Artigos Migalhas – O decreto 9.785/19 e o tiro presidencial pela culatra

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O decreto 9.785/19 e o tiro presidencial pela culatra

O artigo aborda a repercussão do decreto 9.785/19, que regulamenta o uso de armas, destacando como ele amplia significativamente a classificação de armas de fogo de uso permitido, favorecendo a posse e potencialmente retrocedendo penalizações. O autor, Fernando Antunes Soubhia, critica essa mudança, alertando para a possibilidade de benefícios legais a pessoas acusadas de posse irregular de armas, o que poderia desvirtuar a política de segurança pública. Além disso, argumenta que a decisão reflete uma impaciência popular e um desprezo pelo conhecimento especializado no debate sobre segurança.

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Com a evolução da comunicação em massa o envolvimento popular na política mudou o peso do que é percebido como opinião pública. Hoje, medidas propaladas como eficientes redutores de criminalidade são impacientemente traduzidas em políticas públicas ainda que não haja nenhuma evidência a suportar tal conclusão. Por outro lado, mudanças que possam provocar desaprovação coletiva passaram a ser repensadas mesmo que isso signifique ignorar as evidências disponíveis. O conhecimento especializado foi descartado, substituído por debates alimentados emocionalmente e pelo senso comum. Em resumo, a formulação de políticas de justiça criminal e segurança pública na modernidade tardia tornou-se a conversa de boteco.

Um exemplo dessa impaciência e populismo é o recente decreto 9.785/19, que dá nova regulamentação à lei 10.826/031. A intenção do presidente foi, evidentemente, ampliar as possibilidades lícitas de se adquirir e portar armas bem como de aumentar o potencial lesivo das armas disponíveis. Não basta armar a população. A ideia é armá-la até os dentes. Sem entrar no mérito administrativo da nova regulamentação, o fato é que uma das principais características do decreto foi a alteração do conceito de ‘arma de fogo de uso permitido’ e ‘arma de fogo de uso restrito, aumentando substancialmente o limite de energia cinética atingido pela munição na saída do cano. No caso das armas de fogo curtas ou de porte, o limite anterior era de até trezentas libras-pé ou quatrocentos e sete joules e o atual é de mil e duzentas libras-pé e mil seiscentos e vinte joules. Assim, houve um aumento de mil e novecentas libra-pé e mil, duzentos e treze Joules (aprox. 400% de aumento de potência). Nas armas de fogo longas ou portáteis raiadas, o limite anterior era de mil libras-pé ou mil trezentos e cinquenta e cinco Joules e o atual é de mil e duzentas libras-pé e mil seiscentos e vinte joules. Assim, houve um aumento de duzentas libras-pé e 265 Joules (aprox. 40% de aumento de potência). Por fim, as armas de fogo de alma lisa, que para serem consideradas de uso permitido anteriormente não podiam ter calibre superior a doze nem cano inferior a vinte e quatro polegadas, hoje não possuem limite algum. Assim, diversas armas que até o dia 6/5/19 eram consideradas de uso restrito passaram a ser consideradas de uso permitido, quais sejam:

1. Armas de fogo curtas ou de porte que, com a utilização de munição comum, atinjam, na saída do cano entre 300 e 1.200 libras-pé ou 407 e 1.620 joules.

2. Armas de fogo de alma lisa de calibre superior a 12 ou cano inferior a 24 polegadas.

3. armas de fogo longas ou portáteis raidas que, com a utilização de munição comum, atinjam, na saída do cano entre 1.000 e 1.200 libras-pé ou 1.355 e 1.620 joules.

É aqui que se encaixa uma circunstância não prevista pelo presidente ou, se foi prevista, talvez não tenha sido devidamente ponderada. Além de permitir a aquisição de verdadeiros canhões de mão, essa alteração beneficiará aqueles que respondem ou responderam pela posse ou porte de arma de fogo restrito, potencialmente exonerando-os de qualquer punição. Basta que a arma possuída ou portada se adeque a uma das hipóteses acima. Como se sabe, a retroatividade da lei penal está prevista no art. 5, XL, da Constituição Federal; no art. 9º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos e pelo art. 2 do Código Penal. Assim, se depois de perpetrado o delito, a lei estipular sanção menos gravosa, essa lei retroagirá para beneficiar o agente. No caso das normas penais em branco, ainda que a alteração ocorra apenas na norma complementar, se o comando proibitivo for afetado, a norma como um todo retroagirá quando benéfica. No caso, a nova definição de “armas de uso permitido” e “armas de uso proibido” está ligada diretamente ao comando proibitivo inserido nos tipos penais dos arts. 12, 14 e 16 da lei 10.826/03 e não possui natureza temporal ou excepcional. Assim, caso a alteração promovida pelo decreto 9.785/19 seja benéfica, ela deverá retroagir. Resta apenas identificar em quais casos a alteração promovida pelo decreto 9.785/19 será benéfica. Vejamos:

Hipótese 1 – pessoa acusada de posse de uma arma que era de uso restrito e deixou de sê-lo. Com a alteração, a conduta deixa de se subsumir ao art. 16 – pena 3 a 6 anos e multa – e passa a se subsumir ao art. 12 – pena 1 a 3 anos e multa. Hipótese 2 – pessoa acusada de porte de uma arma que era de uso restrito e deixou de sê-lo. Com a alteração, a conduta deixa de se subsumir ao art. 16 – pena 3 a 6 anos e multa – e passa a se subsumir ao art. 14 – pena 2 a 4 anos e multa. Em ambos os casos, a alteração é manifestamente benéfica e deverá retroagir para beneficiar pessoas investigadas, acusadas ou condenadas pelo crime de posse ou porte de arma de fogo de uso restrito. Não custa lembrar que, em razão da retroatividade do decreto, as imputações que outrora eram de crime hediondo passarão a ser de crimes comuns cujas penas poderão ser suspensas ou substituídas nos termos dos arts. 77 e 44 do Código Penal e, mesmo que não sejam, dificilmente implicarão em prisão preventiva ou regime fechado. Não me parece que esse seja o tipo de efeito que traga felicidade ao atual presidente.

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*Fernando Antunes Soubhia ocupa o cargo de Defensoria Público no Mato Grosso.

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