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Por que presumir a inocência no processo penal?

O artigo aborda a importância da presunção de inocência no processo penal, destacando sua origem filosófica e histórica, especialmente no contexto da Revolução Francesa. A autora explora o debate entre diferentes escolas penais sobre o tratamento do acusado e a função da prova no processo, enfatizando a necessidade de garantir que o réu seja considerado inocente até que se prove sua culpa. Assim, a presunção de inocência é apresentada como um direito fundamental que busca equilibrar os direitos do acusado frente ao poder punitivo do Estado.

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Os incautos podem questionar: se a maioria dos acusados são, ao final da persecução penal, considerados culpados, por que presumir a inocência? Como o óbvio, muitas vezes, precisa ser explicado, vamos lá!

Por presunção em sentido técnico compreende-se o fenômeno em que um fato conhecido tem o condão de fazer considerar a existência, sem que haja provas diretas para tanto, de outro fato desconhecido. Assenta-se em um juízo de probabilidade, segundo o qual a existência de um fato — fato real —, pelas regras de experiência, permite concluir a ocorrência do outro fato — fato presumido.

A expressão presunção de inocência deve ser entendida mais em seu sentido político-ideológico que com base em sua redação técnico- jurídica. Explica-se!

No decorrer do século XVI e alvorecer do século XVII, acaloraram-se os debates em torno da ideia de presunção na seara probatória. Surgiu, destarte, um embate entre os pensadores da escolástica medieval e os iluministas. Aqueles eram adeptos de que a presunção, conforme as experiências pessoais do julgador, figurasse como meio de prova e/ou parâmetro de análise para as demais provas colhidas, enquanto estes defendiam que a presunção deveria servir de base tão somente em caso de dúvidas no momento decisório, ocasião em que o julgador deveria incumbir ao acusador o ônus probatório ou privilegiar o acusado. Foi, pois, nesse sentido, como meio de dirimir a dúvida na decisão judicial, que os reformadores avocaram a palavra “presunção”, e não no sentindo técnico de se aceitar como provável algo, a partir de um determinado pressuposto. Seria um erro grosseiro levantar-se esta última hipótese, mormente quando as experiências da época não permitiriam jamais a conclusão de ser provável a inocência do acusado após um procedimento de natureza inquisitiva, onde admitia-se até a tortura para se angariar a confissão do imputado.

O termo “inocência”, por seu turno, advém do termo latino innocentia, ae e pode ser utilizado em sentido vulgar ou religioso. No aspecto vulgar, inocência significa pureza, ingenuidade, virgindade, ao passo que na seara religiosa é o atributo da pessoa isenta de pecados. Os iluministas conferiram-lhe um “sentindo filosófico de um estado ideal e hipotético a ser conferido ao cidadão” [1] e, por erguerem a bandeira da igualdade, defendiam que esse atributo seria inerente a todos os integrantes do corpo social, sem distinções.

Não se pode, por conseguinte, entender o instituto da presunção de inocência dissociado desse contexto cientifico, filosófico, político e histórico em que adveio a Revolução Francesa e a opção pela expressão presunção de inocência, significando que o cidadão deve ser considerado inocente até que sobre ele recaia uma sentença penal condenatória fulcrada em provas que traduzam a certeza de sua culpa.

É equivocado, pois, invocar a matiz etimológica romana de “presunção” e sob essa diretriz afirmar que a expressão é inadequada pois o provável é que o acusado seja condenado findo o processo penal. Tampouco se pode exigir que o termo se revista de um tecnicismo jurídico inexistente à época em foi cunhado no século XVIII.

O princípio da presunção de inocência precisa ser compreendido na perspectiva de um direito fundamental, que foi elaborado historicamente e angariou no transcurso do tempo três significados distintos.

Marcante no contexto evolutivo do princípio da presunção de inocência foram as posições dos reformadores da Justiça penal, que pugnavam por um sistema repressivo mais humano e manifestavam-se contra as arbitrariedades do poder punitivo estatal, visto que a Justiça penal do século XVII era marcada por um notório desequilíbrio entre o poder punitivo estatal e os direitos da pessoa acusada, sendo denominada de “era dos suplícios” [2]. Os iluministas lograram algumas conquistas no reconhecimento dos direitos individuais em face do poder soberano, dentre elas pode-se citar a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão. Nessa nova conjectura, não se poderia mais admitir um poder punitivo arbitrário, o que possibilitou uma guinada epistemológica na compreensão da Justiça penal, dada a substituição da presunção de culpabilidade pelo princípio da presunção de inocência.

Em decorrência da construção dada à matéria pela Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, a presunção de inocência se transvestia em norma de tratamento, vale dizer: assegurava ao acusado que não fosse tratado como culpado durante o transcorrer do processo penal. A consequência de tal desiderato recai sobre a limitação de medidas cautelares que impliquem na restrição de direitos do réu. Nessa seara, sobressair-se a impossibilidade de decretação de prisão preventiva com cariz de pena antecipada e por prazo indeterminado. Vê-se, pois, nítida limitação do poder punitivo estatal em face do respeito aos direitos fundamentais da pessoa.

A segunda concepção do princípio da presunção de inocência adveio de um acirrado debate travado pelas escolas penais italianas acerca das bases estruturais do Direito Penal, mais precisamente se este deveria ser norteado pela tutela da inocência do acusado e as garantias que daí derivam ou se pelos interesses de defesa da sociedade face à criminalidade. A escola clássica, onde destaca-se os nomes de Beccaria e Carrara, sustentou ser a presunção de inocência a viga mestra estruturante de todo o processo penal. A escola positiva, representada, dentre outros, por Ferri, sustentou que a presunção de inocência não era essencial nos meandros da persecução penal e entendeu que havia situações que seria até ilógico sustentar a sua existência (citava como exemplo o caso dos réus confessos e das prisões em flagrantes). Em suma, os positivistas entendiam que a defesa da sociedade era o ponto fulcral que deveria nortear todo o processo penal. A escola técnico-jurídica, por sua vez, rechaçava a presunção de inocência; na apreciação de Manzini, não tinha sentido se falar em tutela da inocência quando a persecução penal se iniciava e prosseguia justamente pela existência de indícios de culpabilidade.

Atualmente, a grande maioria das constituições adotam o princípio da presunção de inocência como umas das bases estruturantes do Estado democrático de Direito. Essa opção implica um modelo de processo penal em que a proteção dos direitos fundamentais da pessoa prevalece diante do poder punitivo estatal.

Posteriormente, os termos em que a presunção de inocência ganhou guarida na Declaração Universal de Direito dos Homens lhe trouxe uma nova perspectiva, consistente em uma norma probatória/norma de juízo. Vale dizer: é tarefa da acusação provar a culpa do indivíduo. Isso implica na proposição de que o réu tem direito ao silêncio e não é obrigado a produzir provas no curso do processo. Finda a produção probatória, vigora a regra do in dubio pro reo: a existência de dúvidas sobre a culpa do acusado conduz necessariamente a uma sentença de absolvição.

Finca-se, por ser de fundamental importância, que a presunção de inocência enquanto norma probatória, não significa, todavia, que a defesa, na dimensão pessoal ou técnica, esteja impedida de produzir provas ou requerer diligências. Afinal, ao réu é reconhecido o status de sujeito processual e como tal tem a possibilidade de “uma participação constitutiva na declaração do direito do caso concreto, através da concessão de direitos processuais autônomos” [3]. Ademais, em que pese o princípio da presunção de inocência assegurar juridicamente ao arguido uma postura passiva quanto à demonstração de sua inocência, no plano fático, vez que vigora o sistema da livre apreciação da prova, é interessante que a defesa traga aos autos elementos probatórios que possam contribuir para a absolvição do acusado, ou, ao menos, para embutir uma dúvida no raciocínio do magistrado.

Conclui-se, pois, que a presunção de inocência se manifesta de diferentes formas no curso do processo penal. O Estado, titular do ius puniendi, dispõe do processo penal para realizar sua tarefa de impor condenação a quem comete crimes. Todavia, essa incumbência estatal deve ter como objetivo a punição exclusiva do verdadeiro culpado. Configura equívoco grosseiro vincular a busca pela condenação como interesse público, e a busca pela absolvição como interesse individual. Os direitos processuais fundamentais [4], embora sejam, em regra, exercidos individualmente, são previstos em benefício de todos. Destarte, é preciso ponderar que uma persecução penal justa e equilibrada é benéfica a toda a coletividade. Afinal, o processo penal “não deve traduzir mera cerimônia protocolar, um simples ritual que antecede a imposição do castigo previamente definido pelas forças políticas” [5].

Ressalta-se ainda que a presunção de inocência não configura posição de vantagem, mas sim de equilíbrio, vez que o réu tem em seu desfavor um processo penal, cujo desenvolvimento implica, em regra, restrições aos seus direitos, inclusive o de liberdade. O direito fundamental ao “estado de inocência” visa, pois, reequilibrar a relação jurisdicionado-Estado durante o iter da persecução penal, mormente quando se sabe da supremacia do poder punitivo estatal. Para tanto, o preceito humanitário dita que o acusado não receba tratamento de condenado, não tenha a tarefa de provar sua inocência (já presumida constitucionalmente) e impõe ainda que, uma vez esgotados todos os meios lícitos, a dúvida fática seja dissipada em favor da defesa, bem como seja aplicada a interpretação judicial mais favorável ao arguido, se a norma admitir diversidade hermenêutica.

Outrossim, a dignidade da pessoa humana será sempre um parâmetro axiológico-normativo para as investigações com foco na presunção de inocência, haja vista que este direito fundamental tem maior expressão para o ser humano justamente quando este ocupa uma posição pública e social das mais estigmatizante, qual seja: a de réu, cidadão que responde a um processo criminal. A adoção do princípio da presunção de inocência nos meandros do processo penal implica, pois, a opção pela pessoa, a qual se coaduna com critérios políticos de inegável viés democrático e desvencilha-se de um discurso repressivo, que entende possível descartar os direitos fundamentais em detrimento de uma suposta defesa social.

Referências bibliográficas ANTUNES, Maria João. Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2016.

CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed (17. Reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014

MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris

PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014

[1] MORAES, Maurício Zanoide de. Presunção de inocência no processo penal brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010, p. 87-88.

[2] FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: Nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2014, p.35-69

[3] ANTUNES, Maria João. Direito Processual Penal. Coimbra: Almedina, 2016, p. 39

[4] Expressão colhida em CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da Constituição. 7. Ed (17. Reimpressão). Coimbra: Almedina, 2003, p. 446

[5] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.17.

Referências

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