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Gina Muniz: Criança não é mãe!

O artigo aborda a situação de uma criança de 11 anos, grávida devido a um estupro, destacando as falhas das autoridades que exigiram autorização judicial para a interrupção da gravidez, mesmo com respaldo legal para o aborto humanitário. O texto critica o tratamento desumanizador que a criança enfrentou durante o processo judicial, evidenciando a violação de seus direitos e a revitimização por parte do sistema. A análise foca na necessidade de garantir a proteção integral das crianças, conforme previsto na legislação brasileira.

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Recentemente, o caso de uma criança de 11 anos de idade, grávida em decorrência de um estupro, ganhou os holofotes das mídias nacionais. O fato, por si só, já era doloroso, mas os comportamentos das autoridades estatais o tornaram ainda mais trágico. O escopo deste artigo, transcendendo qualquer discussão sob a ótica moral, política ou religiosa sobre a legalização do aborto, é tão somente discutir o caso à luz do ordenamento jurídico brasileiro.

A gravidez de uma criança necessariamente resulta de um estupro, pois a legislação penal brasileira tipifica como “estupro de vulnerável” (artigo 217-A do CP) a conduta de “ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 anos”. Nessas situações, a vulnerabilidade é presumida de forma absoluta pela lei. Nesse sentindo, o parágrafo quinto do artigo 217-A do CP, ratificado pelo entendimento consignado na Súmula 593 do STJ, dispõe que resta configurado o crime de estupro “independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime”.

A permissão legal para o aborto humanitário encontra guarida na dignidade da pessoa humana, afinal seria uma crueldade imensa obrigar uma mulher — principalmente quando se trata de uma criança — a manter uma gravidez indesejada fruto de uma violência sexual.

Na situação noticiada na mídia recentemente, a criança e a sua representante legal agiram, pois, na conformidade da lei, provavelmente mesmo sem conhecimento técnico para tanto: em razão da gravidez oriunda de um estupro, dirigiram-se ao hospital para a realização do aborto. No entanto, as autoridades médicas negaram o abortamento, sob a alegação de que a gestação já teria ultrapassado vinte semanas e que, portanto, seria imprescindível uma autorização judicial para a realização do procedimento.

É bem verdade que existem recomendações, sem força de lei, do Ministério da Saúde para a realização do aborto legal no prazo de 20 a 22 semanas de gravidez. Todavia, a Portaria nº 2.282, de 27/08/2020 do Ministério da Saúde, que dispõe sobre o procedimento de justificação e autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS), não limita o abortamento legal a qualquer idade gestacional, tampouco o condiciona à autorização judicial.

A lei penal também não exige que o aborto humanitário seja precedido de autorização judicial ou vinculado a qualquer tempo gestacional. Por conseguinte, qualquer disposição regulamentar interna de instituto hospitalar em sentido contrário viola o direito da gestante a interromper a gravidez resultante de estupro. A situação se agrava ainda mais quando a gestante é uma criança, pois os médicos sabem os riscos que uma gravidez representa para a saúde, e até mesmo para a vida, da infante [1].

Ademais, a exigência de autorização judicial para o aborto legal constitui mais uma violência para a mulher que já foi abusada sexualmente. A ida ao Judiciário implica, para além do desgaste emocional, mais exposição da experiência vivenciada, prolongação de uma gravidez indesejada e, por algumas vezes, ainda custos financeiros com a contratação de advogado.

Não bastassem todos os problemas acima elencados, ainda ressaltamos que esse processo desnecessário implica gastos aos cofres públicos e abarrota o Judiciário, atrapalhando a celeridade de outras demandas.

No caso ora comentado, em razão da (inadequada) negativa administrativa da autoridade médica, a criança, devidamente representada pela sua mãe, se dirigiu à autoridade judicial para a efetivação do seu direito ao aborto. Os fatos, por si só, dispensavam qualquer dilação probatória — afinal, como já explicado acima, uma gravidez aos 11 anos necessariamente resulta de um estupro —, e a questão poderia ser rapidamente resolvida mediante a concessão de um alvará autorizador do procedimento. Não obstante, optou-se pela designação de uma audiência, que se apresentou como uma verdadeira cerimônia degradante da dignidade da criança.

Durante a audiência, sugeriu-se à criança a continuidade da gravidez e posterior entrega para adoção do bebê: “Essa tristeza de hoje para a senhora e para a sua filha é a felicidade de um casal”. A solução do caso seria mesmo humanizar o feto e desprezar a dignidade da criança, tratando seu útero como uma incumbadora?! Questionou-se ainda à vítima do estupro qual nome ela escolheria para o bebê, mas se esqueceu que criança não é mãe! E ainda falou-se em autorização do pai para a adoção do bebê: estuprador não é pai! A mensagem trasmitida na audiência foi que o aborto seria mais repugnante que o estupro, ou seja, tentou-se imbutir um sentimento de culpa em quem não passava de uma vítima e assim deveria ter sido tratada.

Ademais, as diretrizes estabelecidas pela Lei 13.431/2017, conhecida como Lei do Depoimento Especial, para uma oitiva acolhedora, na qual a dignidade da criança seja respeitada e sua voz seja altiva o suficiente para interferir nas decisões que lhe dizem respeito, não foram observadas. As crianças, pela peculiar condição de pessoas em desenvolvimento, precisam ser ouvidas por uma equipe multidisciplinar especializada, em ambiento seguro e neutro.

Também foi desconsidera a Lei 14.245/2021 (Lei “Mariana Ferrer”), que trouxe mudanças à legislação penal e processual, que, nas palavras do próprio legislador, visam “coibir a prática de atos atentatórios à dignidade da vítima e de testemunhas”. A bem da verdade, assistiu-se à uma verdadeira revitimização [2] da criança nos trechos da audiência divulgados pela mídia.

Os trechos expostos na mídia sobre a aludida audiência, à toda evidencia, apontam que a criança foi vítima de violência institucional, atualmente tipificada como crime de abuso de autoridade, nos termos do artigo 15-A da Lei 13.869/19: “submeter a vítima de infração penal ou a testemunha de crimes violentos a procedimentos desnecessários, repetitivos ou invasivos, que a leve a reviver, sem estrita necessidade: I – a situação de violência; ou II – outras situações potencialmente geradoras de sofrimento ou estigmatização”.

Os crimes descritos na lei de abuso de autoridade exigem, no entanto, para a sua configuração, um elemento subjetivo especial — que raramente restará provado em casos concretos —, qual seja: o agente só comete o crime se: 1) agir com a finalidade específica de prejudicar alguém ou beneficiar a si mesmo ou a terceiro; ou 2) tiver praticado a conduta por mero capricho ou satisfação pessoal.

Para além da violência institucional, a criança sofreu violência física e psicológica materializadas, respectivamente, pela manutenção de uma gravidez que coloca em risco a sua saúde e pela ausência de uma oitiva acolhedora, além das mensagens subliminares para a continuação de uma gravidez indesejada e ainda o afastamento físico de sua genitora.

Embora o comportamento da juíza figure no centro das críticas, também merece atenção a complacência da promotora de justiça, que na qualidade de custos iuris, deveria velar pelo cumprimento da lei que autoriza o aborto em caso de estupro, e principalmente assegurar o respeito pela dignidade da criança.

Impede reconhecer que o pensamento aventado por um integrante do Ministério Público ou magistratura não pode ser estendido aos demais membros das instituições, que honram sua função e bem desempenham seu mister constitucional. E essa é inclusive mais uma razão para que as corregedorias do MP e do Poder Judiciário, às quais se vinculam os responsáveis pela dantesca audiência divulgada na imprensa, apurem as condutas de seus membros com o rigor que a gravidade do caso exige.

Prova de que o entendimento da magistrada e promotora que atuaram no caso não é comungado pelos demais membros de suas respectivas instituições é que, depois que o caso viralizou na mídia, o Ministério Público ingressou com uma ação requerendo autorização judicial para a interrupção da gravidez, e o pedido foi deferido.

Contudo, imperioso destacar que os direitos das crianças — ou de quem quer que seja — não podem ficar condicionados à atuação virtuosa de alguns magistrados ou promotores de justiça. É completamente ilegítima uma decisão judicial que se divorcia do arcabouço legal e constitucional para se embasar em uma pré-compreensão que o magistrado tenha sobre o tema objeto de julgamento (como o aborto, no caso concreto), em decorrência de questões pessoais (formação religiosa, educacional, profissional, social, etc.)

A autorização para interrupção da gravidez de quase 29 semanas só confirma que o direito da criança já existia com 22 semanas, e seria inclusive menos doloroso para todos os envolvidos se o procedimento tivesse sido autorizado por ocasião da fatídica audiência ou muito antes, porquanto desnecessária a prévia autorização judicial. No caso em questão, em diversas esferas, o Estado falhou gravemente no seu papel constitucional (artigo 227 da CF) de garantir a proteção integral da criança.

[1] Sobre os riscos de uma gravidez na infância, vide: https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/bbc/2022/06/22/gravidez-na-infancia-os-riscos-a-vida-de-uma-gestacao-precoce.htm, acesso em 22/06/2022.

[2] Entende-se por sobrevitimização ou vitimização secundária o tratamento dispensando às vítimas pelas instâncias formais de controle, que são aptos a lhe gerar danos semelhantes ou superiores aos causados pela incidência do delito.

Referências

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