do CP) [10]. Para além disso, a metodologia do controle de constitucionalidade do dever de proporcionalidade (artigos 1º, caput, 3, I, da CF e 59 do CP) concretiza-se nos conceitos da parte geral do Código Penal [11]. Nesse contexto, os direitos constitucionais à intimidade e à vida privada (artigo 5º, X da CF) — bem destacados no voto do relator —, à autonomia e à liberdade pessoal para o livre desenvolvimento da personalidade (artigos 1º, III e 5º, caput, da CF) encontram-se penalmente limitados em nome do suposto bem jurídico saúde pública. Em verdade, o rigor de certeza na interpretação do Direito Penal (artigo 1º do CP) aponta que o bem jurídico tutelado no crime de posse de drogas para consumo próprio é a saúde individual, ressaltando a ilegitimidade filosófica, constitucional e penal da intervenção penal para a tutela do bem diante da autolesão e da autocolocação em perigo [12].

3) O julgamento do Recurso Ordinário em Habeas Corpus nº 163.334 fixou o entendimento — pela maioria dos membros do pleno — no sentido de que “o contribuinte que deixa de recolher, de forma contumaz e com dolo de apropriação, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do artigo 2º, II da Lei nº 8.137/1990”. O STF acertou ao reconhecer a necessidade do dolo de apropriação para a configuração do tipo subjetivo, não bastando apenas o dolo de “deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social” [13]. Todavia persistem incompreensões na interpretação do tipo objetivo. Primeiro, ocorre a ampliação dos supostos eventuais autores da conduta criminosa, em detrimento das características do fenômeno tributário em questão e da orientação para interpretação taxativa do tipo (artigos 1º e 29 do CP). Segundo, a interpretação histórica da lei penal somente é autorizada quando em prol da liberdade (artigo 1º do CP), sob pena de ampliação incerta do mens legis em prejuízo da liberdade do cidadão. Por exemplo, a tentativa retroagir à compreensão do mundo e ao mens legislatoris na criação do CP poderia impedir a realização de transplantes e o desligamento de aparelhos respiradores de pacientes com morte cerebral, assim como interrupção da gravidez do feto anencéfalo. Ademais, o modelo clássico de crime fiscal no Direito Comparado é a fraude para redução da receita e não uma mera desobediência temporal dos deveres de adimplemento tributário [14]. Terceiro, a interpretação teleológica extensiva por força de interesses político-fiscais e político-criminais viola o princípio-regra da legalidade (artigo 1º do CP), o princípio da não culpabilidade (artigo 5º, LVII e LXVII [15]) e o direito de liberdade (artigo 5º, caput, da CF).

O STF pode orientar a interpretação e controlar a constitucionalidade dos tipos incriminadores e, para isso, a parte geral e a respectiva dogmática penal são os parâmetros clássicos, seguros e confiáveis.

[1] Ainda assim há estudo de referência, GOMES, Mariângela, Teoria geral da parte especial do direito penal, São Paulo: Atlas, 2014.

[2] FINCKE, Martin, Das Verhältnis des Allgemeinen zum Besonderen Teil des Strafrechts, Berlin: Schweitzer, 1975, p. 89.

[3] PULITANÒ, Domenico, Introduzione alla parte speciale del diritto penale, Torino: Giappichelli, 2010, p. 1.

[4] FINCKE, Martin, Das Verhältnis des Allgemeinen zum Besonderen Teil des Strafrechts, Berlin: Schweitzer, 1975, p. 1 e 89.

[5] PULITANÒ, Domenico, Introduzione alla parte speciale del diritto penale, Torino: Giappichelli, 2010. p. 8-9.

[6] PULITANÒ, Domenico, Introduzione alla parte speciale del diritto penale, Torino: Giappichelli, 2010, p. 8-9.

[7] REALE JÚNIOR, Miguel; WUNDERLICH, Alexandre, Parecer sobre Lei Segurança de Segurança Nacional e Defesa do Estado de Direito no Brasil, Consulente OAB, 2020, p. 8 e 74.

[8] LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano, Defesa do estado de direito por meio do direito penal, a experiência comparada e o desafio brasileiro, Consulente Conselho Federal da OAB, 2020, p. 6-7.

[9] LEITE, Alaor; TEIXEIRA, Adriano, Defesa do estado de direito por meio do direito penal, a experiência comparada e o desafio brasileiro, Consulente Conselho Federal da OAB, 2020, p. 7-8 e 51-52.

[10] RUIVO, Marcelo. O início do julgamento da inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para uso próprio (artigo 28 da Lei 11.343/2006), Boletim IBCCRIM, 2016, v. 281, p. 12-13.

[11] RUIVO, Marcelo, Legislação penal e ciências criminais: por uma teoria orientadora dos interesses político-criminais, RBCCRIM, 2018 v. 147, p. 602-610.

[12] RUIVO, Marcelo, O início do julgamento da inconstitucionalidade do crime de porte de drogas para uso próprio (artigo 28 da Lei 11.343/2006), Boletim IBCCRIM, 2016, v. 281, p. 12-13.

[13] Assim em WUNDERLICH, Alexandre; RUIVO, Marcelo, Parecer Apropriação indébita tributária: “Caso do ICMS declarado e não pago” (artigo 2º, II da Lei 8.137/90), Consulente Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul, 2019, p. 17-19.

[14] RUIVO, Marcelo, Os crimes de sonegação fiscal (artigos 1º e 2º da Lei 8.137/90): bem jurídico, técnica de tutela e elementos subjetivos, RBCCRIM, 2019, v. 160, p. 59-63; BUONICORE, Bruno Tadeu; MENDES, Gilmar; RIBEIRO, Juliana Queiroz; FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques, Reflexões sobre a criminalização do não recolhimento de ICMS declarado, RBCCRIM, 2020, v. 167, p. 133, 135 e 145.

[15] BUONICORE, Bruno Tadeu; MENDES, Gilmar; RIBEIRO, Juliana Queiroz; FERNANDES, Tarsila Ribeiro Marques, Reflexões sobre a criminalização do não recolhimento de ICMS declarado, RBCCRIM, 2020, v. 167, p. 136.

Referências

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